Lisboetas - V
Capela de N. Sª da Glória - Lisboa
O campo
baldio, em parte do qual fora no século XIII construído o mosteiro de religiosas
seráficas, em Lisboa, era desde longa data conhecido pela designação de Campo
da Forca, a qual lhe adveio de nele se realizarem as execuções capitais; este
campo só depois, provavelmente no século XVII ou XVIII, passou a chamar-se
Campo de Santa Clara, como ainda hoje o continua sendo. As religiosas do velho
e nobre mosteiro, que tão frequentemente eram surpreendidas pelo lúgubre espetáculo
que de quando em quando as justiças lhes punham à vista dos olhos, suplicaram
um dia que tais execuções não fossem mais efetuadas naquele local; no que foram
atendidas, sendo depois escolhido para tal fim o chamado Cardal da Graça,
vasto terreno, ermo de moradores
naquele tempo, confinado entre as ruas da Graça, da Cruz dos Quatro Caminhos, e
da Bela Vista. Da abundância de cardos e outras ervas daninhas, veio ao sítio
tal designação, ainda hoje conservada na Rua do Cardal, ali existente, e no da
antiga ermida de que vamos falar, que era nomeada sempre nos documentos da
mesma e pela população da vizinhança: ermida de N. Senhora da Glória, ao Cardal
da Graça (1).
A
origem desta capela, verdadeira ermida noutros tempos, pois ermo era o sítio
onde ela foi erigida. Depois de a forca (2) ter começado a funcionar
no Cardal da Graça, um dia, em data impossível de precisar, alguém, uma alma
compassiva e piedosa certamente, condoída do abandono a que eram votados os
infelizes que ali, nos derradeiros momentos da vida, nada podiam contemplar que
lhes lembrasse a misericórdia divina, mandou colocar, fronteiro à forca, um
painel representando, sob a invocação de N. Sª da Gloria, aquela que é nas
torturas desta vida, o Refúgio dos pecadores e a Consolação dos aflitos.
Esse
piedoso painel da Virgem Mãe começou também um dia a ser alumiado, talvez por
algum parente ou pessoa amiga de qualquer justiçado, quem sabe? A devoção
tornou-se frequente, e um dia, para melhor resguardar o painel e o lampadário,
foi erguido sobre quatro pilares um alpendre, como se nos deparam ainda pelos
recantos das nossas aldeias.
Assim,
perdurou o mesquinho alpendre e assim se mantinha espalhando, pelos curiosos
que ali acorriam e pela vizinhança, a devoção de N. S.ª da Glória; um dia porém
o mesquinho painel foi substituído por uma imagem de vulto erguida num singelo
nicho de pedra, mais chamando a atenção e mais santificando o lugar.
Estavam
assim as coisas quando o fatal terremoto de l de Novembro de 1755 tudo veio
modificar; os vastos e quase desertos terrenos do Campo de Santa Clara, da Cruz
dos Quatro Caminhos, do Cardal da Graça e proximidades foram desordenadamente
invadidos no decorrer daquele dia, e seguintes, por muitos moradores da cidade
destruída, que, espavoridos, fugiam aos horrores de tão desabalado cataclismo.
(Anda vamos falar sobre o Terramoto!)
Entre
esses fugitivos, um grande número era constituído por moradores da freguesia de
S. Bartolomeu que, com o seu pároco, vieram refugiar-se ao Cardal da Graça,
acampando junto ao alpendre de N. Sª da Glória, onde de joelhos suplicaram ao reverendo
Prior que, por misericórdia, lhes fosse distribuída a Sagrada Comunhão da
píxide que fora salva da sua igreja em ruínas e que eles ali haviam acompanhado.
Luís
Gonzaga Pereira, filho de um dos refugiados por essa triste ocasião, escreveu
no seu livro Monumentos sacros de Lisboa em 1833 o seguinte,
referindo-se à igreja da freguesia de S. Bartolomeu de Lisboa: «Todas as
imagens que possuía este templo ficaram destruídas pelo motivo do terremoto,
salvando-se os vasos sagrados que foram em tão funesta ocasião conduzidos para a
humilde casa de N. Sª da Glória ao Cardal da Graça, bem como outras paroquiais,
em devotíssimas procissões, e naquele território se acomodou esta freguesia em
uma mais decente barraca que se edificou, a fim de não se faltar à
administração dos sacramentos; em cujo termo se edificou em 1762 a digna capela
que hoje se vê dedicada à Santíssima Virgem N. S.a da Gloria, ao
Cardal da Graça.
Isto
condiz com as seguras informações dadas pelo Padre João Baptista de Castro no
Mapa de Portugal (1762-1763), onde, ao referir-se à já mencionada freguesia
de S. Bartolomeu, escreve: «Vendo-se neste desamparo e consternação, o pároco
desta igreja, como os seus fregueses se tinham ido abarracar em maior número
para o Campo de Santa Clara, Quinta do Alcaide Fidalgo (3), Cardal e
Cruz dos Quatro Caminhos, determinou erigir uma barraca decente, posto que
pobre, no Cardal da Graça, onde existiu, sem faltar à administração dos
sacramentos. As exigências do culto e fazê-lo em local apropriado levaram os
próprios foragidos a trabalharem, de colaboração com os moradores mais
próximos, para se erguer uma pequena capela, embora de construção ligeira, com
taipas e adobes, na qual se pudessem reunir, resguardados das inclemências do
tempo, para a celebração dos atos religiosos e de piedade. A esta capela
provisória se refere o prior da freguesia de Santa Engrácia no seu relatório
paroquial de 22-07-1759, informando: «A ermida de N. S.ª da Glória sita no
Cardal, erigida depois do terremoto para nela se colocar interinamente o
Santíssimo Sacramento da Basílica de Santa Maria, que há menos de um mês se
trasladou para a igreja do Menino Deus, onde reside a sobredita Basílica. É de
pouca duração por ser de tabique”.
Decorridos
dois anos depois do nefasto cataclismo de l de Novembro de 1755, foi a sede da
freguesia de S. Bartolomeu, por causa do descómodo em que estava na ermida do
Cardal, levada para outra ermida não muito distante, pequena também é certo,
mas construída de pedra e cal, a ermida de N. S.ª do Rosário (Rosarinho), à
Travessa da Verónica, onde permaneceu não se sabe bem até quando, sendo porém
certo, segundo afirma Júlio de Castilho (Lisboa Antiga) que já em 1770 a
freguesia se encontrava instalada em Xabregas, na Igreja dos cónegos de S. João
Evangelista, passando a denominar-se de S. Bartolomeu do Beato.
Das
famílias que em seguida ao terramoto se estabeleceram em abarracamentos
provisórios no Cardal da Graça e proximidades, algumas por ali se deixaram
ficar em moradias definitivas que foram melhorando com os anos. Estas e outras
famílias continuaram muito ligadas ao culto da Santa Virgem e nasceu a ideia de
constituírem uma irmandade com a invocação de Nª Sª da Glória e levantar-lhe um
templo onde fosse dignamente venerada a Padroeira.
Segundo
a tradição já em 1762 se iniciaram essas diligências. Em 1766 começaram a
inscrever-se vários irmãos de boa vontade. Em 1773 fez-se nova eleição da mesa
da irmandade e os novos membros, animados de entusiasmo comprometeram-se a não
abandonarem os seus cargos sem que a obra estivesse concluída.
Porém
em 1780 paralisaram-se as obras: falta de meios e algumas dívidas, mas logo
recomeçaram. Em 1794 já se encomendavam obra de talha para o altar, depois o
piso de mármore e outros arranjos e em 1797 foram comprados os painéis de
azulejos da capela-mór e muita outra coisa.
Depois
de acabadas as obras, tanto externas quanto internas, não tardou a, de triste
memória, Lei do Mata Frades, que
acabou com as ordens religiosas e logo a pequena capela foi saqueada!
Muito
mais tarde restaurada, hoje podem ver-se os dois painéis de azulejos, que são
curiosos.
Um
deles, por cima da imagem, tem a seguinte legenda que lembra como tudo por ali
começou:
NA TARDE DO DIA DO
TERRAMOTO DE 1 DE NOV.BRO de 1755
NESTE LUGAR DESCANSOU O SACERDOTE
QUE CONDUZIA O S. S. SACRAM.TO E A INS-
TANCIAS DO IMMENSO POVO QUE SE A
CHAVA
AQUI MOVIDO DE TÃO PIOS DESEJOS, O E
XPOS À ADORAÇÃO DE TODOS, QUE COM
LAGRIMAS E SUSPIROS; PROSTRADOS POR
TERRA PEDIRÃO PERDÃO, E MIZERI-
CÓRDIA
(1) Também com a
designação de «ermida de N. Sª da Glória, existiu outrora uma capela, à Calçada
da Glória”, onde passa hoje o Elevador da Glória.
(2) Em diversos
locais de Lisboa funcionou a forca para execuções capitais; entre outros
apontaremos o Campo de Santa Bárbara, o Caís do Tojo, o Campo de Santa Clara,
os Campos da Cruz de Buenos Aires e da Cotovia, a Ribeira, etc.. Referente ao
Cardal da Graça, diz Júlio de Castilho em Lisboa Antiga: «No tempo de Tolentino (1741-1811) foi
necessariamente o Cardal da Graça o sítio onde se enforcavam os criminosos.
Haja vista o soneto XXXIII do mesmo poeta, que principia «Ergueu aos céus
alegre gritaria”, e termina «dar gosto ao povo do Cardal da Graça». (Masoquistas, hein?)
(3) Ignora-se a
local exacto desta quinta; seria no terreno sito entre a Rua da Senhora da Glória, a Travessa da Pereira e a Rua do Sol,
terreno pertencente ao prédio n.° 14-15 do Largo da Graça? Faltam testemunhas
que o confirmem ou neguem. A
Quinta do Alcaide Fidalgo compreendia não só o quarteirão de casas situadas
entre a Travessa da Pereira, a Rua da Verónica e a Rua da Senhora da Glória,
mas ainda mais terreno para nascente deste quarteirão. A rua de N. S.ª
da Glória foi rasgada em terreno desta quinta e possivelmente outras ruas como
a Leite de Vasconcelos).
N.- No próximo ano (!) falaremos de algumas igrejas do Rio de Janeiro.
15/11/2015
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