quarta-feira, 2 de dezembro de 2015



Cheiro a Mar – 3

Texto dedicado em especial aos “navegantes do Mussulo I”
(Hoje já mais dez anos passados, a saudade!)

Se não fizeres hoje,
o amanhã será igual a ontem.
Se fizeres mal, será pior.

3.  Ao fim de trinta anos de “sequeiro”...

Os primeiros trinta anos de Brasil foram uma luta de sobrevivência... complicada. Terráquea. Só.
Barcos, com vela ou remos ficaram longe, muito longe até do subconsciente. Até um dia... e isso está contado no livro “Mussulo – Um Abraço à Vela”, o mar me chamou. O Abraço que fomos levar a Angola.
Finalmente, já lá vão, outra vez, dez anos, quando após meses de preparação, no dia 3 de Dezembro de 2005 largávamos as amarras do veleiro, e as dos corações guardávamos com carinho, vendo cada vez mais longe aqueles da família e amigos que se tinham ido despedir de nós, e sabíamos que ficavam com o coração também apertadinho, vendo-nos numa minúscula casca de noz!
O barco, uns ridículos e valentes doze metros, amarrado na Marina da Glória mostrava já a sua pequenez ao lado de alguns iates grandões que só servem para exibir fortunas, fazer relações públicas e levar meninas “oferecidas” para fins de semana.
O dia estava bonito, um vento agradável, a vista para todos os lados na baía era, sempre foi e continua a ser, o mais bonito cartão postal do mundo.
Há quem chame ao Rio a “Cidade Maravilhosa”, letra duma bela canção que Caetano Veloso imortalizou, mas a verdade é que o maravilhoso não é a cidade, mas a natureza que a circunda. Podiam ser as duas, mas... isso é para outra conversa.
Dentro daquela “coisa pequenina” em que decidimos atravessar o Atlântico para levar um Abraço a Angola, os três marinheiros sabiam que teriam muitos problemas pela frente, mas esperavam que houvesse, sempre, muita água “debaixo da quilha”!

A largada, à exata hora prevista com 3 meses de antecedência!
Soltas as amarras às 14H00M, sair da Marina, e eram 14H17M já a navegar

Percalços logo na saída, porque, “vítima dum pequeno grande erro” tivemos que ir abastecer os tanques de combustível. Por fim, velas envergadas, a caminho da saída da maravilhosa baía.
Sentíamos que todos os inselbergs, os antigos fortes que nos velhos tempos defendiam a entrada de estranhos e inimigos na baía da Guanabara, as florestas e até o casario que ainda se avistava, não tiravam os olhos de cima daquele pequeno ponto branco que se atrevia a enfrentar os “monstros marinhos” que os grandes descobridores acabaram, felizmente, por não encontrar, quando meticulosamente percorreram todo o Atlântico Sul, para o mapearem e assim permitirem o famoso caminho das especiarias pelo mar. Terras de Vera Cruz cedo foram encontradas e só muito mais tarde divulgadas ao mundo atônito pelas descobertas realizadas pelos destemidos e sábios navegadores portugueses de antanho.
A saída da tranquila baía trouxe-nos não uma surpresa, porque havíamos bem estudado a meteorologia, mas um desagradável vento contra, uma ondulação extremamente incômoda, enquanto o sol, talvez envergonhado por não nos poder proporcionar um pouco mais de luz e beleza, escondia-se atrás das montanhas da Tijuca.
Perto da costa e sabendo do relativamente intenso tráfego marítimo em idas e vindas para as plataformas de petróleo, a navegação à noite exigia redobrados cuidados. E ou seguíamos batendo de frente nas ondas ou seriamos obrigados a alterar o rumo, virando a sul e nos afastando da rota mais curta.
Só ao fim de dois dias o mar se mostrou mais compassivo e a navegação menos violenta. Já se cozinhava, e bem, o almoço, passados os enjoos, todos tinham o seu quarto de descanso, o tio o direito a não fazer quartos durante a noite! Privilégio da “tenra” idade.
Durou pouco a confortável navegação. No quinto dia Neptuno quis mostrar quem era o “Senhor Absoluto” daquelas águas e exibiu o seu poder. Algumas vagas que podemos chamar de alterosas, dada a pequenez da atrevida embarcação que as percorria, encharcaram parte da cabine e acabou com alguns dos equipamentos eletrônicos que ajudavam no traçar da rota. Uns banhos para matar saudades...


Mais adiante foi o “Éolo, Senhor dos Ventos” que nos enganou, pregou-nos uma partida, fazendo-nos pensar que havia um melhor rumo que nos permitiria “cortar” caminho para Luanda. Ingênuos, fomos levados para uma zona de calmaria.
’Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? Qual o oceano?
(Castro Alves – O Navio Negreiro)

Dali só conseguimos sair, sem nunca termos visto o raio verde, a motor, para vinte horas mais tarde voltarmos a encontrar o vento que nos levaria então ao destino, mais a sul, Namibe,
Apareciam golfinhos e aves. Os primeiros vinham cumprimentar-nos e correr ao lado e à frente do barco, fazendo cabriolas para nos distraírem. As aves, também admiradas do atrevimento daquela asa branca ensaiavam até pousar no topo de mostro! A meio do oceano desapareceram esses simpáticos parceiros para um ou dois dias depois voltarem outros. Curioso: outras espécies de golfinhos e de aves. Estavam-nos a mostrar o meio do oceano e a dizer “já falta pouco”! 
As condições dos ventos e do mar e a consciência de que as conhecemos, dá-nos uma paz de espírito enquanto navegamos, e o contato íntimo com a Natureza dá-nos a dimensão real da vastidão do mar.
De madrugada, após trinta e um dias de mar e céu, chegámos a Namibe, onde uma recepção fantástica nos aguardava. A comoção foi tão forte que nos humedeceu os olhos.
Trinta e um inesquecíveis dias. Mar e céu, que à noite, quando sem nuvens, se mostrava esplendoroso.
Depois mais dois dias de bela navegação ao longo da costa, aquele calorzinho gostoso de Angola, ansiosos para chegarmos à Ilha do Mussulo!


Dois dias no paraíso, umas horas mais de navegação, e finalmente Luanda!
Uma nova onda, não de mar mas de emoção nos assaltou. Um “tsunami”!
Muito ficou guardado cá bem dentro, que ninguém mais de lá arranca.
Mas quem quiser ver um pouco da chegada a Angola: um filminho, montado pela Ana Clara Tendinha, com muito trabalho, muita simpatia, com duração de 20 minutos.
Em cima duma cómoda, na sala, mais outra pequena recordação a juntar à saudade de tantos amigos novos, os “sobrinhos”!

Parece que esta foi a etapa que encerrou as possibilidades de continuar com as minhas muitas paixões e sonhos pelos mares, que andaram sempre comigo!
Ainda cá ficou dentro uma sementinha que, quem sabe, ainda vai dar algum fruto! Estou a amadurecer a ideia! Nem seja atravessar nas barcas Rio – Niteroi!
Antes que a barca de Caronte me venha buscar só com passagem de ida!
Qui sera... sera!

05/04/2015



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