Gundemaro
Lembro
perfeitamente. Era mesmo Gundemaro o nome dele. Eu não teria nem dez anos e
volta e meia um homem, bem velhote, cabelinho todo muito branco, andar um pouco
curvado, ar humilde, aparecia lá em Sintra, em casa de meu avô. Era o
Gundemaro. Quando ouvíamos o nome dele, todos nós, irmãos, tínhamos que sair de
perto, para rir.
Aos
nossos olhos de crianças, era bem velho. Bem como o nosso avô que naquela
ocasião teria quase oitenta anos, e ele passava-lhe uns quantos.
Não
sabíamos sobre o que o tal Gundemaro ia falar com o avô, nem ficávamos por
perto, até que um dia, estimulado pelos irmãos, que me cutucavam – vai perguntar ao avô se ele é alemão; não
vou nada, vai sim – enchi o peito de vento e de coragem e fui perguntar
como era mesmo o nome dele, porque jamais aos nossos ouvidos havia chegado tal
nome, nem éramos capazes de o pronunciar corretamente.
-
O nome deste senhor é mesmo Gundemaro, porque?
-
Que nome tão esquisito. Ele é alemão?
-
Conheço-o há muitos anos, mas creio que nem ele sabe bem onde nasceu. Mas deve
ter nascido em Portugal. Foi criado num orfanato, lá se fez homem e um ótimo
marceneiro. A verdade é que Gundemaro é o nome dum rei visigodo de há mais de
1300 anos.
-
Ó avô, quem eram os visigodos?
-
Foi um povo que veio lá dos lados da Alemanha, a seguir aos romanos e
governaram toda a península, o que hoje é Portugal e Espanha.
-
?!?!?! Foi o pai dele que lhe pôs esse nome?
-
Deve ter sido, mas nunca lho perguntei. É o melhor marceneiro que eu conheci.
Levei
a conclusão das minhas investigações para os irmãos e ficámos todos admirados
sobre os conhecimentos do avô, nós que nunca tínhamos ouvido falar em
visigodos, nem romanos, e mil e trezentos anos era coisa que as nossas cabeças
não tinham capacidade para imaginar o tanto que seria, e muito mais curiosos
ainda a pensar que o senhor Gundemaro poderia ser um príncipe. Afinal tinha
nome de rei.
Aquilo
era um mistério, e crianças adoram mistérios, reis, príncipes, guerras, selva
com Tarzan, caubóis, polícias e ladrões, essas “aventuras” que vivíamos no nosso
tempo da quase pedra lascada sem internet e joguinhos nos telefones.
Telefones?
Lá na Quinta em Sintra tinha telefone, sim. Número: Sintra 98. Levantava-se o
auscultador, rodava-se uma manivela, atendia uma simpática voz feminina e nós
dizíamos (nós não, porque criança não falava no telefone): “Menina, liga-me a Oeiras 20” – “Pode desligar que eu chamo quando
completar a ligação.” Maravilha de tecnologia.
-
Quando ele voltar aqui nós vamos-lhe perguntar onde nasceu e quem lhe pôs o
nome, mas sem o avô perceber, porque se não vamos todos de castigo. Ainda por
cima o senhor está muito velhinho. E temos que decorar o nome dele e dos avós,
os visigodos. VI–SI–GO–DOS! Não esqueçam
Passam
alguns dias, ou semanas, nós sempre a repetirmos – gundemaro, visigodos,
gundemaro, visigodos – lá aparece ao portão da quinta aquela figura simpática. Um
de nós correu para o abrir. Antes de irmos avisar o avô que ele tinha chegado, convidámo-lo
a sentar-se numa das cadeiras que sempre ficavam na entrada, fora de casa:
-
Sente-se um pouco, o senhor deve estar cansado.
-
Muito obrigado. Os meninos são muito simpáticos.
Nós,
meio envergonhados, não queríamos perder a ocasião de fazer as nossas
pesquisas.
-
Sabe que nós temos dificuldade em dizer o seu nome? – atrevi-me.
Sorriu
e respondeu
-
É um pouco estranho, mas foi assim que meu pai me chamou. GUNDEMARO. A minha
mãe morreu logo a seguir a eu ter nascido, e o pai que trabalhava numa mina morreu
também tinha eu só quatro anos e mais nenhuma família. Como não tinha mais ninguém,
puseram-me num orfanato, de modo que nunca cheguei a poder perguntar a origem
do meu nome. Dizem que tem origem alemã, mas nada sei.
-
O avô diz que é nome dum rei dos visigodos. – e olhei de lado para os irmãos
para me certificar de que tinha dito tudo certo.
-
É sim, mas foi coisa que só vim a saber era já homem feito.
-
Mas se tem o nome dum rei o senhor devia ser um príncipe.
Riu
com gosto o simpático velhinho.
-
Nada disso. Sou um homem simples, do povo. Mais nada.
-
Eu bem dizia aos meus irmãos que devia ser um nome alemão! Deve ter sido muito
triste para o senhor, não ter família nenhuma, não foi?
-
Foi sim. Mas sempre me trataram muito bem. Lá cresci, depois mandaram-me
estudar e aprender marcenaria nas Oficinas de São José, onde com o curso feito
fiquei muitos anos como professor. Um dia juntei um dinheirinho, abri a minha
marcenaria, pequenina, e pronto, fui marceneiro toda a vida. E abri a
marcenaria aqui em Sintra, por isso conheço o vosso avô há muitos anos.
-
E o senhor ainda trabalha?
-
Já não posso. Não tenho mais forças. Mas fiz muitos trabalhos para o senhor
Amorim, que me apresentou muitos clientes e sempre me tratou muito bem e de
quem eu tenho muita satisfação e orgulho que ele me considere seu amigo.
-
Por isso o avô tem móveis bonitos. Sabe que eu acho muito bonito o trabalho de
marceneiro.
-
Só nesta casa são uns cinco ou seis feitos por mim. Eu não venho aqui ver os
móveis. Como o vosso avô me recebe sempre com muito carinho, cada vez que surge
uma oportunidade e as pernas, já fracas, m’o consentem, venho vê-lo, e
conversamos um pouco sobre o que calha. Não tenho mais ninguém com quem
conversar.
Neste
momento da conversa aparece o avô.
-
Ó senhor Gundemaro, porque não entrou?
-
Sentei aqui um pouco a conversar com os seus netos que queriam saber coisas da
minha vida! E eu tive muito gosto em lhes responder.
-
Estiveram a importuná-lo?
-
Não. Foram muito simpáticos. Este pequenito até me disse que gosta muito do trabalho
de marcenaria. Mesmo que ele venha a fazer um curso superior, marcenaria é
muito bom para as horas de lazer.
O
avô olhou para mim com ar meio sério meio de dúvida, e eu confirmei.
-
Gostaria muito, sim avô.
-
Um dia falaremos sobre isso.
Nunca
calhou falarmos sobre isso. As férias terminaram. No ano seguinte Gundemaro não
apareceu.
Perguntámos
ao avô. Tinha morrido nesse inverno, com noventa e cinco anos.
Um
a dois anos depois, no Liceu, tínhamos aulas de “Trabalhos Manuais”, e era
brincando com madeiras que eu mais gostava dessa aula. Fazíamos barcos de
guerra, raquetes de ping-pong e outras coisas simples, mas o suficiente para
aguçar o meu gosto para mexer com madeira, reparar uns móveis, etc. o que fiz
toda a vida. Ainda hoje!
E
sempre lembro o príncipe dos marceneiros, Gundemaro.
24/04/2014