sexta-feira, 12 de setembro de 2014


Honra ao Mérito

(Já uma vez este texto apareceu no blog. Quando?
Talvez ninguém se lembre, mas agora tem nova, e especial, oportunidade)

Luanda, 1960 - Para inaugurar em Angola o início das atividades da Força Aérea, até então ausentes da guerra colonial, organizou-se uma espécie de “festival” aéreo, com uma dúzia de aviões que para ali foram destacados, aproveitando-se para se fazer também uma exibição dos homens que vêem dos céus!
Na altura dizia-se que aqueles esses aviões tinham sido cedidos pela OTAN (NATO), em que Portugal estava integrado, para exercícios de defesa da Europa. Manhosamente, Salazar, convenceu os parceiros que fazia os exercícios de treinamento em África! Ninguém engoliu tão esfarrapada mentira, mas todos fizeram ouvidos de mercador. E, como é cronicamente sabido, os piores diplomatas do mundo são os americanos. Cegos, todos, por dinheiro, tudo Tio Patinhas, cederam aviões para a OTAN e quando souberam que eles estavam em África, e os seus interesses visavam também o chamado Cone sul africano, ou o Atlântico Sul, ou a rota do petróleo e mais as riquezas africanas - África do Sul, Rodésias, Moçambique, Angola e Congo – acharam que não seria má ideia disfarçar e ajudarem a manter o status quo dessa zona de África... até ver.
Os Estados Unidos e a sua clássica incapacidade de política externa ainda não tinham despertado para o mundo novo, os novos países africanos, voltados para a União Soviética que abertamente os apoiavam. Só mais tarde é que decidiram ajudar e financiar alguns grupos rebeldes, não tanto independentistas, como o FNLA, porque as suas ligações e/ou compromissos com o Congo, nunca ficaram muito bem esclarecidas!
A verdade é que Portugal, levou de graça para Angola uma dúzia de caças a jato!
Para além do aspeto político que representava para os povos que queriam a sua independência, a chegada de uma nova força de repressão, o espetáculo anunciado seria interessante, sobretudo se pensarmos que foi em África, há mais de quarenta anos, onde praticamente não havia paraquedismo. Ninguém queria perder a oportunidade de ver descer dos céus aqueles pequenos cogumelos, devagar, que aumentavam de volume até se desfazerem de encontro ao chão.
Sabendo que esse festival aéreo daria início à instalação de mais uma força, certamente para não só intimidar, mas combater pretensões de independência, um dos partidos, todos ainda muito incipientes, dando os primeiros passos, distribuiu clandestinamente um panfleto-manifesto alertando as populações para o significado desse tal festival, aconselhando-as a não comparecerem. Distribuído com a maior dificuldade, porque clandestino, alcançou pouca gente, e muita desta assim mesmo ainda quis ir ver o que seria essa nova ameaça.
Os jatos da força aérea evoluíram por cima da cidade, voos de exibição, e os de transporte de tropas soltaram umas dezenas de homens pelos ares. A surpresa maior estava reservada para o final, e essa nada tinha a ver com a guerra que acabaria por eclodir: o primeiro salto de paraquedas de uma mulher! Um acontecimento na história da evolução dos povos, quando por esse tempo a mulher pouco mais fazia do que parir e cuidar de filhos e marido!
O tempo estava meio fechado no fim daquela manhã quando o grande feito ia acontecer por cima do Aeroporto.
Todos os muene-mputu presentes, desde o nguvulu aos secretários, os cabitangu, respectivas esposas e povo em geral.
Tinha vinte e quatro anos a mocinha que se ia atrever a tamanha temeridade. Os machos paraquedistas e outros elementos da Força Aérea, terrivelmente preocupados com o que poderia acontecer à frágil e feminina atrevida.
Avião escolhido para a aventura: um velho Dragon Rapid, que atingia a vertiginosa velocidade de cruzeiro de 213 km/hora, bimotor, asa dupla, estrutura tubular, forrado a lona, para transporte de passageiros em linhas “regulares”. Passageiros, não recordo bem, mas o máximo de sete! Grande avião.
  


O “grande” Dragon Rapid, onde? Benguela?

Piloto, um amigo, experiente comandante da Divisão de Transportes Aéreos de Angola, a DTA, do mesmo modo igualmente preocupado com a responsabilidade de “largar a primeira moça nos ares de Angola”, o Jorge Verde.
Chegada a hora, entram no avião, o piloto, fundamental, a destemida aventureira, um fotógrafo para documentar o histórico salto, e este, que hoje, tantos anos passados, “faz a reportagem”, amigo de infância da heroína, privilegiado assim para de mais perto e melhor ver o famoso salto!
Em terra, silêncio! Tensão. Céu meio encoberto de nuvens. O Dragon ganhou altura, e ficou voando em círculos bem por cima do Aeroporto, onde o salto se devia efetuar. O piloto, nervoso também por causa
do natural machismo e porque não conseguia ver o chão com clareza, ordenava que a mocinha só devia saltar quando ele mandasse. Lá de cima, a pista, pequenina, aparecia e sumia logo encoberta com as nuvens. Já íamos talvez na quarta volta, o tempo seguia, que é o único que não se preocupa com tristezas ou alegrias, sol ou chuva. Paraquedista junto à porta, fotógrafo à ilharga, eu no centro daquele aviãozão. O Jorge Verde:
- Não saltes ainda. Espera que eu te diga.
Ordem que eu retransmitia. Porta do avião aberta, o fotógrafo amarrado a um banco com medo de ser levado porta fora mesmo sem paraquedas, eu atrevidamente mal assomava com a cabeça a um metro da porta, e a valente moça, tranquila, mas desesperada para saltar logo.
-Espera mais um pouco.
A dada altura sai e fica em pé na asa!  Imaginem só a loucura! O fotógrafo e eu arrepiados, talvez mesmo apavorados e com mais vertigens do que jamais havíamos pensado. E o piloto:
- Ainda não estamos na posição certa. Espera.
Neste momento a frágil e feminina aventureira, diz:
- Não vou esperar mais. De repente, lá vai ela. Saltou!
Nós, dentro do avião deixámos de a ver no mesmo instante, e ninguém se atrevia a pôr a cabeça de fora para ver onde ela ia! Deus nos livre.
Tínhamos ambos a sensação de que se puséssemos a cabeça de fora, no mesmo segundo seriamos sugados mesmo sem paraquedas. Passado um pouco ouve-se novamente o piloto:
- Espera só mais um pouco. Vamos agora passar bem em cima.
- Não te preocupes mais. Já voou!
- Mas ela é maluca! Não devia ter saído sem eu lhe dizer!
- Pois é. Mas agora já lá deve estar em baixo!
A única solução foi regressar à base. Nada mais havia a fazer lá nas alturas. Quando aterrámos, já ela estava, pés bem no chão, rodeada de gente. O povo espectador aplaudia, os machos da aviação ralhavam com a jovem:
- Foi uma temeridade... que loucura... tanto tempo em queda livre... que perigo... não foi para isso que você aqui veio... podia ter acontecido um desastre e nós éramos os responsáveis, e outras observações dentro da mesma tónica.
Os homens ainda não estavam habituados a que as mulheres rivalizassem com eles em situações de coragem! Ninguém se lembrava por exemplo de uma Brites de Almeida, a terrível padeira de Aljubarrota, ou de uma Joana d’Arc!
Cumprimentos, despedidas, muitos obrigados, etc., acabou a festa, e a mocinha, nossa hóspede, foi conosco para casa. Ligámos logo a telefonia para ouvir a reportagem, em diferido, como hoje se diz, porque ainda não havia o em direto, ou ao vivo, e enquanto almoçávamos fomos ouvindo o locutor e o seu relato.
- Estamos no aeroporto, presentes as diversas excelências, etc., e vamos agora assistir ao primeiro salto de paraquedas de uma mulher, nestas terras de Angola. Jovem, enfermeira paraquedista, veio de Lisboa expressamente para nos mostrar o quanto as mulheres podem fazer, saltando dos ares, quando necessário, para levar a saúde e a esperança a feridos e doentes, em lugares onde outro tipo de ajuda pode fazer perigar a vida do doente. O exemplo desta jovem deve ser admirado e seguido.
O avião, com a destemida garota, já levantou aqui do aeroporto, e está a ganhar altura. O tempo está bastante encoberto o que não permite que daqui de baixo o possamos acompanhar o tempo todo. Ouvimos o ronco do seu motor, mas mal o adivinhamos quando de repente passa entre duas nuvens...
Olha, passou agora. Ihh! Já deixámos novamente de o ver... O avião anda lá por cima às voltas. Vamos ver quando nos aparece a paraquedista. OLHEM!  Apareceu agora. Lá vem ela.  Mas... o paraquedas não se abriu!... Meu Deus! O paraquedas nunca mais se abre. Que horror... ela vai cair. Já vem a cair há uns cinco minutos e o paraquedas não se abre!...
Nesta altura a voz do locutor está ofegante, cansada! A emoção mais forte do que ele.
- FINALMENTE!  Graças a Deus! O paraquedas abriu-se... e lá vem ela... descendo... devagarinho. Lá vem... Está agora... a pousar...  no chão... para lá...  já se encaminham...  os que a vão receber... e felicitar. Uff! Que grande susto nós levámos!

Almoçando tranquilamente, a Isabel reviveu esta apavorante descrição da sua aventura... “ao vivo”!
***
Passado mais de meio século a história continua: a ainda Jovem Avó de onze netos, Isabel Rilvas, nas comemorações do Centenário da Força Aérea Portuguesa é agraciada com a Medalha de Mérito Aeronáutico de 1.ª Classe, distinção reservada a oficial general e capitão-de-mar-e-guerra ou coronel, que lhe foi entregue pelo Chefe do Estado Maior daquela Força.



Parabéns!  Isabel!
11.09.2014

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