Histórias a contar aos netos
Lourenço Marques, hoje Maputo, 1971
Quando fui para Moçambique, trabalhar na “Mac-Mahon” – cervejas e
refrigerantes – a desorganização na companhia era um desastre. Aliás tinha um
administrador, mandado de Lisboa, uma das mais “raras avis” de arrogância e
incompetência que se me depararam durante a vida. Um cretino.
Os carros da companhia todos machucados, mal pintados, avariavam a toda
a hora, etc.
Tudo isto exposto aos olhos dos consumidores davam ideia da qualidade
dos produtos. Entre essa sucatada, que me apressei a reformar, a “2M” tinha uns
quantos carros de serviço que andavam completamente a cair da tripeça,
impróprios para circularem nas ruas, horrivelmente pintados e com o logotipo da
companhia.
Eram pelo menos três Variant,
Volkswagen, podres. De chaparia, mecânica, pneus, tudo. Foi decidido
vender-se para a sucata, quando me lembrei de dizer que devíamos fazer primeiro
um leilão entre os empregados. Tudo bem.
Para que o leilão não demorasse muito, também se estabeleceu que se
faria ao contrário, isto é, partindo-se de um preço, alto, absurdo, e vinha-se
baixando até que alguém se manifestasse e fechasse a compra. Como se faz com
algumas lotas de peixe em Portugal onde num instante se despacha todo o peixe
apanhado.
Começou-se por quatro contos. Uma loucura. Quatro, três e novecentos,
três e oitocentos, etc.... foi baixando até que, ao chegar aos quinhentos mireis eu, que não estava nada
interessado em sucata, acabei comprando o primeiro.
Nessa altura o pessoal ficou com inveja! Tinham perdido um carro, velho
e tudo, mas por somente por quinhentos paus! Começa a venda do segundo. O mesmo
início, e lá vai o preço caindo até que ao chegar aos mil, eu voltei a fechar.
Já estava dono de dois trastes velhos. E os outros circunstantes com mais
inveja.
Começou a venda do terceiro e alguém fechou ao chegar a mil e
quinhentos.
Quando tudo terminou perguntei-me para que queria eu aquela sucata
toda? Vendi ali mesmo um deles pelo preço que me custou e reboquei o outro para
casa, para espanto dos filhos que também não entendiam a vantagem ao comprar um
lixeirol daqueles.
Deixei-o ficar, e enquanto transferia o carro para meu nome, fui
mentalizando todos os que sabiam do negócio, inclusive os filhos, que tinha
feito um acordo com uma oficina, que ia pôr aquele carro novinho em folha. E
por um preço bem camarada, incluindo a troca dos estofos, todos rasgados.
Oficina fora da cidade. E fomos falando nisso.
Um dia, depois de me ter precavido com uma corrente e boa corda, para
reboque, avisei em casa que ia levar o carro para a tal oficina. O trabalho
deveria demorar umas três semanas. O mecânico e pintor, etc., era ótimo e
estava com pouco trabalho.
Saímos de manhã cedo de Lourenço Marques a caminho da Namaacha.
Estradas sem subidas, a decrépita Variant lá se mexia mas só enquanto a estrada
era plana! Atrás, a minha mulher, mãe da turma, no nosso Jaguar lindão, um Mk-X
prateado de 1965, dando apoio, levava
as cordas e a corrente. Perto da fronteira com a Suazilândia e África do Sul
aparecem os morros. As cordas entraram em ação, rebocaram a velharia até que
chegámos ao alto, procurando não atrair muito as atenções de passantes, muito
menos da polícia. Dali para a frente era fácil. Já tinha sido previamente
explorado, e sabia até para onde ir, sempre a descer, até um pequeno posto de
venda de gasolina, com uma espécie de oficina e sucataria, território suazi.
Chegou. Era a descer, foi moleza. O dono do posto, um africano, meia
idade, forte, tranquilo, que via ali passar um carro quando o rei fazia anos,
aproximou-se.
- Good morning.
-
Good morning to you too.
Depois desta simples troca de galhardetes, propus o negócio ao homem:
- Eu ofereço-lhe este carro,
e você me deixa levar somente as placas de matrícula e os documentos.
Ele olhou-me de alto a baixo, meio desconfiado, e respondeu:
- Se não me contar a história
completa não vai deixar aqui o carro. Please go ahead and tell me ALL
the story.
-Well.
Não precisa ficar
preocupado. Não tem polícia, roubo, crime algum envolvido. Eu vou deixar o
carro aqui, você desmancha, vende peças, faz o que quiser, e eu com os
documentos e as placas vou comprar um outro, em bom estado, em Johannesburg e
levo de volta para Moçambique!
O homem mostrou os dentes. Satisfeito. Riu. Gostou da ideia. Não só
ficou com o carro como me convidou para bebermos um copo em sua casa.
A mãe, passado pouco chegava com o nosso carraço. Seguimos por outra estrada, para não chamar a atenção das
alfândegas portuguesas, e voltámos a Moçambique, saindo por Koomati Poort e
entrando por Ressano Garcia.
A Variant tinha ficado na oficina!
Cerca de três semanas depois tive que ir a Johannesburg, em serviço. O que já
naquela época não faltavam eram lojas de venda de carros usados, e Variants,
fabricadas naquele país, havia de montão, em ótimo estado, baratas. Escolhi
uma, impecável, paguei e meti-me de volta a casa. Como os documentos tinham
sido carimbados na saída para a Suazilândia, foi por lá que regressei, e no
meio do caminho, num pequeno e meio escondido canto da estrada, troquei as
placas.
A Suazilândia é um país muito simpático. Bonito, pequeno, no meio de
montanhas, um belo cassino, um pequeno mas muito bem cuidado parque de caça
para visitantes, gente afável, ótimo clima.
O meu objetivo não era o cassino nem o parque de caça, mas chegar a
casa com a Variant recondicionada! Lindona.
Da mesma cor – beje – mas com uma pintura que parecia, quase, nova!
Já noite, decidi pernoitar numa pequena localidade, Siteki, a uns
escassos quilómetros da fronteira com Moçambique. O hotel de africanos,
pequeno, extremamente confortável, com um único hóspede: eu! Jantei no
restaurante do hotel onde me serviram uma sopa ótima. Mais do que isso, com uma
colher de sopa, enorme, como eu gosto, porque não tolero comer sopa com aquelas
colheres que mais se parecem com uma espátula e não levam nada. Colher daquelas
que eu gosto. Uma maravilha.
Como seria complicado pedir a alguém para me vender ou oferecer uma
colher, decidi pelo mais difícil: roubar! O pior é que não havia mais hóspedes
no hotel, nem no restaurante! Era difícil receber um prato de sopa, comê-la
toda, e no fim não aparecer a colher usada! Mais difícil ainda porque quem
servia tinha tirado todos os outros talheres de cima da minha mesa, e
certamente ia dar por falta daquele!
No fim do jantar – muito bom - quando me apanhei só, levantei-me
furtivamente da mesa, tirei uma colher de outra mesa, escondia-a dentro das
calças e fiquei apavorado com medo que me descobrissem o roubo!
Imaginem um branco a roubar talheres num hotel de africanos, no seu
próprio país. Sofri. Lá que é verdade, é sim senhor. Só me senti tranquilo
quando no dia seguinte pela manhã, depois de ter tomado o café, sem roubar mais
nada, paguei a conta, dei uma razoável gratificação como descargo de
consciência e meti-me novamente à estrada!
O carro fez um tremendo sucesso. Todos os meus amigos queriam saber
onde ficava essa oficina que trabalhava tão bem, tão depressa e tão barato,
segundo eu afirmava. Nunca levava comigo o apontamento com o telefone do
mecânico, até que a coisa foi esquecendo!
Este carro foi depois conosco de retorno a Angola, vendido a um amigo, e
por lá deve ter acabado os seus dias.
Um contrabando...zinho, inofensivo, e um furto, tudo quase no mesmo
dia.
A esperança, agora, é que os crimes já tenham prescrito! Ainda penso
que os azares que volta e meia me assaltam são os remorsos desses atos!
Mas a verdade é que a magnífica colher de sopa é, até hoje, a colher
do, agora vovô. Não como a sopa com outra.
Escrito em 2001, e revisto
em 17/09/2014