sábado, 2 de agosto de 2014




AS  COLÓNIAS  PORTUGUESAS
E  A  DIPLOMACIA  BRASILEIRA


Apesar de gostar de guardar muito do que me vem à mão e acho interessante ou útil, desde pregos a medalhas, parafusos a cápsulas e sementes de plantas exóticas, como por exemplo aquilo a que se chama Coco de Sapucaia - castanha-sapucaia, uma lecythidaceae, Lecythis usitata (como pouca gente, rara gente conhece, vou abster-me de explicar, porque resultaria no mesmo do que explicar o paladar de um abiu - fruto de uma Sapotaceae, Pouteria caimito - a alguém que nunca o tenha visto nem provado) não sou colecionador de coisa alguma, talvez porque para se ser colecionador é necessário ter tido desde sempre, ou quase, residência estável e não mudar de casa mais de vinte vezes pela vida fora só depois de casado! De vez em quando aparecem coisas curiosas que vou guardando.
Por muito complexo que tenha havido, e ainda haja, por parte dos brasileiros, contra os portugas, a verdade é que a nível oficial sempre o entendimento foi bom. Quase. Lá bem no fundo dos bastidores é natural que de vez em quando surjam alguns pontos de atrito, mas Portugal sempre fez o que lhe foi possível para manter o Brasil como seu aliado, irmão. Que é.
Bem sei que o miserável contencioso dos dentistas brasileiros ainda navega em turvas águas, mas é das tais coisas: nem tudo pode ser perfeito.
Apesar da política ultramarina portuguesa ter ficado totalmente fora de moda, depois que a França e Inglaterra se viram forçadas a largar as suas colónias, o Brasil tinha que fatalmente estar ao lado das idéias democráticas, apoiando, pelo menos intelectualmente, a independência de todos os países que o pretendessem. Ele mesmo havia lutado por isso!
Portugal, habilidosamente, comandado pelo esperto e inteligente caipira chamado Salazar, ia mantendo o irmão Brasil como aliado, ou no máximo como abstencionista, cada vez que havia votação internacional que procurasse condenar a sua intransigente e incoerente atitude para com as colónias.
Entre as muitas manobras diplomáticas para manter os dois países unidos, e tentar mostrar ao mundo que o Brasil apoiava o governo português, este, teimoso, conseguiu um dia, em 1967, levar a Angola uma esquadra de navios de guerra brasileiros, contra toda a lógica política do Brasil, que não se queria envolver no erro colonial português.
Não sei se seria uma esquadra, apesar de ser a Força Tarefa número 11, composta de dois navios da Marinha de Guerra Brasileira, o cruzador “C Barroso” e outro o contra torpedeiro “Paraná”.

1967
Entre os dias 23 de janeiro e 27 de fevereiro, participou da comissão ASPIRANTEX 67, integrando um Grupo-Tarefa, sob o comando do ComemCh Almirante-de-Esquadra Murillo Vasco do Valle e Silva, formado também pelos C Barroso e Tamandaré e pelo CT Pernambuco. O GT visitou os portos de Recife (PE) e Luanda (Angola). Além dos oficiais instrutores e do Corpo de Alunos da Escola Naval participaram Cadetes da Escola de Aeronáutica e da Academia Militar das Agulhas Negras. As longas travessias nos trechos Rio-Recife, Recife-Luanda, Luanda-Recife e Recife-Rio proporcionaram um bom período de adaptação a longos cruzeiros a todos os alunos participantes.


O cruzador “C – Barroso”  
 Contra torpedeiro “Paraná”

Recebidos com grande pompa e circunstância chegou a Luanda talvez um milhar e meio de marinheiros brasileiros, grande parte deles mestiços ou negros, que por obra e graça de uma capciosa manobra política portuguesa, lhes proporcionou a rara e feliz oportunidade de visitar a terra de grande parte dos seus antepassados. Nem todos teriam ascendentes angolanos ou sequer africanos, mas estavam em África, de uma forma geral terra de todos eles. Das suas raízes. Das raízes de todo um povo.
Luanda, cidade relativamente pequena, foi invadida pelos brasileiros, que ali estiveram quatro ou cinco dias. A cidade, sobretudo a zona dos musseques onde vivia a quase totalidade da população nativa, não dormiu durante todo esse tempo. Ressoavam os ngomas noite e dia, a toda a hora viam-se marinheiros entrarem e saírem dos navios, uns, cara de longa farra, outros ansiosos por tomarem em terra o lugar daqueles, todos sempre em larga companhia de angolanos. Descobriram-se parentes, aprofundaram-se raízes e conhecimentos, e num instante era muito mais do que isso, que não há palavras para descrever. Foi um espetáculo maravilhoso assistir ao encontro de dois povos irmãos, e foi uma das maiores festas generalizadas que aconteceram naquela terra! Nem carnaval alguma vez se lhe comparou pela espontaneidade, emoção e alegria verdadeira.
O zarpar dos navios foi difícil. O cais apinhado com a multidão, compacta, vestida com os panos mais garridos. Velhos e novos. A despedida, entre batuque e lágrimas não terminava, e o horário previsto teve que ser esticado. Também não havia porque, numa rara ocasião como aquela, o comandante se preocupar com a pontualidade britânica. A brasileira era melhor do que ótima!
Foi bonito, esse encontro.
Ao mundo foi dito que os navios não só não eram de guerra, como estavam em manobras no Atlântico Sul, e um deles com problemas técnicos fora obrigado a arribar a Luanda! Ninguém deve ter engolido aquela explicação um tanto esfarrapada, mas não parece ter trazido qualquer problema para o Brasil, até porque os movimentos de luta pela independência de Angola estavam muito longe de dar ao mundo um exemplo de maturidade, não se entendiam entre si, e deixavam prever uma precária luta quase interminável, não fosse o esgotamento da política interna portuguesa. O exemplo dos mesmos partidos, em Angola, ainda hoje, no ano 2000, deixa muito, mutissimo, a desejar. Pobre Angola. Aliás pobres angolanos.
A explicação do Brasil foi mais uma graça da sua diplomacia, aliás sempre hábil. As autoridades portuguesas ficaram muito contentes com aquela prova de confiança e o Brasil livrou-se de ter que, a outros possíveis pedidos menos simpáticos, dizer “não”!
Quem mais gostou de tudo isto foi a população de Luanda!
Os brasileiros, saudosos, seguiram naqueles cascos cinza, atravessando devagar, com preguiça e saudade, a bonita e acolhedora baía de Luanda, rumo às suas manobras.
A bordo, peles de todas as tonalidades, almas coloridas, olhos saudosos vendo formar-se à popa um turbulento rasto na água que parecia querer voltar a ligar os dois povos, separados um dia, à força, na desumana brutalidade da escravatura.

Em 1972 Portugal tinha quase conseguido outra pequena vitória política, com a organização dos V  Jogos Desportivos Luso-Brasileiros, jogos estes a realizar em Luanda, o que pressupunha o reconhecimento, por parte do Brasil de ser Angola um território indiscutivelmente português!
Projeto interessante o comemorar-se em Luanda o sesquicentenário da independência do país formado com o sangue de tantos angolanos, o quarto centenário da publicação dos Lusíadas quando a metrópole deixou quase outros tantos séculos as colónias sem a conveniente instrução e a travessia aérea do Atlântico Sul, onde por acaso Angola se encontra sem nada ter a ver com isso. Importante era o ano da Dupla Nacionalidade a que Angola hoje devia ter direito, não fosse por outra razão seria pela sua paternidade a milhares e milhares de homens que ajudaram a formar o Brasil.
Não sei quem terá buzinado nos ouvidos do Presidente Médici que as condições para amparar a política portuguesa não era a mesma de 1967, e não era, a verdade é que, estando tudo pronto, de repente se desaprontou, e os tais V Jogos e todas as outras comemorações simplesmente não aconteceram.
Pouca gente disso teve conhecimento.
Belas medalhas comemorativas estavam cunhadas. Não foram distribuídas. Talvez destruídas.
Todas não, porque uma, não sei já como, está comigo, a inscrição numa das faces envolvendo a Cruz de Cristo, e na outra, quatro figuras de atletas fazendo jogo com a mesma Cruz.
Hoje esta medalha será uma raridade.
  

Mas que foi uma boa tentativa do Salazar... foi!


Do meu livro “Se as Minhas Imbambas falassem”, 2000, com ligeira correção.

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