AS COLÓNIAS
PORTUGUESAS
E A
DIPLOMACIA BRASILEIRA
Apesar de gostar de guardar
muito do que me vem à mão e acho interessante ou útil, desde pregos a medalhas,
parafusos a cápsulas e sementes de plantas exóticas, como por exemplo aquilo a
que se chama Coco de Sapucaia -
castanha-sapucaia, uma lecythidaceae,
Lecythis usitata (como pouca gente, rara gente conhece, vou abster-me de
explicar, porque resultaria no mesmo do que explicar o paladar de um abiu - fruto de uma Sapotaceae, Pouteria caimito - a alguém que nunca o tenha visto nem
provado) não sou colecionador de coisa alguma, talvez porque para se ser
colecionador é necessário ter tido desde sempre, ou quase, residência estável e
não mudar de casa mais de vinte vezes pela vida fora só depois de casado! De
vez em quando aparecem coisas curiosas que vou guardando.
Por muito complexo que tenha
havido, e ainda haja, por parte dos brasileiros, contra os portugas, a verdade é que a nível oficial sempre o entendimento foi
bom. Quase. Lá bem no fundo dos bastidores é natural que de vez em quando
surjam alguns pontos de atrito, mas Portugal sempre fez o que lhe foi possível
para manter o Brasil como seu aliado, irmão. Que é.
Bem sei que o miserável
contencioso dos dentistas brasileiros ainda navega
em turvas águas, mas é das tais coisas: nem tudo pode ser perfeito.
Apesar da política
ultramarina portuguesa ter ficado totalmente fora de moda, depois que a França e Inglaterra se viram forçadas a
largar as suas colónias, o Brasil tinha que fatalmente estar ao lado das idéias
democráticas, apoiando, pelo menos intelectualmente, a independência de todos
os países que o pretendessem. Ele mesmo havia lutado por isso!
Portugal, habilidosamente, comandado
pelo esperto e inteligente caipira chamado Salazar, ia mantendo o irmão Brasil
como aliado, ou no máximo como abstencionista, cada vez que havia votação
internacional que procurasse condenar a sua intransigente e incoerente atitude
para com as colónias.
Entre as muitas manobras
diplomáticas para manter os dois países unidos, e tentar mostrar ao mundo que o
Brasil apoiava o governo português, este, teimoso, conseguiu um dia, em 1967,
levar a Angola uma esquadra de navios de
guerra brasileiros, contra toda a lógica política do Brasil, que não se
queria envolver no erro colonial português.
Não sei se seria uma esquadra, apesar de ser a Força Tarefa número 11, composta de dois
navios da Marinha de Guerra Brasileira, o cruzador “C Barroso” e outro o contra torpedeiro “Paraná”.
1967
Entre os dias 23 de janeiro e 27 de
fevereiro, participou da comissão ASPIRANTEX 67, integrando um Grupo-Tarefa,
sob o comando do ComemCh Almirante-de-Esquadra Murillo Vasco do Valle e Silva,
formado também pelos C Barroso e Tamandaré e pelo CT Pernambuco. O GT visitou
os portos de Recife (PE) e Luanda
(Angola). Além dos oficiais instrutores e do Corpo de Alunos da Escola
Naval participaram Cadetes da Escola de Aeronáutica e da Academia Militar das
Agulhas Negras. As longas travessias nos trechos Rio-Recife, Recife-Luanda,
Luanda-Recife e Recife-Rio proporcionaram um bom período de adaptação a longos
cruzeiros a todos os alunos participantes.
Contra
torpedeiro “Paraná”
Recebidos com grande pompa e
circunstância chegou a Luanda talvez um milhar e meio de marinheiros
brasileiros, grande parte deles mestiços ou negros, que por obra e graça de uma
capciosa manobra política portuguesa, lhes proporcionou a rara e feliz oportunidade
de visitar a terra de grande parte dos seus antepassados. Nem todos teriam
ascendentes angolanos ou sequer africanos, mas estavam em África, de uma forma
geral terra de todos eles. Das suas
raízes. Das raízes de todo um povo.
Luanda, cidade relativamente
pequena, foi invadida pelos brasileiros, que ali estiveram quatro ou cinco
dias. A cidade, sobretudo a zona dos musseques onde vivia a quase totalidade da
população nativa, não dormiu durante todo esse tempo. Ressoavam os ngomas noite e dia, a toda a hora
viam-se marinheiros entrarem e saírem dos navios, uns, cara de longa farra,
outros ansiosos por tomarem em terra o lugar daqueles, todos sempre em larga
companhia de angolanos. Descobriram-se parentes, aprofundaram-se raízes e conhecimentos,
e num instante era muito mais do que isso, que não há palavras para descrever.
Foi um espetáculo maravilhoso assistir ao encontro de dois povos irmãos, e foi
uma das maiores festas generalizadas que aconteceram naquela terra! Nem
carnaval alguma vez se lhe comparou pela espontaneidade, emoção e alegria
verdadeira.
O zarpar dos navios foi
difícil. O cais apinhado com a multidão, compacta, vestida com os panos mais
garridos. Velhos e novos. A despedida, entre batuque e lágrimas não terminava,
e o horário previsto teve que ser esticado. Também não havia porque, numa rara
ocasião como aquela, o comandante se preocupar com a pontualidade britânica. A brasileira era melhor do que ótima!
Foi bonito, esse encontro.
Ao mundo foi dito que os
navios não só não eram de guerra, como estavam em manobras no Atlântico Sul, e
um deles com problemas técnicos fora obrigado a arribar a Luanda! Ninguém deve
ter engolido aquela explicação um tanto esfarrapada, mas não parece ter trazido
qualquer problema para o Brasil, até porque os movimentos de luta pela
independência de Angola estavam muito longe de dar ao mundo um exemplo de
maturidade, não se entendiam entre si, e deixavam prever uma precária luta
quase interminável, não fosse o esgotamento da política interna portuguesa. O
exemplo dos mesmos partidos, em Angola, ainda hoje, no ano 2000, deixa muito,
mutissimo, a desejar. Pobre Angola. Aliás pobres angolanos.
A explicação do Brasil foi mais uma graça da sua diplomacia, aliás sempre hábil. As
autoridades portuguesas ficaram muito contentes com aquela prova de confiança e
o Brasil livrou-se de ter que, a outros possíveis pedidos menos simpáticos,
dizer “não”!
Quem mais gostou de tudo
isto foi a população de Luanda!
Os brasileiros, saudosos,
seguiram naqueles cascos cinza, atravessando devagar, com preguiça e saudade, a
bonita e acolhedora baía de Luanda, rumo às suas manobras.
A bordo, peles de todas as
tonalidades, almas coloridas, olhos saudosos vendo formar-se à popa um
turbulento rasto na água que parecia querer voltar a ligar os dois povos,
separados um dia, à força, na desumana brutalidade da escravatura.
Em 1972 Portugal tinha quase
conseguido outra pequena vitória política, com a organização dos V
Jogos Desportivos Luso-Brasileiros, jogos estes a realizar em Luanda, o
que pressupunha o reconhecimento, por parte do Brasil de ser Angola um
território indiscutivelmente português!
Projeto
interessante o comemorar-se em Luanda o sesquicentenário
da independência do país formado com o sangue de tantos angolanos, o quarto
centenário da publicação dos Lusíadas quando a metrópole deixou quase outros
tantos séculos as colónias sem a conveniente instrução e a travessia aérea do
Atlântico Sul, onde por acaso Angola se encontra sem nada ter a ver com isso.
Importante era o ano da Dupla Nacionalidade
a que Angola hoje devia ter direito, não fosse por outra razão seria pela
sua paternidade a milhares e milhares de homens que ajudaram a formar o Brasil.
Não sei quem terá
buzinado nos ouvidos do Presidente Médici que as condições para amparar a
política portuguesa não era a mesma de 1967, e não era, a verdade é que,
estando tudo pronto, de repente se desaprontou, e os tais V Jogos e todas as
outras comemorações simplesmente não aconteceram.
Pouca gente disso
teve conhecimento.
Belas medalhas
comemorativas estavam cunhadas. Não foram distribuídas. Talvez destruídas.
Todas não, porque
uma, não sei já como, está comigo, a inscrição numa das faces envolvendo a Cruz
de Cristo, e na outra, quatro figuras de atletas fazendo jogo com a mesma Cruz.
Hoje esta medalha
será uma raridade.
Mas que foi uma
boa tentativa do Salazar... foi!
Do meu livro “Se as Minhas Imbambas falassem”, 2000,
com ligeira correção.
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