quarta-feira, 25 de junho de 2014



Reduções e Bandeiras
Brasil – século XVII

Em março de 1549, chegaram ao Brasil os primeiros padres jesuítas que de depararam com enormes dificuldades em iniciarem o processo de catequização indígena em massa.
Não tardou muito a perceberem o interesse dos portugueses em escravizar os índios, e o modo de melhor os defenderem foi migrarem as missões para cidades interioranas. Além de ensinar a doutrina católica, os jesuítas iniciaram o trabalho de orientação agrícola para que vivessem independentes e afastados dos colonizadores portugueses.
Os índios, que viviam como nômades percorrendo grandes distâncias em busca do melhor lugar para ficarem, passaram a sedentários com o cultivo da terra, já que conseguiam alimentar tribos inteiras com o trabalho agrícola.
Entretanto, graças a isso, os colonizadores descobriam e mandavam prender e torturar grandes aldeias, que se chamaram às missões de “reduções”, na intenção de obterem mais escravos para negociarem.
A esses ataques de rapina humana passou a chamar-se “bandeiras”.
Na época em que Portugal e Espanha estavam governados por um mesmo rei, foi publicada a partir de 1607 uma série de decretos que protegiam as missões, dando-lhes total autonomia desde que houvesse ali um representante da Coroa. Ao mesmo tempo se proibiu o acesso de mestiços e negros, e se deram salvaguardas para os índios reduzidos a fim de que não pudessem ser capturados pelos encomenderos, os caçadores de escravos. O resultado dessas novas medidas foi que grande número de indígenas buscou proteção dentro das reduções, num período em que crescia aceleradamente a demanda por escravos, e os ataques ilegais aos aldeamentos também se multiplicavam. Calcula-se que somente na década de 1630 tenham sido mortos ou aprisionados cerca de 30 mil nativos na região do Paraguai. Em todas as reduções foram aldeados muitos indígenas, atingindo 10.000 almas a de São Cristóvão e em outras a 8 e 7 mil.
As reduções jesuíticas no território riograndense chamaram a aten­ção dos bandeirantes que viram nesses centros de população viveiros de indígenas propícios às suas caçadas.
Era, além disso, voz corrente na época, que o solo riograndense encerrava ricas minas de metais preciosos.
Para ali se dirigiu e penetrou a primeira bandeira paulista, em 1636, pelo «caminho marítimo», como dizem duas grandes autoridades nesse assunto.
A bandeira que penetrou no território riograndense era chefiada pelo famoso paulista António Raposo Tavares. Saíra de São Paulo em Janeiro, constituída por 120 paulistas e 1.000 tupis, tendo sido engrossada na sua travessia.                                                                 
Em Novembro penetrou no território que demandava e a 3 de Dezembro seguinte atacou a redução de Jesus Maria, onde penetrou triunfante, depois de seis horas de encarniçada e sangrenta luta. Os habitantes da redução, que orçavam em cerca de 10.000, retiraram-se em desordem.
Avançou em seguida para São Cristóvao, que foi abandonada pre­cipitadamente.
Aí retornaram os padres, à frente de grande número de neófitos, e travaram a 25 de Dezembro formidável combate com os bandeirantes. Estes obtiveram vitória no fim de cinco horas de luta, já ao cair da noite, de cujas sombras se aproveitaram os vencidos para hábil retirada.
Os governadores de Buenos Aires e do Paraguai negaram-se a socorrer os jesuítas e, por isso, estes, sem elementos para uma resistência eficaz, resolveram abandonar as povoações que haviam estabelecido nas margens do Jacuí e dos seus afluentes e foram-se localizar com os catecúmenos que puderam salvar, na mesopotâmia argentina (entre os rios Uruguai e Paraná).
Em Junho de 1637 já estava Raposo Tavares de regresso a São Paulo, com enorme botim e grande número de aborígenes apresados durante a sua aterradora incursão.
A segunda bandeira rumo ao Sul, foi a de Francisco Bueno que, saindo de São Paulo em começo de 1637, penetrou, em Maio, no território riograndense e em Dezembro atacou a redução de Santa Teresa, que ofereceu fraca resistência.
Os indígenas, pelo temor que tinham dos paulistas, preferiram fugir ou entregar-se, sem combater.
Daí marchou o chefe bandeirante para as reduções localizadas nas margens dos tributários orientais do Uruguai, atacando, no começo de 1638, Todos os Santos, São Carlos, Candelária, e São Nicolau, onde houve sangrento combate, o último dessa cruzada que obrigou os jesuítas a abandonarem todas as povoações do Noroeste riograndense, para, com os seus catecúmenos se localizarem, juntamente com os que abandonaram as do Jacuí, entre os rios Uruguai e Paraná, no actual território da Provín­cia de Comentes, na República Argentina.       
Uma parte desta bandeira voltou para São Paulo em fins de 1638 e a outra em começo de 1639, tendo, assim, permanecido nos sertões cerca de dois anos, em lutas contínuas com o homem e com a natureza.
Foi a bandeira de Francisco Bueno que anulou o poderio dos jesuí­tas e a posse espanhola na margem esquerda do Uruguai ou seja no terri­tório que havia de constituir mais tarde a Capitania de São Pedro.
Outras bandeiras penetraram no território riograndense no decurso do século XVII – entre elas a que teve como chefes Domingos Cordeiro e Pascoal Leite Pais. este irmão do Caçador de Esmeraldas e que foi derro­tado pelo cacique Nicolau Nienguirú, no combate travado em Caaçapa-guassú em 1639 onde morreu o padre Alfaro.
Este sacerdote, que era dotado de espírito combativo, vendo a indecisão e receio do governador paraguaio Pedro de Lugo, que procurava evitar combate com o inimigo à vista, enfrentou este, a cavalo, encora­jando os indígenas. Foi por essa ocasião atingido por uma bala no olho esquerdo e teve morte instantânea.
Esse acontecimento encheu de cólera os indígenas e, sob as ordens de Nienguirú, como feras raivosas, caíram sobre os bandeirantes e os des­troçaram completamente.
A bandeira de Jerónimo Pedroso, derrotada no Mbororé a 11 de Março de 1641, transitou pelo território riograndense, embora não fosse este o seu objectivo nem aí o seu campo de acção, como asseveram alguns historiadores, na suposição de que o Mbororé corre, como eles dizem, «no sertão sulino do Rio Grande».
Aquele arroio é tributário da margem direita do Uruguai. Aí foram, mais tarde, atacados pelos indígenas capitaneados pelos jesuítas.
As razias dos bandeirantes convenceram aos jesuítas de que lhes era impossível manterem-se no território da margem esquerda do Uruguai e, por isso, tomaram a resolução de abandonar essa região, levando os indígenas para as reduções na argentina.
O aborígene riograndense teve então oportunidade de revelar entra­nhado apego ao solo natal.
Tão forte era nele esse sentimento que, a despeito da obediência servil em que fora educado, desatendeu aos padres, recusando-se a segui-los, preferindo o cativeiro sob o domínio dos paulistas ou o retorno às selvas, ao abandono da terra em que nascera e vivia.
Este sentimento tão altamente revelado e que tanto impressionou. os padres foi por estes explorado mais tarde, para se oporem ao tratado de 1750, originando esse procedimento a guerra guaranítica.
Foi um espectáculo impressionante e selvagem o abandono daquele território: as povoações foram incendiadas pelos próprios habitantes que, em seguida, dirigidos pelos padres, iniciaram a retirada, tardos, tristonhos, chorosos, como um rebanho tangido pelos padres.
Muitos se desgarraram durante a marcha e se internaram nos matos, onde foram respirar desafogados e satisfeitos, pela liberdade e pela alegria de ficarem.
Outros levaram a desobediência até ao sacrilégio, como aconteceu. com os que eram conduzidos pelo padre Alfaro, que chegaram ao ponto de quebrar o altar portátil deste sacerdote.
Um tuxava da redução de São José ameaçou de morte o padre Cataldino, que se prostrou de joelhos, entregando-se ao golpe que o cacique não quis desferir, impressionado com aquela atitude ou condoído da humildade.
Os que maior resistência ofereceram ao abandono da terra natal foram os da Província do Tape.
Foi uma luta tenaz e hercúlea a dos jesuítas durante esta emigração e, a despeito da energia inquebrantável, da coragem inexcedível, da grande ascendência que tinham sobre os indígenas, poucos, relativamente ao nú­mero de aldeados, foram os que chegaram à margem direita do Uruguai.
A maioria ficou no território natal, refugiada, dos padres e dos ban­deirantes.
Aí retornaram os jesuítas, durante alguns anos, com o seu notável e jamais igualado poder de persuasão, a fim de convencerem os recalci­trantes ao abandono da terra natal.
O resultado dessa tenacidade sem par, não foi nulo - mas não cor­respondeu ao esforço empregado.             
O apego do aborígene à terra do nascimento obrigou os jesuítas a transportarem-se novamente para a margem esquerda do Uruguai.
Aí fundaram, a partir de 1687, os sete povos de Missões, onde desen­volveram notável progresso industrial e agrícola, com a utilização do braço indígena.
Foi adoptada uma planta única para todas as reduções: uma praça quadrada, com 250 metros em cada face. A frente ficava para o Norte. Na face do Sul erguia-se o templo, sumptuoso, de 3 ou 5 naves, ficando a entrada voltada para a parte interna da praça.
O templo era ladeado pelo cemitério e pelo Colégio, onde residiam os padres e ao seu lado estavam as oficinas, os asilos, a sala de música e os depósitos. Ao fundo, abrangendo em largura as repartições mencionadas, ficava a horta.
Do lado oposto, isto é: no alinhamento do cemitério, ou seja na face de leste, fica­vam: o hospital, a cadeia e o quartel. Tanto na face da entrada da praça como nas que lhe eram laterais ficavam os alojamentos dos indígenas, com amplas salas sem repartições, destinadas às famílias, que aí dormiam e preparavam os seus alimentos.
As reduções eram constituídas por seis, doze e até mais quadras ou quarteirões paralelos, com diversas ruas.
Os quarteirões eram de cem metros de frente por quinze de fundo. Tinham duas frentes e em cada uma destas vinte salas, com uma porta e uma janela. Essas salas eram separadas no sentido longitudinal por uma parede de um metro de espessura, onde assentava a cumieira. Os quartei­rões eram circundados por alpendre. Os edifícios eram cobertos de telha.
Na sede das estâncias de cada redução havia pequenos ranchos para o alojamento do pessoal aí destacado. Todas as estâncias tinham a sua capela, construída de pedra e coberta de telha.
Nas reduções, antes de clarear o dia, rufavam-se os tambores para dispertar os indígenas, mas somente uma hora depois lhes era permitido deixarem o leito. Fazia-se isso em observância aos preceitos que Tomás Campanella julgava necessários para o aperfeiçoamento da raça!
Ao ser tangido, porém, o sino grande do campanário, todos se levan­tavam para as suas orações matinais e iam depois tomar o primeiro alimen­to, isto é, o mate e em seguida fumar.
Às 7 horas no verão, e às 8 no inverno, todos principiavam a traba­lhar: os artífices nas diversas oficinas, sendo as mulheres nos teares.
Os trabalhadores agrícolas reuniam-se em frente à igreja e daí partiam encorporados para a lavoura, conduzindo em andor a imagem de Santo Izidro - o padroeiro dos agricultores.
O regresso e o retorno eram também feitos em procissão. Ao meio dia todos almoçavam nas suas casas. Finda a refeição retornavam ao trabalho, até ao pôr do Sol.
Cada casal dispunha de pequeno trecho de terra onde trabalhava para si dois dias na semana.
A sobra do fruto que aí colhia, não podia vendê-la - era trocada com seus irmãos de raça ou recolhida aos depósitos da redução.
Os indígenas sob o domínio dos jesuítas não possuíam dinheiro.
Depois do toque de silêncio na redução, às 8 horas no inverno, e às 9 no verão, não era permitido o trânsito pelas ruas e ninguém saía dos seus dormitórios.
É longa e triste a história destas reduções e das bandeiras. Todo o magnífico trabalho dos missionários terminou quando foram expulsos da colônia portuguesa do Brasil em 1759 através de um decreto do Marquês de Pombal.

N.- Texto recolhido do trabalho “A Capitania de São Paulo” do escritor, historiador e general brasileiro Emílio Fernandes de Sousa Docca (1884-1945) 

22/06/2014


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