quarta-feira, 20 de abril de 2011



Quando os Mares

eram de Portugal



O Infante Dom Henrique, apesar das repetidas viagens que ordenava, via que os seus navegadores não se atreviam a dobrar o cabo Bojador. Doze anos levou nesta insistência, sem nunca o conseguir, porque «... este cabo do Bojador he muito perigoso, por causa de hüa muito grande restingua de pedra que d’elle saee ao mar mais de quatro ou sinco leguoas... e asy os mareantes que com elles hiam, nam ousaram passar aleem... e como eram acerca do Bojador e hachauam o fundo baixo, que em três braças dauguoa estauam hüa leguoa de terra, e espantando-se das grandes correntes nenhum ousaua de se alarguar ao mar e passar alem d'este parçel, e entam se tornauam á costa de Barberia e de Graada, bonde andauam d’armada pera tomarem alguüas presas com que forrassem a despesa d'armaçam; e por nam passarem o dito cabo o Infante recebia d'isto grande des-prazer...» (1).

«Um dia, Gil Eanes, tendo partido para uma dessas viagens, chega às Canárias e traz, como prova, alguns cativos. O Infante anima-o, incita-o a ir mais longe e, teimando sempre, fá-lo sair para nova viagem, em 1434, em que Gil-Eanes dobra o cabo Bojador, chega à Angra dos Ruivos, desembarca e, regressando, veio contar ao Infante como sairá em a terra sem achar gente, ou pouoação algüa & que lhe parecera mui fresca e graciosa: & que em sinal de não ser tam esterele como as gentes diziâo, traria ali a sua mercê em um barril cheo de terra, hüas hervas q se parecião com outras que cá no Reyno tem flores a que chamâo rosas e de sancta Maria» (2).

O Infante recebeu-o com imensa alegria, e as modestas ervas, se não foram postas no altar onde fazia as suas orações de cristão, foram-no, com certeza, no que erigira à sua obsidiante idea, que o novo moto que pensava em adoptar para a sua vida – IDA - melhor definia, e que ele servia com a sua fé de iluminado, e onde, pela sua vontade inque¬brantável, as pobres ervas rejuvenesciam e, da mesma forma que as da Rainha Santa Isabel eram a transformação do óbulo que levava no seu regaço, estas na sua simplicidade e pobreza, representavam o imenso valor que as terras de África guardavam.
El-Rei D. Duarte também não escondia a sua satisfação e o Infante aproveita a oportunidade e, incita agora Afonso Baldaia, que fora com Gil Eanes, a voltar, dizendo-lhe, para o convencer: “se vos achastes rasto d'homens e de camelos, parece que a povoação não é d'ali muito afastada, ou por ventura será gente que atravessa com suas mercadorias para algum porto de mar, onde haja algum ancoradouro seguro para os navios receberem carga... » Baldaia hesita, mas o Infante insiste e com novas razões o convence, pelo que ele parte para a descoberta, levando dois cavalos que o Infante lhe dera, para que ao desembarcar, mandasse alguém neles pela terra dentro, quanto pudessem, «esguardando bem a «todallas partes se veryam algüa povoraçom, ou gente que fizesse vyagem er alguu caminho... » (Azurara), mas que não levassem armas de defesa e apenas suas lanças e espadas.

Navegaram mais para o sul que na viagem anterior e, desembar¬cando, mandou Baldaia dois dos seus montar nos cavalos, e que fossem procurar a povoação. «Censuro aquy duas cousas, diz aquelle que screveo esta estorya: a primeira qual maginaçom serya no pensamento daquelles homees, veendo tal novidade, scilicet, dons moços assy atrevidos de coor e feiçooês tam stranhas a elles; ou que cousa podyam cuidar que os ally trouxera, e ainda em cima de cavallos, com lanças e spadas, que som armas que alguü delles nunca vira! Por certo eu magino que a fraqueza de seus coraçoões nom fora tamanha, que se nom teverom com o elles com mayor ardideza se o spanto da novidade nom fora. A segunda cousa he o atrevimento daquelles dous moços, seendo assy em terra stranha, iam allongados de socorro de seus parceiros, e filharem ousyo de cometer tamanho numero, cujas condiçoões em arte de pellejar, eram a elles tam duvydosas » (3).

Foram duas crianças de 15 e 17 anos, Heitor Homem e Diogo Lopes de Almeida, os heróis deste valoroso feito. Se a Azurara, conhecedor dos actos de heroísmo, então tão frequentemente praticados pelos nossos cavaleiros, mereceu referência especial o destas crianças, para nós, cinco séculos passados, apesar dessa África ter sido trabalhada com a vida de milhares dos nossos que lá têm ficado com tanta glória, atinge proporções extraordinárias.
Que poder imenso de persuasão, que esmagador domínio era o do Infante, para fazer arrostar com todos os preconceitos sobre os perigos da África, que a tradição incutira nos nossos? Já não são os homens, que ele poderia seduzir, mais ou menos, com promessas, excitando-lhe assim o interesse. Eram duas crianças, 15 e 17 anos! criadas e edu¬cadas na lenda do sobrenatural, que, magnetizadas e sugestionadas, desembarcam na costa da África de então, que não podemos com¬preender o que representaria no seu espírito, quando ainda hoje para parte das nossas populações do interior é qualquer cousa de horrível, e, montando a cavalo, um sorriso nos lábios, a lança no arção da sela, eles aí vão, trotando sete léguas pelo Desconhecido, avançando para o fim do Mundo, que lhes tinham ensinado que acabava ali adiante, onde as nuvens do Céu tocavam a terra que pisavam. Encontram dezanove negros, armados com zagaias, que ao vê-los se juntam em magote e fogem para uns penedos; mas eles avançam, procuram-nos e os negros atacam-n'os com as zagaias, indo ferir um deles num pé. Estão sozinhos num mundo novo para eles, mas não se amedrontam e avançam até tirarem vingança, e só então, já de noite, regressam ao seu navio, sem dúvida guiados e accionados pelo espírito do Infante, que os alumiou na escuridão do seu caminho, pois só de madrugada chegaram à praia donde tinham partido!


(1) Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira.
(2) João de Barros - Dec. Iª da Ásia, liv. 1, cap. III.
(3) Azurara - Crónica da Guiné

In: APONTAMENTOS SOBRE A O INÍCIO DOS PORTUGUESES NO CONGO, ANGOLA E BENGUELA – Extraídos de documentos históricos, coligidos por Alfredo de Albuquerque Felner.

20/04/2011

















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