domingo, 20 de fevereiro de 2011


Duas histórias de VOLTAIRE

 

Voltaire gostava de representar as suas tragédias no seu teatro em Ferney: o seu maior prazer era de aí representar um papel; nunca algum comediante, o mais entusiasta, se tinha ocupado com tanto ardor, como ele, com o personagem lhe que cabia.
Queria que o seu traje ficasse pronto com oito dias de antecedência, e dava uma imensa canseira aos alfaiates pelas freqüentes e minuciosas alterações que lhes mandava fazer. Um dia, devia representar o papel de Cícero em Catilina, vestiu logo pela manhã a sua toga romana, e saiu para o jardim a recitar o seu papel; que interrompia para dar algumas instruções ao jardineiro.
Este espantado de ver o seu amo naquela figura não conseguiu reter uma gargalhada. Voltaire irritou-se profundamente:

- “O que você acha de estranho na minha roupa? Cícero passeava como eu no seu pomar antes de ir para o senado: eu o represento esta noite; acha que deveria usar duas toiletes?”
Voltou para dentro de casa de mau humor sem perdoar ao jardineiro de ter rido no nariz de Cícero.



 O belo palácio - Chateau - de Ferney


Voltaire gostava muito dum filhote de águia que vivia presa numa gaiola no seu palácio de Ferney. Um dia o jovem – águia – se envolveu com dois galos e foi gravemente ferido. Voltaire, desolado, mandou um “expresso” a Geneve com ordem de trazer um homem que passava por hábil “médico de animais”. Na sua impaciência não fazia outra coisa se não ir do ninho do pássaro à janela do seu quarto, donde se avistava a estrada; por fim apercebeu-se do seu mensageiro trazendo atrás o “que Esculápio tanto desejava”; deu um grito de alegria, correu para ele, recebeu-o de forma especialmente acolhedora, pediu-lhe e prometeu-lhe muito, em favor do seu doente. O aldeão muito espantado com aquela recepção a que não estava acostumado, examinava as feridas da jovem águia. Voltaire inquieto, procurava ler nos seus olhos os seus receios ou esperanças. O “doutor” declara com ar convicto que não se podia pronunciar antes do nascer do sol, e prometeu voltar no dia seguinte, depois de ter sido generosamente pago. Até ao dia seguinte Voltaire não sossegava; enfim a decisão foi que não respondia pelos dias da águia. Nova fonte de inquietudes.
A primeira pergunta que Voltaire fazia cada manhã a uma das suas criadas, chamada Madalena, encarregada de o acordar, era: “Como está a minha águia?” – “Bem docemente, meu senhor, bem docemente.” Um dia Madalena responde-lhe a rir: - “Ah! Meu senhor, a vossa aguiazinha já não está doente.” – “Ele melhorou! Que benção!” – “Ele morreu!” – “Morta a minha águia! E você me anuncia essa notícia a rir?” – “Pela minha fé, meu senhor, ele estava tão magro!” – “Como magro!” gritou Voltaire, furioso; “que bela razão! Você não tem outra coisa a fazer se não matar-me porque eu sou magro. Olha a velhaca! Rir da morte da minha pobre águia porque estava magra! Lá porque você tem o cu gordo, pensa que só a gente da sua espécie tem direito à vida? Saia, saia já daqui.”



 Voltaire... magrinho!


Madame Denis acorreu aos gritos do seu tio, e perguntou-lhe porque estava tão colérico. Voltaire contou-lhe, sempre resmungando: “Magro! Magro!... é preciso então que me matem, a mim...” E exige que Madalena seja despedida. A afeiçoada sobrinha tem que obedecer, e manda que a desgraçada se mantenha escondida no palácio. Ao fim de dois meses Voltaire perguntou por ela. “Ela esta bem infeliz, diz-lhe madame Denis; não conseguiu arranjar trabalho em Geneve desde que se soube que ela tinha sido despedida do palácio de Ferney.” – “É culpa dela. A que propósito rir da morte da minha águia só porque estava magra?... Mas também não quero que ela morra de fome; manda-a voltar; mas que nunca mais se apresente na minha frente, entendeste?” – “Oh! Meu tio, ela terá cuidado.” – “Mas que tome atenção.”
Eis que Madalena sai do seu esconderijo, mas evitando encontrar o seu amo.. No entanto um dia Voltaire ao sair da mesa, encontra-se face a face com ela; Madalena fica aflita, baixa os olhos, cora, e quer balbuciar alguma desculpa. – “Não falemos mais nisso” disse-lhe Voltaire; “mas ao menos lembra-te que não é preciso que me matem por eu ser magro!”

“Avant-Propos” in “Pensées, ... de Voltaire” – Imprimerie de A. Égron. An X. 1802. Ouvrage posthume.

Rio, 19/02/2011

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