sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

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Histórias do século...

repassado!

Camilo e António Arroyo



Camilo era um conversador inigualável, e adorava contar as suas histórias e anedotas.
No livro “Singularidades da Minha Terra”, (impresso em 1917), António Arroyo conta:
“Vi Camilo a primeira vez quando ele vestia como Rafael Bordalo Pinheiro o apresenta no “Album das Glórias”: de botas altas á frederica, sobretudo cintado de ratina, e chapéu alto levemente conico, de aba direita.
Camilo, segundo Rafael Bordalo Pinheiro


Eu morava então no Porto a meio da rua de Santo Antonio, e o romancista subia lentamente do lado oposto, para se abrigar do sol, a mão direita apoiada na bengala. Vinha talvez da Praça Nova... e certamente encaminhava-se para o seu jantar, por volta das 3 ou 4 horas da tarde. Há quarenta ou cincoent’anos jantava-se cedo na cidade da Virgem.
Passados tempos, Camilo veio uma noite com D. Ana Plácido e seus filhos ao nosso estabelecimento (Meu pae foi negociante de musicas, pianos e outros instrumentos músicos no Porto) comprar dois clarinetes para os rapazes. Meu pae ainda teimou com o romancista para lhe vender de preferência dois fajolés; não porque fossem mais baratos, mas por serem mais fáceis de tocar e portanto menos impróprios para as creanças. Mas Camilo insistiu: “Eles é que queriam”.
Decorreram anos sem que voltasse a vê-lo, até que aí por 1882 ou 1883, estando eu nas Obras Públicas de Braga, tive freqüentes vezes de me cruzar com ele na Arcada. Já não trajava como no Album das Glórias; vestia como qualquer de nós.
António Arroyo, por João da Silva


Camilo morava então em S. Miguel de Seide e apareceia muitas vezes na cidade dos Arcebispo, onde tinha um amigo íntimo, amigo meu também, João de Mendonça... a quem eu contara as relações artísticas que noutro tempo haviam ligado meu pae ao grande escritor, quis por vezes apresentar-me a ele. Resisti sempre. ... já pensava, como hoje, que aos homens de valor devem aborrecer soberanamente as impertinências da miuçalha.
Era com pesar que insistia na recusa; porque queria ouvi-lo acerca de uma peça de teatro, de costumes minhotos, feita por ele Camilo, que dava a letra, e por meu pae, que punha a musica. Das conversas paternas retenho que ali havia uma cena de arraial e que, a folhas tantas,devia aparecer a sombra de um macho. A peça tinha entrado em ensaios, mas tudo ficou em águas de bacalhau: Camilo não terminou a sua parte.
Creio que isto se passou aí por 1860 ou 1861. Meu pae era empresário do teatro Camões do Porto, situado na rua das Liceiras, que das trazeiras da Trindade sobe para a rua do Almada. Dera várias peças, entre as quais o drama sacro “São Gonçalo de Amarante” com musica sua. Em 1861 ou 1862, desgostoso da carreira musical que, para o seu caracter altivo e extremamente vivo, lhe trouxera muitos dissabores e desilusões, abandonou-a por completo; o compositor e executante musical consagrou-se desde então apenas á vida de comercio.
Mas, voltando ao que ia dizendo, ainda hoje me penalisa não ter tido a coragem para me dirigir a Camilo e falar-lhe dessa peça. Afinal, passar mais ou menos uma vez na vida por pateta que importava?...
Estava porém escrito que falaria com o grande homem. Um dia, indo de Braga para o Porto e achando-se já instalado e só no meu compartimento... vejo entrar Camilo que, com toda a tranqüilidade e vagar se senta na minha frente. Mas, vai senão quando, ele tira o chapéu, passa a mão pela fronte e, olhando-me bondosamente, desfecha-me à queima roupa a seguinte pergunta:
- Então, snr. Arroyo, que me diz de Braga, que lhe parece Braga?
Nunca, em momento algum, me haviam feito uma pergunta que tanto me embaraçasse e surpreendesse. Fiquei engasgado sem saber o que dizer-lhe. Calei-me. Ele, porém, desde logo obstou á continuação do meu embaraço, indemnisando-me largava da peça que me havia pregado.
Porque na mais fluente e portugueza linguagem que jamais ouvi, e chamando sempre ás pessoas pelo seu nome, foi-me contando varias anedotas passadas na capital do Minho que, para seu pesar, não era já em 1882 o que havia sido vinte ou trint’anos atrás.

... de todos os casos que ouvi... é o engraçado e angustioso episódio do “Faz de conta”:
Havia em Braga, a meio não sei de que rua, um arco baixo e grosso, que uma camara municipal qualquer julgou necessário demolir. A demolição fez-se e passou desapercebida, porque o arco não tinha quaisquer qualidades artísticas nem utilidade.
Dava-se porém com ele uma particularidade que o tornava querido das mais devotas servas do Senhor, e lhe creara uma especialíssima função. Porque, no maior círio ou procissão que, nesses tempos felizes, anualmente percorria as ruas da cidade augusta, figurava sempre um altíssimo e pesado estandarte, S. P. Q. R., vulgarmente chamado Guião, ou guiador do cortejo o qual tinha que passar por baixo do arco, mas de uma forma que não brigasse com o caracter grave e a harmonia festiva do conjunto. Para o conseguir viam-se obrigados a tombar o pendão para a frente e a passá-lo em posição que mais parecia de arremeter. Um antigo e venerando uso impunha que a passagem fosse levada a efeito só pelo porta-estandarte na plena consciência da sua missão: ele deveria, portanto, agüentar o pendão a pulso firme, inclinando-o docemente para a frente, em passo sempre lento, e nobre atitude. E assim se fazia desde tempos esquecidos, segundo o ritual sagrado, verdadeiro triunfo da força bruta posta ao serviço das cousas santas.
A esse triunfo assistia sempre, possuído do maior amor divino, o madamosmo da cidade que, a peso de ouro, e outras formas equivalentes, disputava a posse das varandas e janelas próximas do arco, apenas para aquele momento supremo e enternecedor.
Para a tremenda prova ia sempre chamar-se o mais perfeito latagão da cidade e seu termo. Esse era o herói destinado a manter intactos, numa continuidade porventura secular, o brio, a força e a gloria do burgo bracarense. Nunca o culto da beleza plástica se revelára tão francamente espiritual.
Demolido o arco na indiferença geral, sucedeu porém que só lhe deram pela falta no próprio momento em que a procissão ia passar pelo local da façanha; e, a um tempo, madamismo e povo, no auge duma violenta surpresa, sentiram-se roubados e feridos na sua mais profunda afeição, pela obra nefando dos pedreiros livres.
Chega por fim o homem do guião. Não vê o arco, estarrece, estaca, e com o couto da pesada lança, bate de rijo na calçada. Erguendo depois os olhos desvairados, numa anciã alucinante, como que a pedir que o ajudassem a salvar o brio e a honra de todos, percorre lentamente as varandas e janelas donde, áquela hora solene, pendiam as mais lindas colchas do oriente, os mais lindos veludos e damascos e se debruçavam, para o ver bem, não menos indecisas e agitadas do que ele, as senhoras mais formosas de todo o distrito.
Mas então, alguém, subitamente incumbido pelos deuses, resolveu o inesperado caso, dentro dos ritos e usos consagrados, ordenando impetuosamente: “faz de conta, faz de conta”.
E todo o madamismo e seus acólitos, e todo o povo como uma só pessoa, arquejando numa onda de arrebatamento indescritível, repetiam em loucos gritos: “faz de conta, faz de conta, faz de conta...”
Era o amor triunfante, o amor sem gramática, o amor de muitas gerações concentrado nesse ser de eleição e comunicando-lhe um ardor eu lhe centuplicava as forças. E o homem do pendão, sentindo-se arrastado por essa onda de ternura percursôra da vitoria, inclinava-o suavemente para a frente; e, lento, sorridente, na mais hierática atitude e na posse absoluta de todos os corações, caminhou para além do sítio onde o arco havia estado e rigorosamente cumprindo as funções dum bom arco bracarense.

Salvára-se a honra da cidade. Mas a partir do ano seguinte, desaparecia para todo o sempre a encantadora façanha e o seu herói anual.

Camilo parecia ter conhecido pessoalmente o último Hercules triunfador; pelo menos falava dele como pessoa que se viu bem viva, em toda a sua brutalidade e desvanecimento. E só me disse que, trint’anos depois, Braga não podia assistir a semelhantes provas. ”

Outras histórias-anedotas ficarão para a próxima!

29/jan/2011












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