domingo, 4 de julho de 2010

Um pouco de história de Lourenço Marques

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Um pouco de história de

Lourenço Marques,

Xilunguine ou Maputo.

Em 1894 o jornalista e dramaturgo António Enes, que dentro da sua profissão, já havia visitado Moçambique, que vivia num caos de desordem e guerrilhas/matanças, e manifestado os erros que por lá encontrou, foi convidado para assumir o cargo de Alto Comissário.
Levou consigo um pequeno Estado Maior, escol de militares que mostraram a sua bravura e disciplina e ficaram na história: Freire de Andrade, o médico Rodrigues Braga e Paiva Couceiro. Foram ainda Aires de Ornelas e Ferreira da Costa
O texto que segue, tirado do livro “A Guerra de África em 1895”, de António Ennes, relata a chegada desta “equipa” a Lourenço Marques, em 18 de Janeiro de 1895.

Passei o resto do dia tomando providencias urgentes, foi-me solicitada a atenção para a falta de meios de descarga das mercadorias que estavam afluindo ao porto para demandar o Transval, verifiquei com meus próprios olhos a necessidade de mudar os aquartelamentos das tropas, e à noite fui instalar-me na pequena casa da Ponta-Vermelha,


a propriedade da empresa concessionária do caminho de ferro, em que os governadores do distrito já haviam estabelecido residência, e que eu ia promover a paço do governo e quartel-general, embora a sua modéstia arquitectonica lhe proibisse prosápias, e a sua varanda alpendrada, sobranceira à vastidão da baía e toda afestoada de trepadeiras floridas, lhe desse ares de moradia romântica de alguma Julieta. Pelas 9 horas da noite montámos a cavalo — o capitão Freire de Andrade, o tenente Couceiro e eu, — na praça de Sete de Março, e pusemo-nos a caminho.
A caminho de que? Que sorte nos esperava, sumida na escuridão do futuro, tão compacta, tão impenetrável como as trevas corridas adiante dos nossos passos, apenas furadas aqui e além pelas luzes distantes da avenida de D. Carlos, amarelentas e enfumaçadas como morrões de tochas fúnebres? Sabíamos que nos ficava para trás um murmúrio de maus agouros. Tínhamos sentido, na praça, as frialdades de uma atmosfera de desconfianças e pavores; pequenos grupos de portugueses, parados nos passeios que o arvoredo arrendado mosqueava à sombra e luz, segredavam rezas pelas nossas almas; abancados nos quiosques-bares do jardim, estrangeiros de barbas fulvas plantadas em peles requeimadas, deitavam-nos olhares de desdém e escárnio, puxando fumaças dos cachimbos.
Pensava-se, dizia-se, que o nosso capricho de ir viver na Ponta Vermelha poderia custar-nos caro. 0 lugar havia sido abandonado pelos seus escassos moradores. Ficava muito fora das linhas de defesa. Era considerado à mercê dos rebeldes, que já haviam salteado a Pulana, logo ali adiante: por que não iriam eles também, num lusco-fusco, meter dentro as portas de vidraça, que naquele ermo seriam a única defesa e guarda dos homens recém-vindos da Europa de propósito para os profligarem ? 0 coup de main era tentador, era, e o Maazulo e o Matibejana tinham na cidade, talvez na própria casa do governador, quem lhes mandasse avisos e conselhos! (Em casa do governador do distrito havia um criado preto, da Zichacha, que se tornou tão suspeito de conivência com os revoltosos que o próprio amo, que lhe era muito afeiçoado, mandou-o prender, afinal.)
Era isto o que se murmurava e o que nós mesmos pensávamos; mas, antes de tudo, cumpria-nos restabelecer a confiança, tão quebrantada ainda que raras noites discorriam sem sobressaltos, pânicos e alertas. De Moçambique, quando não conhecíamos bem o estado das coisas, tínhamos mandado preparar, para nossa residência, a casinha da Ponta-Vermelha, e nem sequer nos lembrámos, portanto, de que era possível não irmos lá viver.
Tínhamos a percorrer cerca de quatro quilômetros. A princípio, o caminho é civilizado e policiado; sobe-se a Avenida de D. Carlos, larga como as esperanças e ambições da cidade e do porto. À mão direita, o arvoredo oscilante do Jardim Botânico cobre como um biombo recortado as estrelas baixas do céu, e exalam-se de lá baforadas de umidade e vozearias monótonas de rãs. Depois ainda se vê bruxulearem as lamparinas dolentes das enfermarias do hospital, mas, poucos passos andados sai-se de toda a luz e toda a sociedade passa, sobre areia solta, desta que recua com os pés que a pisam, e por entre fímbrias de arvoredo e mato, costear primeiro as altas dunas escalvadas, e depois a aresta das ribanceiras, cada vez mais altas e aprumadas, que marginam a entrada do porto. Durante largos trechos está-se ali tão só como no entranhado sertão; de dia vêm os macacos do Machaquene fazer gaifonas aos transeuntes do alto das mafurreiras; de noite, só dá fé de que está à beira de uma cidade quem repara que as luzinhas, acesas lá em baixo, estão muito alinhadas para serem estrelas nascentes.
Atravessamos estas trevas ermas a passo, mais guiados pelo instinto dos cavalos do que pelos próprios olhos. Mal nos víamos uns aos outros. 0 canto estrídulo dos ralos acompanhava-nos, tão persistente, tão igual, como se nos seguisse uma escolta dos importunos insectos. Falávamos pouco, porque sentíamos muito. Vínhamos da pátria e da família, e íamos embrenhar-nos num labirinto de perigos formidáveis, de trabalhos esmagadores, de responsabilidades temerosas. Que seria de nós ? Os presságios não eram animadores, não! 0 canal de Moçambique acolhera-nos com dois temporais desfeitos; o vento sul, impróprio da estação, parecera querer desviar-nos da costa portuguesa; a nossa chegada à capital fora festejada com a noticia dum morticínio à margem da linha férrea; a Afonso de Albuquerque encalhara conosco ao dobrar a Ponta-Vermelha. Um grego ou um romano desesperaria de empresa começada sob o influxo de tão porfiado azar. Que mais viria ainda provar-nos a fortaleza de ânimo ? Já seria vento das asas da morte aquela aragem morna e úmida que nos roçava pelas faces? Estariam cafres emboscados no arvoredo rumorejante que nos tapava as estrelas? Uma voz aguda, precipitada, rompeu do escuro:
— Quem vem lá?
— Oficiais! respondemos.
Nem sequer entrevimos o vulto do soldado. Era uma sentinela perdida, um angola, dos vinte e tantos recrutas e inválidos que tinham ficado, como esquecidos, no quartel da Ponta-Vermelha quando a tropa recebera ordem de se concentrar na cidade.

Seguimos adiante. Um traço negro projectado sobre a neblina luminosa da via-lactea, fez-nos reconhecer, pelo mastro da bandeira, a estação da companhia inglesa do telégrafo. Mais avante descortinamos à distância ramarias altas tingidas por uma vermelhidão afogueada e trémula, sobre a qual passavam flocos alvacentos de fumo: havia por ali indígenas, que se aqueciam à fogueira. As trevas eram cada vez mais densas. Perdemos de todo a noção dos lugares. Não demos pela bifurcação das estradas; mas já íamos descendo, e havíamos portanto entrado na vasta plataforma da Ponta-Vermelha. Ali, o terreno é todo retalhado por vedações de fio de arame farpado, em que os cavalos poderiam tropeçar; lembrei-me desse perigo e avisei dele os meus desprevenidos companheiros.
— Eu vou adiante! ofereceu logo o tenente Couceiro, sempre pressuroso de se atirar para a frente.
— Vou eu, conheço melhor o caminho; opôs Freire de Andrade. Nisto o meu cavalo esbarrou violentamente no que quer que fosse, cujo contacto duro também senti na perna esquerda; atirou-se para o lado e partiu às upas, levando-me destribado, desequilibrado, cego pelas trevas, inconsciente da situação, de encontro a umas ramagens que o fizeram estacar e me apalparam a face e o corpo todo com os galhos rijos e frios. Ao mesmo tempo ouvi, para trás de mim sons confusos de embates, interjeições abafadas de surpresa, o baque de um corpo pesado, e, no meio do meu próprio desconcerto, pressenti que algum desastre sucedera aos outros cavaleiros. Interroguei-os de longe.
— Foi o cavalo que caiu comigo; respondeu Freire de Andrade, com o seu habitual tom de voz, baixa e arrastada.
— Espera que eu me apeie! dizia Couceiro, com sobressalto.
— Molestou-se ?
— Não posso levantar-me; volveu Andrade com a mesma inflexão serena; mas não é nada.
Continuava o azar a perseguir-nos! Diligenciava apear-me, quando avistei a pouca distância uma luz movendo-se por detrás de folhagens ralas; chamei, gritei, respondeu-me a voz de um criado preto, que logo surgiu, açodado, com uma lanterna acesa. A cem passos da alta sebe de miosporos que detivera o meu cavalo na carreira, estava Freire de Andrade prostrado na areia profundamente escavada, forcejando por levantar-se e ter-se em pé amparado pelos braços de Couceiro; muito pálido, mal podendo reprimir contrações faciais de dor, forcejava por se rir da sua triste aventura, repetindo sempre:
— Não é nada! Não se aflijam! A luz permitiu reconhecer a causa e o processo do desastre. No momento em que eu me recordara das vedações de arame, estávamos a dois passos da que fechava pelo lado da cidade o quintal da casa em que íamos residir, e que era interrompida ali por uma larga cancela de ferro. Estava aberta essa cancela, e pelo seu vão passou desempedidamente o tenente Couceiro, que cavalgava a minha direita; o meu cavalo esbarrou num umbral, e o de Freire de Andrade, tendo batido em cheio com o peito na vedação farpada, feriu-se, empinou-se, saltou, quebrou o fio de arame mais alto, prenderam-se-lhe os pés nos fios inferiores, e chapou-se entalando debaixo do corpo a perna esquerda do cavaleiro. O pobre rapaz parecia ter fractura na articulação do pé. Couceiro e o negro pegaram-lhe ao colo, e a nossa entrada no paço do governo da África Oriental Portuguesa, no quartel-general das tropas apelidadas para renovar a fama dos lusos feitos medievais, teve a desoladora solenidade de um cortejo de dor transpondo o limiar de um hospital à luz baça de uma lâmpada, que me fez lembrar, a mim, a que acompanha de noite a Extrema- Unção.

Tive um momento de desanimo. Que agouros! Que estréia! Em curtos dias, duas tempestades, a notícia duma façanha bárbara dos revoltosos, um encalhe à entrada do porto, e a entrada de casa um desastre, que inutilizava por largo tempo um dos meus companheiros devotados!
Vinte minutos depois chegava em nosso auxílio o Dr. Rodrigues Braga, que nos seguira em machila, fiando-se corajosamente dos ombros a lealdade de quatro malandrins negros, que a policia fora buscar à cadeia para o transportarem através das trevas e dos pavores. Também teve aventuras. Os machileiros extraviaram-se, foram parar às vizinhanças do quartel de Caçadores 3, e o doutor, que não sabia já por onde andava, foi surpreendido por um grito açodado de quem vem lá? que rompeu da escuridão impenetrável. Oficial! respondeu; mas ouviu logo o estalido seco dum cão de espingarda a armar-se, e se não se tem ido rapidamente da machila abaixo correndo para a sentinela e falando-lhe, teria levado um tiro quási à queima-roupa.
— Porque não disseste escamarada ? observou-lhe o recruta negro, que não conhecia a fórmula de reconhecimento.
Freire de Andrade foi então examinado e tratado com fraternal carinho. Não havia fractura, felizmente. A causa das violentas dores que o torturavam era uma entorse, tão grave, porém, que o reteve mais de quinze dias no leito e fez-se lembrada durante meses.

Imagens de autor desconhecido impressos no Centário da Cidade de Maputo em 1887.

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