domingo, 11 de julho de 2010

Casos de Polícia - 3 -



Quinze anos depois de Angola se ter tornado independente, tive que voltar a Luanda, e também num sábado lá fui, com um amigo, fazer a volta habitual pela ilha. Beber umas cervejas na Barracuda na ponta norte da ilha, um lugar lindo, e na volta comprar lagostas e mariscos na feira que fazem os pescadores na sua aldeia. Lagosta, peixe e mariscos, tudo fresquissimo e de qualidade inigualável. Comprámos umas quantas lagostas e gambas que depois, em casa, grelhámos para o almoço.
No regresso, surgem atrás de nós duas motos Harley Davidson novinhas, lindonas, brilhando, com dois polícias muito bem fardados, a condizer com o estado das máquinas, que nos fazem sinal para encostar.
Com ar impecável pedem os documentos, verificam, olhar professoral e superficial, o estado do carro, e quando se certificam que tudo estava em ordem, mandam-nos seguir. Montam nas motos e partem na nossa frente.
Nem quinhentos metros adiante, na rotunda à saída da ponte, estão outros dois polícias, com equipamento mais velho, meio a cair aos pedaços, também a controlar o trânsito. Os das motos novas param para cumprimentar os colegas e aproveitar para exibirem o status que lhes dava todo aquele equipamento e fardamento. Tudo novo.
Ao passarmos por eles, os mesmos guardas mandam-nos parar outra vez.
- Oh! Seu guarda. Vocês mandaram-nos parar agora mesmo ali atrás.
- Onde?
- Ali mesmo. Logo adiante da ponte. Em frente ao Hotel Panorama.
- É verdade. Tem razão.- perfila-se, faz a continência, e diz: - Então tenham um ótimo fim de semana!

Quanda esta "fotografia" foi tirada, ainda não havia ponte para a Ilha
 
*     *     *

Pelas estradas do Brasil as histórias são mais do que muitas, mas neste país temos que levar em consideração algo que não existe no resto do planeta: o jogo de cintura, a simpatia latente, a alegria do povo que muito tem a ver com a disciplinada indisciplina! Parece contra senso? Como é possível haver indisciplina disciplinada? Não se explica, mas a verdade é que o Brasil é assim. É o jeitinho brasileiro. Há outro parecido? Não há.
Vejam-se as escolas de samba. Onde já se viu maior bagunça aparente, mas onde reina uma organização e uma disciplina impecáveis? Nos desfiles dessas escolas vão, lado a lado, empresários, polícias, assaltantes, artistas, traficantes, funcionários, representantes de todos os setores da sociedade. Não é verdade que se fala à boca pequena e grande que os donos da máfia ou do jogo do bicho (oficialmente ilegal, mas que se pode jogar em qualquer esquina!), ou quaisquer outros importantes do Rio são os grandes alavancadores das escolas de samba? Não faço a menor idéia se é verdade ou mentira, nem qualquer um dos cento e oitenta milhões de brasileiros está preocupado com isso. Com jogo do bicho ou sem ele as escolas de samba têm que existir e mostram ao mundo inteiro como é este país, que com todos os defeitos que lhe queiram imputar é o maior transmissor mundial de alegria.
E as torcidas da seleção brasileira de futebol? Já se viu outra mais animada? Verdadeiras escolas de samba futebolístico. A torcida brasileira não admite, nunca, por hipótese alguma, que o Brasil não ganhe todas as copas do mundo, todas as olimpíadas, todos os torneios americanos e sul americanos, mesmo que no fim não ganhe. E quem mais anima esses torneios? Experimentem um dia não levar a seleção do Brasil a um campeonato desses e verão os estádios ficar com metade dos lugares por preencher. O sonho de todas as seleções é jogar a final com o Brasil. E a gente assiste, sofrendo que nem condenado a jogos mal jogados, equipa desorganizada, selecionador xingado de tudo o que a vocabulária inventou e ainda vai inventar, mas não perde a esperança de ganhar sempre mais um titulo. E lá vai ganhando. Alguns. Às vezes.
Isto são as escolas de samba, as torcidas, o povo. O país. Dança, xinga, sofre e dá risada.
A polícia é composta de gente do povo. Desfila em escolas de samba, torce pelo futebol, bebe a sua cervejinha estupidamente gelada, não desgruda os olhos da mulata gostosona que passa na rua a gingar e exibir a bunda redondona, porque sabe que todos os olhos são para ela, mas também há uns quantos que fazem hora extra, por conta própria, com as próprias armas da polícia! Para quê comprar uma arma para assaltar se a corporação já lha fornece e com balas de graça? Os polícias são como todos os outros homens. Não podem ser diferentes. São só homens.
E então num país que tem tudo isto de exótico e muito mais, quando os mesmos cento e oitenta milhões estão cansados de todos os dias, através dos órgãos de informação serem informados da corrupção que envolve tantos políticos, governantes, funcionários, fiscais de tudo o que se possa imaginar, compradores de empresas, estatais e privadas, ninguém se vai privar, por qualquer meio que esteja ao seu alcance, de tentar convencer o policial, sobretudo o rodoviário, a esquecer aquela infraçãozinha, que muitas das vezes não prejudicou alguém. Claro que não vai.
E para tudo há jeito, com um mínimo de boa vontade e educação. O policial está investido de funções que para quem gosta de bagunça são uma chatice, e uma ameaça à libertinagem selvática! Tem que fazer cara séria, mas é igualzinho a qualquer outro cidadão, e como tal tem que ser tratado.

Neste alegre rodopio, quem vai querer multar ???

A Dutra é a rodovia mais importante do Brasil. Auto estrada, Rio-São Paulo, entre as duas maiores cidades do país, com um movimento imenso de veículos de todos os tamanhos e qualidades, condutores bons e péssimos, conscientes e inconscientes, e como seria de esperar, patrulhas ao longo de todo o trajeto. Tem que ter.
De vez em quando o governo faz umas leis gozadas. Épocas há em que a velocidade máxima permitida é de 100 km/hora, outras 80, outras ainda 120. Coisa de político que gosta de viver sobre a rama sem ir à raiz da maioria dos problemas, e fica muito contente com estas alterações que por sua iniciativa propõe ao legislativo, que com isto perde tempo e vai esquecendo os hospitais, os aposentados, as tão famosas e faladas dívidas interna, e social, a guerreada reforma agrária, as favelas, etc.
Esquece. Estamos a tratar de outras coisas, que não política.
80 km/hora, mesmo quando a Dutra estava com o piso bastante deteriorado, era ridículo. Mas era a lei. Então a polícia rodoviária facilitava a lei. Deixava ir a 100! Já melhorava um pouco.
Uma tarde, de regresso a São Paulo, seguia tranquilo naquela estrada larga, e estava até convencido de que ia devagar, para quem, como eu, gosta de pisar no acelerador. De repente a polícia manda-me parar. Radar!
- O que foi senhor guarda?
- Excesso de velocidade.
- Excesso de velocidade??? Não pode ser. A quanto eu ia?
- Cento e um.
- Oh! Seu guarda! Cento e um?!
- A velocidade máxima permitida por lei é oitenta, mas nós até cem fechamos os olhos.
- Só unzinho a mais seu guarda?
- É. Mas tem que haver um limite, quando não daqui a pouco vem outro a cento e dois, três e por aí vai.
- Mas unzinho só a mais é muito azar.
- Lá isso é verdade.
- E não dá p’ra... esquecer?
- Não. Eu não posso. Está ali o chefe, o senhor fale com ele.
Saí do carro e fui falar com o chefe, ar de chefe, sentado meio dentro, meio fora do carro, à sombra da árvore que escondia o carro da vista da estrada, ao lado do radar, talonários de multas na mão.
- Seu chefe. Olhe o meu azar: cento e um. Não dá para o senhor perdoar esta?
Sem levantar os olhos, o chefe, depois de me pedir os documentos e tê-los examinado:
- Continue fazendo cara de quem está sendo autuado.
- ???!!!
Aí complicou. Eu não estava muito alegre, como é de supor, mas de repente ter que fazer cara de cara sendo autuado, foi demais! Comecei a pensar como deveria ser essa cara, e quanto mais tentava a mímica, virado para a estrada, para que todos me vissem com ar triste pela punição que me estaria a ser imposta por alguma irregularidade, mais vontade de rir me dava. Mas não podia rir, se não estava ferrado!
O chefe tinha dois blocos na mão. Sempre sem olhar para mim, ar grave, calmo, tira o bloco que estava por baixo e passa-o para cima. Os dois rigorosamente do mesmo tamanho. Um de folhas brancas, para autuações, o que passou para cima, verdes.
Escreveu devagar o meu nome numa das folhas que depois arrancou. Devolveu-me os documentos e mais a folha verde, voltando a avisar:
- Só deve ler este papel quando entrar no carro.
- Muito obrigado.
De volta ao carro digo à minha mulher:
- Só posso rir daqui a quinhentos metros. Até lá tenho que fazer cara de quem foi multado.
- Como assim? Ele multou?
- Olha a multa!
O papel verde dizia o seguinte:
A Polícia Rodoviária Federal avisa o Sr. F...... que deve dirigir com cuidado e atenção, manter sempre a viatura em condições de segurança, observar os sinais de trânsito, etc. etc. e terminava com um simpático “Boa Viagem”!
Onde já se viu maneira mais bonita de esquecer uma infração, que quase não seria infração, sem perder a postura e a autoridade?
Imagine-se um polícia alemão ou um americano a fazerem isto! Ou um português!

Escrito em 1998

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