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CASOS DE POLÍCIA - 2
Nas vésperas de sair de Angola, como muitos outros, mandei dar um trato no meu carro, uma Variant, cor bege, para ver se o conseguia despachar para algum comprador. Disfarçar um ou outro ponto com ferrugem e dar um polimento. Pouco mais. O carro ficou com boa aparência.
A ilha de Luanda é uma língua de terra com uma meia dúzia de quilometros de comprimento, em frente à cidade, que dá forma à baía e abrigo a um magnifico porto. Quase sempre estreita, tem na sua parte mais larga, talvez uns duzentos metros de largura, baía-mar, uma aldeia grande de pescadores. As praias ficam tanto do lado do mar, como a seguir a essa aldeia do lado da baía, sendo estas ideais para crianças, porque aí o mar não é mais agitado do que uma piscina. Águas sempre limpissimas. Isto há muitos anos porque agora a baía está cheia de navios fundeados e...
A ponte da Ilha - quando ainda era ponte! - em 1924
A ilha, é ligada ao continente por uma ponte, aterrada, bem em frente ao morro onde está a bonita fortaleza de São Miguel. Para o lado norte fica a maior porção da ilha, com suas praias, aldeias, etc., e para sul tem só uns centos de metros de comprimento. Aqui, do lado do mar é sustentada da ondulação por paredões de pedra, que atraem muito peixe. Esta ponta sul habitada desde há muitos anos, tinha além de umas quantas casas de habitação, parte delas construídas em madeira, antigas, três boites para machos e dois restaurantes. Ali estava concentrada grande parte da noite de Luanda. Um dos restaurantes, o Mar e Sol servia mariscos estupendos e no seu cardápio constava, entre outras iguarias Omoleta e o Flá Minhão! Mas era ótimo, um primeiro andar tipo varandão, que a brisa da tarde, fresca e carregada de umidade, obrigava a descontrair o ambiente e a beber bastante cerveja!
Domingo de tarde, no regresso da praia, lá do fundo norte da ilha de Luanda, mulher e uns quantos filhos pequenos dentro da tal Variant, bem devagar para gozar os lindissimos fins de tarde daquela terra. O mar de um azul profundo, dengosamente ondulado com o vento regular que à tarde, no verão, sempre sopra no sentido da terra, todos já olhando para aquilo com ar de despedida e a certeza de em breve ter que ir embora.
Passámos a rotunda de ligação à ponte e decidimos ir até ao lado sul, sempre cheia de pescadores amadores, que nunca voltavam para casa com as mãos vazias. Era mais uma distração ver aquela gente tirando peixe do mar.
Nos anos 60 já não era ponte
A rua naquele lugar, em frente às boites, era muito larga e consentia com facilidade o estacionamento de carros na perpendicular de ambos os passeios e ainda deixava espaço para circularem à vontade, lado a lado, mais três carros. Não sei quantos metros media, mas era muito larga. Espaço não faltava.
Em sentido contrário aproxima-se outro carro de cor escura, também devagar, vindo direto a mim, completamente fora de mão. Para o alertar toquei a buzina e guinei ostensivamente o meu carro para cima dele, o que foi o mesmo que nada. O sujeito viajava noutro planeta, porque continuou o seu percurso imperturbável. Devia estar pensando ou no futuro, incerto para todos, ou nalguma garota daqueles cabarés, sem ver que eu estava pela frente dele. Resultado, os carros passaram de raspão um no outro, fazendo um barulho medonho, mas sem mais consequências do que ficarem ambos com um risco, o meu escuro e o dele bege. Até que os riscos ficaram bonitinhos, certinhos, apesar de não fazerem parte da pintura original! Nada mais do que isto. Parámos um metro adiante cada um, o que evidencia que circulávamos bem devagar. O atingido sai do carro, analisa os estragos e parte para cima de mim a reclamar:
- Está a ver o que o senhor fez?
- Ah! O que EU que fiz?
- O senhor atirou o carro para cima do meu.
- Oiça aí, ainda não deu conta que está completamente fora de mão?
- Mas o senhor atirou o carro para cima de mim - insistia o sujeito, um tanto avermelhado com a fúria da razão que supunha lhe assistia, e era em parte meia verdade.
- Vá chamar a polícia.
- Tenha paciência, mas chamar a polícia, eu, não vou. Trabalho a semana toda fazendo o que os patrões mandam, e ao domingo só faço o que quero. Se quiser chamar a polícia, chame. Eu é que não vou. Não quero.
- O senhor não vai?
- Não.
- Então vou eu.
- Vá.
- Mas o senhor não vai embora.
- Não.
Nos anos 70, vendo-se bem como já não era ponte
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1988
Lá foi o homem procurar um telefone num daqueles restaurantes, gesticulando, maldizendo de certeza a minha pessoa, que ficou à espera, encostada ao carro enquanto os filhos aproveitavam para gozar um pouco a habilidade ou sorte dos pescadores.
Quinze ou trinta minutos passados regressa o homem esbaforido.
- A polícia ainda não veio?
- Não.
Nervoso, vai-se lamentando:
- E eu que tinha mandado arranjar o carro para o levar para a metrópole, e agora já tem um risco destes!
- Não precisa ficar nervoso, e o seu caso não é único, nem nenhuma desgraça. Eu também tinha mandado arranjar o meu e ficou com o mesmo risco, só que de outra cor. Qualquer deles sai com um pouco de polimento.
A polícia não chegava, e o homem, agitado, vai de novo telefonar. Nestes entrementes lá vem aparecendo um polícia de trânsito, e o nosso homem, que o vê de longe, corre para ele.
O polícia sai da moto e pergunta:
- O que houve?
- O que está vendo.
- Onde está o condutor daquele carro?
- É aquele que vem ali a correr.
Este logo que se aproxima vai direto:
- Senhor polícia, o senhor está a ver? Ele veio para cima de mim e bateu no meu carro.
O polícia vendo o disparate da situação, com dois carros quase encostados, ambos do mesmo lado da rua, logo mandou calar o reclamante.
- Mas foi ele que veio para cima de mim.
- Cale-se, por favor.
Com uma cara meio chateada, passo lento, foi à moto buscar uma fita métrica e medir a largura da rua, a distância de cada um carros aos passeios, etc. Fazer o croquis do acidente. Era evidente que ao outro não assistia a menor razão. Tudo medido, vira-se para mim e pergunta:
- O senhor quer apresentar queixa?
- Eu não. Ele é que quis chamar a polícia. Com dois minutos de massa de polir o carro fica como novo.
O atingido é que não se dava por vencido, e insistia:
- Mas foi ele, o culpado. Ele é que veio para cima de mim.
- Então vamos até à esquadra, disse o polícia.
- Vamos embora. É mais uma variante para a monotonia dos domingos.
Voltam os filhos a entrar no carro e lá nos encaminhamos todos para a esquadra, polícia na frente com a moto, os dois carros atrás. Ali chegados manda-nos aguardar e entra para falar com o chefe, a dar contas do acidente! Foi a vez do chefe interferir. Chama os dois envolvidos e repete para mim a pergunta do guarda:
- O senhor quer apresentar queixa?
- Não senhor, respondi.
- Bom, - virando-se para o outro - se o senhor quiser apresentar queixa, pode fazê-lo, claro. Não sou eu que julgo. É o juiz, no tribunal. Mas como eu ando nesta vida há mais de vinte anos até já sei o que o juiz vai decidir: circular na faixa contrária dá apreensão de carta por seis meses, multa, pagamento dos estragos de terceiros, custas do processo, etc. Se o senhor quiser...
O palerma do atingido, ainda pensava continuar a reclamar, e nem a evidencia da situação conseguia convencê-lo que estava totalmente errado. Como é de imaginar não fez qualquer queixa.
Despedimo-nos dos polícias, e à saída da esquadra o babaca ainda voltou a dizer:
- E esta, hein! O senhor é que bate no meu carro, e a culpa acaba por ser é minha!
- É. Por acaso o senhor não estava a conduzir em Londres?
- Não. Porquê?
- Deixa p’ra lá.
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1988
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