segunda-feira, 31 de maio de 2010

Três histórias de Moçambique


Escrito em 2001. Em Moçambique.

A Sudoeste de Maputo, Boane, e dali para o Sul mais uns 15 quilometros está a aldeia da Massaca. Mais um pouco e é a Casa do Gaiato.
Numa das deambulações pela Massaca, para captar em foto algumas imagens do povo, passei junto a uma casa onde estava uma mulher sentada à sombra a peneirar farinha. Ao lado um filhote de uns 2 anos. Disse-lhes adeus, sorriram e corresponderam, descontraídos, com muitos outros adeus! Segui em frente. O filhote levantou-se e veio até à esquina da casa sempre a olhar para mim. Parei, para ver por onde seguir, qual rua escolher, olhei para trás e lá estava ele, ali a uns escassos metros. Disse-lhe adeus de novo. Sorriu e saiu a correr para mim! Quando chegou ao meu lado agarrou logo na minha mão. A mãe levantou-se veio atrás e quando o viu ao meu lado chamou-o: Zé! O tal de Zé disse logo “Não” e não largava a minha mão, com uma cara muito bem disposta! Devia querer ir passear comigo! A mãe tirou para fora um recheado peitão a ver se ele se interessava pela comida. “Não”, sempre com uma cara divertida, mas com a certeza de saber que naquele momento não era esse o programa que o atraía. A mãe aproximou-se (peitão já recolhido dentro da blusa, como é óbvio), ele largou a minha mão e fugiu. Lá foi ela atrás, apanhou-o, deu-lhe a mão, e quando os dois voltavam da grande “fuga”, uns cinco ou seis metros, fotografei-os. Vai aqui a foto deles. Muito simpático “O Zé”!


O Zé!


* * *

O eclipse do sol

21 de Junho de 2001, o eclipse do sol, total nalguns lugares no centro de Moçambique, Zâmbia e Angola. Um eclipse do sol é sempre um espetáculo interessante, não só pela raridade, mas sobretudo quanto é total. A Zâmbia tirou grande proveito turístico do evento, Angola, a muito custo conseguiu reunir um pequeno número de cientistas, e Moçambique? Podia ter ficado quieto, mas...
Moçambique soltou um alarme de tal forma aterrorizante sobre os efeitos do eclipse, que o povo, não só o povo simples do interior, mas o “evoluído” da capital, ficou à espera de nova catástrofe! Habituado a catástrofes – secas, inundações, guerra, pragas de insetos, secas, inundações, ... – agora chegava mais este: o eclipse do sol.
Um dos jornais publica, página inteira, um artigo dedicado ao assunto com quase duas semanas de antecedência, e com a manchete: Cuidado com o eclipse, as pessoas podem ficar cegas! Entrevista aos Drº (sic) Rogério Utui, especialista em Física Nuclear e Cardoso Homem (do Aeroclube). Começa assim o artigo: “Isto é perigoso. As pessoas podem ficar cegas.” Outro jornal publicou que “mais cego é quem não quer ver e que existem dados segundo os quais no dia do eclipse será instalada uma barraca em Quelimane (?) para os curandeiros porem à prova dos turistas os seus dotes em matéria de medicina tradicional em trabalho a ser feito em conjunto com a AMETRAMO (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique). Isto é ridículo. Mais adiante: “É bonito sim senhor. O fenómeno é espectacular mas as pessoas devem resistir à tentação. O País pode cegar. ... fica um bocadinho frio, os animais ficam baralhados, os galos cantam. Mas deixemo-nos de rodeios. O eclipse para as condições nossas é um risco à saúde pública. Com ele pode aparecer um “boom” de doenças de vista, o que logo à priori poderia significar ter alunos sem estudar, e por exemplo uma povoação cega.”
E seguiu por aí fora a quantidade de artigos nos jornais. Até a Administração de um Distrito distribuiu um Aviso: “Avisa-se à população em geral e as Direcções das Escolas, que no dia 21 de Junho do ano em curso haverá eclipse do sol durante algumas horas a observância da Luz solar nesse dia será perigoso. Se insistir poderá perder a vista ou ter problemas mais complicados com a vista ou desaparecimento total da retina. Apela-se a compreensão que será o bem da saúde.”(sic)
O governo chegou a antever a possibilidade de, ainda mais uma vez, pedir ajuda internacional, para atender aos flagelados do eclipse. O drama era a possibilidade de cegueira! “Se não se usarem óculos próprios é alto o risco de cegueira!”
Ninguém disse nem como, nem porquê se corria esse risco, que é muito maior sem eclipse, com o sol na sua plenitude! Em qualquer dia do ano olhar demoradamente para o sol pode causar danos, irreversíveis, aos olhos, é verdade. Mas quem aguenta abrir o olhão e encarar de frente o astro rei? Nem com óculos escuros que para pouco mais servem do que enfeitar a cabeça de meninas e meninos que se julgam assim mais... E partem, as rádios e Tvs a anunciar: “Cuidado com o eclipse. NESSE dia não olhe para o sol. Pode cegar!” “Não SAIA DE CASA sem óculos especiais!”, e outras barbaridades na mesma tónica!
O governo, face ao implacável e imparável avanço desta nova calamidade, decreta tolerância de ponto. (Atenção: foi tolerância de ponto só para os nacionais! Os estrangeiros, era lá com eles, e quem sabe se estariam equipados com alguma tecnologia de ponta que os preservasse da desgraça!) As mães avisam que nesse dia não poderão ir trabalhar porque têm que segurar os filhos dentro de casa, o pastor aflige-se porque o gado está no pasto e não tem como recolhê-lo e abrigá-lo dos apocalípticos efeitos do eclipse. O país aterroriza-se.
Houve até quem, recolhido com a família dentro da sua palhota, mas através do seu telefone celular consultasse a emissora de rádio sobre a capacidade de proteção do tecto de palha! Na capital, no Maputo, a partir do meio dia (o eclipse começava às 14h e 30m) as ruas desertificam-se, as pessoas recolhem a casa.
Se aqui estivesse o Astérix, ao ouvir todo este alarmismo, deveria pensar que desta vez é que o céu lhe ia cair em cima da cabeça!
Passou o eclipse. Foi interessante. Reportaram-se as autoridades administrativas: “Não aconteceu nem um só caso de cegueira. Nem nas pessoas nem nos bois!”
Moçambique perdeu a oportunidade de pedir nova ajuda internacional!

* * *

Quem são os corruptos ?

Quando a fome se repete, dia após dia, com a mesma regularidade com que o sol nasce e se esconde, também todos os dias, ininterruptamente, não parece redundância falar em corrupção.
No Brasil já nem adianta. Mesmo quando aparece num Editorial de um jornal, não de bairro, mas larga tiragem, que um empresa contratada para avaliar o volume de roubo que se pratica no país aos cofres públicos conclui que ultrapassa R$ 100 bilhões de reais, mais de quatrocentos milhões de dólares, e tudo acaba ficando por isso mesmo. Pobre Brasil rico!
Afinal o que é, mesmo, corrupção? Qualquer dicionário responderá a esta pergunta com ato ou efeito de corromper, estragar, infectar, desnaturar, tornar podre, perverter, etc. Quem não sabe o que isto é ou não conhece, pelo menos de nome, um corrupto? Quem não hesitou já sobre o seu próprio preço, a sua fronteira entre honestidade e podridão? Isto por aqui, por Moçambique, é, no mínimo, curioso. Moçambique, por muitos fatores é um país pobre, arrasado pela política, pela guerra e pelas intempéries naturais, que teimam em se alternar entre secas e inundações e pragas. Algumas de violência incrível. Afluem ajudas de todos os cantos do mundo, inclusive de países que estão por sua vez a ser ajudados. É assim a solidariedade humana. Quando se tem pouco parece mais fácil dividir com quem nada tem.
Mas quem conhece África já sabe que quando um animal agoniza, os abutres, os chamados urubus no Brasil, ficam voando, lá no alto, em círculos, sobre a preposta refeição. E, muitas vezes, ainda o moribundo tem uma réstia de vida, já os carniceiros começam a devorá-lo. Não é só em África, não. Abutres, urubus, há-os em toda a parte do mundo. Como neste país tudo, ou quase tudo, está por fazer, o que tem de urubu espreitando é inacreditável.
Amavelmente aparecem propostas de ofertas, doações, para ajudar à reconstrução. Vagueiam pelo país personagens de ar tétrico, quase diria shakesperiano não fosse o receio de ofender o grande dramaturgo, à caça de projetos. Desembarcam de muitos países, e vêem oferecer projetos, dádivas. Uns oferecem voluntários, normalmente desempregados nas suas terras, recebendo seguro de desemprego e voluntariando-se para em África ganhar uns milhares de dólares, ainda com a vantagem de depois poderem propor-se para uma tese de mestrado! Outros oferecem equipamentos agrícolas, industriais, de transporte, o que for. Vendedores. Ferozes vendedores, porque nem é o comprador último que paga! Estranho isto.
A estrutura judiciária do país, pobre, repetir não faz mal nem desonra, necessitava de cinco mil dólares para custear um seminário, duração de cinco dias, para atualização de conhecimentos e normas para juízes. Logo surgiu um desses urubus que se prontificou a ajudar. Voou para o alto, foi fazer o seu estudo e voltou com a proposta: oferta de cem mil dólares! O responsável, moçambicano, mentalidade de justiça, antes de responder ou aceitar, quis saber para que seriam os noventa e cinco mil remanescentes. Controle do projeto, técnicos estrangeiros para acompanhar o mesmo, viagens Europa-Moçambique e volta, hospedagem, viatura às ordens, etc.! Havia que satisfazer os urubus do controle! Não aceitou, o juiz. Ele sabe que há corrupção no país. Mas não aceitou a amável oferta nem o paternalismo do controle.
Outra proposta simpática. Um outro país europeu fez saber que queria fazer um donativo. Uma entidade, de intocável honestidade e capacidade, fez um estudo, detalhado, sério, e pediu, para desenvolvimento na área rural, USD$ 120.000. Os ofertantes, retiraram, voaram alto e para longe (olha os urubus!), estudaram e refizeram o projeto, e alguns meses depois de “exaustivo trabalho”, a refazer o feito, voltaram, pelo ar, em 1ª classe (urubu não viaja em classe económica), com a proposta da oferta definitiva. Era só assinar o contrato: valor USD$ 500.000, para se gastarem, na ajuda real, USD$ 120.000.
Incluía agora o projeto dois técnicos europeus, impunha o regresso de dois ex expatriados, casa mobiliada para cada um, carro novo, idem, salário de alguns milhares de dólares, idem, ajudas de custo, idem, viagens ao país de origem a cada seis meses (cegonha, prima do urubu, só viaja uma vez por ano!), e etc., e etc., e etc.
Resultado: o projeto não se executou porque a entidade, que todos os dias, há uma dezena de anos, está ao lado do povo a trabalhar, de graça, não aceitou participar no festim dos carniceiros!
É assim, em Moçambique. Fica no ar a pergunta: Afinal, quem são os corruptos?

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