terça-feira, 18 de maio de 2010

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Chuva ?




“Contínua goteira faz sinal na pedra”.
Provérbio popular.



Aquele dia estava teimando em não chover. Umas nuvens falsas, alimentando a ilusão da terra sofrida e seca há muito tempo. Dali, a única vantagem que se podia tirar era a proteção do sol escaldante que, semiescondido, perdia parte da sua força de agressão. As nuvens, mesmo falsas, desiludindo a secura, mendigavam assim um pouco do nosso perdão, interpondo-se, a custo, aos raios da estrela quente. Ali estava eu, sentado num degrau em frente da porta da casa, olhando aquela tarde como muitas vezes fazia, a vista alongando-se pelo vale, algum casario ao longe, o mar ainda mais, só se mostrando em dias de céu limpo, vendo o tempo e as plantas caídas, sem o vigor da água que as torna belas, pensando. Pensando como era injusto deixar criar plantas e flores bonitas e depois faltar-lhes com a água. Porquê?
As reflexões sobre tudo isto sucediam-se lentas, monótonas como a própria tarde e a incerteza do amanhã. Devo ter adormecido. Não sei por quanto tempo, porque quando despertei os ponteiros do relógio quase não se haviam movido, as nuvens permaneciam no mesmo lugar e o sol não se escondera lá, onde tem o seu esconderijo, atrás das serranias. Era uma tarde insípida. Talvez até triste. Nem as montanhas desenhavam os seus habituais contornos nítidos, irregulares, fortes, nem o céu avermelhava para anunciar a hora do descanso. Mas a verdade é que nesse espaço de tempo que não existiu, a nossa conversa foi longa.

De repente ali estava ele ao meu lado, e apesar de nunca nos termos encontrado fisicamente, deste modo, nenhum de nós se surpreendeu.
- Sabes quem eu sou?
A voz não me era familiar e no entanto tudo se passava de modo tão natural que me atrevi a dizer que sim. Não disse exatamente que sim, mas dei a entender que não me era estranho. O físico e a cara eram simplesmente de um homem. Eu conhecia muitos homens e quando olhei melhor vi naquela cara a cara de tantos, que acabei confirmando que sim.

- Sim, sei muito bem quem és.

- Vamo-nos tratar sem cerimónias, quando não a conversa perde o interesse. Estamos aqui como dois amigos, nesta tarde que julgas insípida e da qual reclamas.

- É evidente que reclamo. Olha para estas plantas à míngua. Acabam por morrer. E depois levam mais três ou quatro anos para se recomporem.

- Que sabes tu da natureza para reclamares?

- Posso não saber muito, de fato, mas isso não me impede de reclamar. As chuvas podiam cair com um pouco mais de regularidade. Nunca entendi porque de vez em quando há uns anos de seca miserável enquanto noutros lugares há inundações catastróficas.
- Sempre foi assim desde que o mundo é mundo! Pode parecer-te um equilíbrio desequilibrado, talvez até injusto, mas tudo isto faz parte da evolução da vida na terra. Lembra-te que há alguns milhões de anos grande parte da flora e fauna que agora te rodeia e que tu dizes tanto apreciar, não existiam. Foi a evolução natural, com todo esse aparente desequilíbrio.
- Pode ser que assim seja. Aceito essa argumentação, mas não posso deixar de lamentar ao ver esta secura que me rodeia. Mesmo admitindo como boa a tese da evolução natural. Mas essa evolução leva milhões de anos e eu só por aqui vou ficar mais alguns! Até sou capaz de imaginar que daqui a outros tantos milhões isto tudo se torne um jardim paradisíaco.
- Sabes que poderia vir a ser, mas hoje em dia não há mais evolução natural! Hoje são os homens que estão a comandar não uma evolução no sentido que temos assistido até hoje, mas uma revolução antinatural!

- É verdade. Infelizmente é verdade, e todos nós sabemos disso, incluindo aqueles que são os responsáveis diretos, mas que não estão minimamente interessados em fazer reverter a situação. Muito tenho pensado nisso e até me pergunto porque o homem é o único ser vivo que só pensa no dia de hoje!

Neste momento desviei os olhos do poente e olhei para o meu companheiro. Olhei-o bem de frente, e ali estava afinal o velho amigo angolano, boa praça, inteligente, amigo do seu amigo e do seu copo. Um sereno sorriso. Há mais de trinta anos não nos víamos. Desde os velhos tempos de Angola. E diz-me:

- Lembras-te quando te mandei dizer que lá no Caracul se tratavam melhor os carneiros do que os homens? Em que pensavam os governantes naquele tempo? E como pensam hoje? Olha que faz tempo que te escrevi isso e nada mudou. Mudam os governos e mantêm-se os interesses, a ganância. É triste constatar tudo isso, apesar de saber que há muitos homens, e mulheres também, extraordinários, e é por isso que eu não perco a esperança de ver chegar a harmonia a esta terra.

Não podia ser aquele amigo de Angola a dizer-me isto. Ele foi sempre um homem generoso, mas nunca me apercebi desta sua capacidade de esperança, e volvi:

- Pode ser. Mas só com um milagre, e em milagres, daqueles que nós estamos habituados a ouvir aos pregadores, eu não acredito. Já vivi o suficiente para ter concluído que o único milagre possível é aquele que se opera nas nossas mentes. E então começamos a falar em vários bilhões de milagres! Um por cada habitante do planeta!

- Porquê descrês em milagres?

Ou a sua voz mudara, ou a entoação, o que é certo é que não me pareceu mais ser o Ernesto que falava, mas tive receio de olhar de novo e não ver a sua cara. Estava a gostar de falar com ele. Decidi responder e tentar reconhecer de novo a mesma voz.

- Os milagres que eu conheço são os que vêm descritos na Bíblia, e depois disso todos aqueles que os inúmeros profetas que apareceram até aos nossos dias dizem que fizeram. O que ganhámos nós com isso? Transformar água em vinho para agradar aos convivas de uma boda? Ressuscitar um pobre Lázaro? Ou antes disso fazer como o Moisés que largava um cajado no chão e virava cobra? Hoje na TV e nas salas de espetáculo vêem-se, todos os dias, outros “milagres” muito mais espetaculares, como cortar um sujeito às fatias e depois repô-lo de novo numa caixa, fazer desaparecer um avião e no seu lugar aparecer uma garota lindona. Imagina o que os escribas que escreveram a Bíblia diriam se tivessem visto o que hoje se faz?

- Nunca te supus tão incrédulo! Olha que o milagre está na nossa capacidade de enxergar o lado positivo ou negativo de cada problema. Crer ou descrer. Confiar ou desconfiar. Receber ou dar. Odiar, ser indiferente ou amar. Se tu com todas as tuas forças fores capaz de acreditar, confiar, dar, amar, tens todos os milagres na tua mão. Quando a Bíblia diz que podes remover montanhas com a tua Fé, é evidente que não te está a dizer que podes ir ali tirar aquela serra, linda, e levá-la para outro lugar. Mas que podes ajudar a melhorar, e muito, este mundo e assim torná-lo no tal jardim paradisíaco que há pouco falavas.
- Ora isso sei eu. Esse é o meu conceito de milagre. Mas mesmo que eu tivesse todas essas qualidades era necessário que o mesmo acontecesse com os tais outros bilhões! A Bíblia também diz que o Diabo oferece todas as riquezas deste mundo a quem o adorar, e aí é que reside, a meu ver, o problema. É muito mais lógico aproveitar as riquezas deste mundo, adorando ao Diabo, roubando, espoliando, corrompendo, matando, do que acreditar, dar, confiar.
Olhei novamente, de soslaio, e era agora outro velho amigo de infância, colega, parceiro nas horas boas e difíceis, que olhava para mim. O mesmo sorriso e olhar, serenos, chamando-me ao diálogo.

- Ao homem foi dada a liberdade de escolha, que a voz do povo resumiu muito bem, com a clareza da frase: “a Deus ou ao Diabo”. Há muitos que dizem não acreditar em Deus e são um exemplo de vida, assim como o contrário. Nisso reside a beleza da Criação. Os homens não são como galinhas que se confinam numa cerca de arame, a quem se dá milho e logo que engordam vão para a panela. O homem tem liberdade de escolha. Custa muito ver que grande parte dos que detém o poder parece continuarem a insistir em optar pelo caminho errado. Não falo no poder político, mas no verdadeiro, na força do dinheiro. Mas isso não vai durar para sempre.

- Espero bem que não, mas já não é para os meus dias! Nem dos filhos e netos.

- O que esperavas? Ver o mundo endireitar-se num lapso de tempo? Ver acontecer um dos tais milagres em que não acreditas? Não é assim fácil. Se fosse já teria sido feito! Há quantos anos apareceu o homem na Terra? E há quantos anos existia o planeta? Se pensares por este lado, verás que é longo, muito longo ainda, o caminho a percorrer para chegar à perfeição.

- Olha que eu bem quero acreditar nisso, mas quando a gente se vê rodeada de ganância, atropelos e mentiras...

- Mentiras? Tu que pareces ser bem intencionado, nunca mentiste?

- Olha, mentiras daquelas que são mesmo para enganar e tirar vantagem do próximo, pode até ter acontecido durante a minha vida, mas confesso que não me recordo que alguma vez o tivesse feito, porque estaria até hoje com esse remorso, e não carrego remorso algum. Aquelas mentirinhas bobas, que mais se podem chamar de desculpas, todos nós, todos, dizemos. Até tu. Ou... é mentira?

- Tu achas que eu alguma vez menti ? ? ?

- Acho sim. Queres ver...

Aqui voltei bem olhos nos olhos dele. Queria ver se pestanejava. Se um simples músculo da face o traía! Face um pouco enrugada, dos muitos anos, mas continuando a exalar uma profunda tranquilidade, que não me permitia sequer desconfiar da Verdade ali presente. Prossegui.

- Vou-te dizer onde eu acho que mentiste. Essa história do batismo, por exemplo. Lá porque um sujeito leva com uma mão cheia de água pela cabeça fica logo bonzinho! Isso é balela. Não fica nada. O máximo que lhe acontece é ficar molhado!

- Já cá faltavam os teus sarcasmos! Eu até estava a pensar que tinhas mudado a tua maneira de ser! É bom que sejas sarcástico, porque quanto mais incisivo, mais obrigas as pessoas a pensar. Mas vamos ao batismo. Eu jamais disse isso. Quando me batizaram, porque eu assim o quis, foi para cumprir um rito praticado pelo meu povo que procurava mostrar que um indivíduo se estava a lavar dos erros do passado. O batismo é uma cerimónia simbólica, e quando alguém, em plena consciência, aceita esse simbolismo, está a comprometer-se perante si mesmo das obrigações que lhe advêm de se ter libertado de um passado de ignorância e aceitar um futuro de luta pelo bem.

- É! Lá isso é verdade. Tens razão. Eu não vou muito pelos tais simbolismos, mas vá lá aceito essa argumentação. Eu não acho que seja necessário entrar em rio algum, quer seja o Jordão ou o Ganges para que um sujeito se comprometa com o futuro. Ele tem é que se comprometer com ele próprio, com a sua consciência.

- Parece até que tu não conheces os homens! São uns fracos. Apaixonam-se hoje por uma causa nobre e amanhã tropeçam num obstáculo e abandonam-nas. É bom que façam um ato público, como por exemplo o tal batismo em que tu não acreditas, ou o juramento para assumir um lugar numa assembléia, porque isso os deixa mais comprometidos.

- Talvez deixe. Mas a minha fé nesses atos, depois de tudo quanto tenho visto, levam-me a pensar que tanto faz fez, como fez faz!

- Estás muito descrente!

E senti uma mão suave e pesada ao mesmo tempo, pousar-me num ombro. Apeteceu-me agarrá-la e apertá-la porque um fluxo de paz parecia penetrar na minha mente através daquela mão. Desta vez tive medo de voltar a encarar aquela face. Eu queria ter a certeza que seria de quem eu calculava, mas temi. Se fosse, eu não iria aguentar. Não sentia uma mão assim desde que era garoto, muito novo e essas mãos foram embora de repente! Acovardei-me. Como tantas outras vezes durante a vida.

- Além de te mostrares tão descrente, descrença falada e pouco sentida, pelo que se percebe das tuas palavras, vê-se bem que lá no fundo algo te preocupa muito mais do que esses tais atos simbólicos que não aceitas de boa vontade. Afinal o que te inquieta?

- Tens razão. Eu vivo com uma inquietação permanente. Não consigo explicar, nem para mim próprio, o que isto é. Chego a querer que seja somente cansaço, mas sei que não é só isso. Nem gostaria de te dar qualquer idéia porque me acharias presunçoso. Por isso, por ser difícil compartilhar com alguém, e muito menos lhe dar satisfação, é que estou mastigando esta inquietude, há anos. Talvez um dia desembuche. Como, ainda não sei!

- Eu imagino. Mas como o problema é teu, íntimo, não pretendo desvendar o que te vai lá por dentro, e sei que um dia vais encontrar o caminho que te sossegue. Não podes é amargurar-te, nem ficar aí sentado criticando a natureza!

- Eu não estou a amargurar-me. Mas quem tem um espinho num pé e não consegue tirá-lo, não tem outro remédio senão aguentar. É um pouco assim. E as críticas à natureza... nem críticas são, mas uma espécie de desabafo do final do dia quando, além da cabeça, o físico também pede repouso!

- E ainda te vou dizer mais.

A mesma voz. Tão igual e ao mesmo tempo tão diferente que eu sabia que se olhasse uma vez mais, a cara não seria a mesma. Voz firme, jovem, cheia de entusiasmo, e duas lágrimas vieram turvar-me a vista. Não virei a cara. Novamente me acovardei.

- Tens batalhado toda a tua vida, tens feito as opções que entendes, e com esse teu feitio de intransigência, teimoso, já levaste muita pancada. Sofres, eu sei, mas continuas muitas vezes a pensar como um dom Quixote, a querer endireitar o mundo! Já não tens mais idade para isso! Não te quero ver agora a abdicar dos teus princípios, se os achas corretos, mas também sabes que não é com vinagre que se apanham moscas, como vocês dizem!

- Queres dizer que tenho que ser mais político?
- Porque não?

- Eu, que em princípio, e tu sabes bem, detesto políticos, porque exatamente pactuam com tudo e com todos para levar a água ao seu moinho? Não, essa não!

- Então achas que vale mais quebrar que torcer?

- É por essas e outras que as minhas idéias se baralham, a inquietação aumenta e a cabeça gira como um cata-vento sem encontrar o tal caminho!

- Cabeça de cata-vento não terás, mas não podes é ser sempre tão inflexível. Assim não irás a lugar algum. A primeira coisa que tens que fazer é aceitar um pouco melhor os erros e defeitos dos outros. Experimenta dar um primeiro passo nessa direção. Estou certo que te irá ajudar.

- Achas que temos que aceitar os erros dos outros e... pronto?

- Olha! Eu aceitei-os, mas sem o teu “e... pronto”!

- E vê o que te aconteceu! Qual o proveito prático que daí se tirou?

- Agora quem diz “Meu Deus” sou eu! Então tu achas que ninguém jamais ganhou em aceitar, e perdoar, os erros dos outros? Olha bem à tua volta. Não vês muitos milhares a fazer isso todos os dias, a darem as suas vidas em troco de um sorriso, aceitando os seres humanos com todos os seus defeitos sabendo que só a aceitação desses erros e defeitos os levam a melhorar o mundo? Creio que já não te estou a conhecer!

- Tens razão. Estou a falar sem pensar! É a tua vez de me aceitares como sou, cheio de defeitos, presunção, arrogância, fazendo-me de mártir por não conseguir endireitar o mundo! Tenho que me olhar melhor no espelho! Quem sabe consiga descortinar o que está dificultando que me torne mais humilde.

- Boa idéia essa. Olha-te bem no espelho. No espelho do teu interior. Procura bem que vais encontrar, porque o problema é sempre o mesmo: se não quiseres procurar, de certeza que não encontras.

- Vou fazer isso ainda agora, olhando este triste pôr do sol. E como sempre me aceitaste como sou... tens ainda que me perdoar.

- Então não havia de perdoar?

Agora sim, ganhei coragem e olhei para o lado. Queria ver bem expresso na sua cara esse perdão. Era importante para mim, meio incrédulo.

Não havia ninguém!

De repente um forte trovão quebrou a quietude daquela tarde. E a chuva começou a cair.

No dia seguinte pela manhã as plantas sorriam agradecidas, e as poucas folhas sobreviventes da longa estiagem, tanto tempo tristes e caídas, apontavam agora para o alto em modesta atitude de agradecimento.

Ao sair de casa o dia despontava, senti no ar aquela alegria da terra úmida e olhei de soslaio, desconfiando e confuso para o lugar onde na véspera tinha estado sentado.

Quanto tempo ali estive? Nunca chegarei a sabê-lo. Nem sei mesmo se algo aconteceu ou se as idéias, ainda confusas, que me assaltavam, não seriam fruto de um sonho. Sonhador, deixei-me ir arrastando e fui pensando nelas.



À noite... pus-me a caminho de Moçambique para seis meses de voluntariado!



Maio de 2001

do livro "Loisa da Arca do Velho", inédito, 2001

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