sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

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A LENDA DA CIRCUNCISÃO
e outras memórias

De África conservo algumas peças de artesanato que prezo especialmente.
Em primeiro lugar, a coleção de estatuetas de madeira, figuras da cerimonia da circuncisão. Feitas na região do Bié, no centro de Angola. Representam muquixes, máscaras.
1960. Por aí. Tempo em que trabalhava na Cuca, andava em viagem, como tanta vez, lá pelo interior, quando no restaurante do hotel no Bié, hoje Cuito, e na ocasião se chamava oficialmente Silva Porto, nome de um famoso sertanejo, vi alguns bonecos de madeira, artesanato local, que logo chamaram a minha atenção.
- Onde o senhor arranjou isto?
- Foi um velho que vive no mato, a uma dúzia de quilômetros daqui. Faz estas coisas que de vez em quando lhe compro.
- Quero ir vê-lo.
Foram mostrar-me o caminho. Num quimbo¸ modesto, encontrei o artista entretido a esculpir madeira. Madeira macia, talvez tronco de palmeira ou bordão, muitas das peças feitas para comércio não tinham a meu ver qualquer interêsse, mas os bonecos, eram sensacionais.

Algumas das "estatuetas" de máscaras da circuncisão

Tinha alguns começados, nada pronto. Perguntei-lhe quantos diferentes ele fazia. Não sabia. Todos, representações de personagens da cerimónia da circuncisão, uma das cerimónias mais importantes em quase toda a África. E mais antigas. Perde-se no tempo o início deste procedimento, que virou rito religioso, que segundo os historiadores, os judeus receberam através do Egito antigo, bem como os árabes e daí, através do Islão, omisso a esse respeito, acabou seguindo para o oriente. Ninguém sabe ao certo a origem desta tradição, que acabou sendo ato de profunda significação religiosa, como por exemplo entre os judeus que lhe atribuem um significado semelhante ao batismo para os cristãos. De onde veio? De África.
Rezam as lendas, que um dia um soba andava à caça, com a vestimenta que Deus lhe dera ao nascer, quando uma folha de capim, daquelas que têm os bordos serrilhados, lhe cortou o prepúcio. Regressou à embala com o pénis sangrando, onde a ciência dos quimbandas locais foi suficiente para o curarem. Pouco tempo depois, já curado, as esposas, que eram várias, não tardaram a segredar a todas as outras mulheres da embala, que as relações sexuais com o soba, depois que cortara a ponta do negócio, tinham melhorado muito!
Mulheres, metidas no assunto, num instante todas quiseram passar a usufruir do mesmo privilégio e não terá sido difícil convenceram os restantes homens a cortarem os respectivos prepúcios! Circuncisão vem do latim e significa cortar em circum, isto é em roda, o que a medicina convencional chama postectomia, que por sua vez vem do grego, para complicar, claro. Não sei como é, mas face à sua antiguidade e lendária origem... se melhora assim tanto, devíamos todos ser operados!
Terá assim nascido em África a circuncisão, que se espalhou por quase todos os povos daquele e outros continentes, a sua grande importância advindo do interêsse das mulheres e a seguir dos homens, como é evidente!
Ao artista escultor pedi então para fazer quantos bonecos soubesse e quisesse, mas que no final os identificasse um por um, porque só assim podiam ser depois compreendidos. Quando prontos entregasse ao nosso agente que lhos pagaria.
Se bem me lembro pediu cinco angolares, cinco escudos, por cada. Deixei algum dinheiro para que tivesse a certeza que eu estava mesmo interessado, e passado uns tempos, recebi em casa uma caixa grande cheia de bonecos. Adorei. Fiquei entusiasmadissimo. De uma simplicidade e ingenuidade incríveis, são um valioso documento etnográfico de uma época que está a perder-se com o avanço da civilização, e sobretudo com a devastação que o genocídio que durou quase 30 anosfez naquela região, de onde os povos tiveram que fugir e refugiar-se na miséria das cidades, destruídas e atacadas constante e alternadamente pelos exércitos do MPLA ou da UNITA. Uma desgraça.
Os bonecos, que passaram à categoria de estatuetas, importantes, alguns já um pouco martirizados devido à sua própria fragilidade e muitas viagens, são ainda vinte e dois. Já não tenho a certeza se alguma vez foram mais, mas estão todos identificados pelo artista:
Aspirante, Bambe, Belengue, Cacuni, Camussambe, Candinba, Capumba, Catelenga, Gongo-cangila. Liangou, Liavangua, Nachicole, Pundo. Sacalumbo, Sacunganga. Sati, Socou. Tumbassungo, Txiaveleca, Txibiambiulo, Txicunza. Waieia.
Os únicos que consigo identificar são: o Aspirante, cara pintada de amarelo que representa o aspirante administrativo, branco, do tempo colonial que por razões de serviço talvez presenciasse a cerimonia, e o Txicunza, adiante descrito eo Candimba, coelho, até pelas orelhas! Os outros não encontrei até hoje quem os identificasse, nem significado para a palavra.
É difícil descrever, por ordem de gosto ou ligação sentimental, estas recordações de África. Tivémos muitas, muitas, mas o tempo e as tais viagens, acabaram com um grande número delas. Não vou obedecer a nenhuma ordem especial de valores para falar delas. Só um pouquinho!
Os manipanços. Esculturas de madeira com cerca de um metro de altura. Encontrei-os em casa de um secúlo perto de Serpa Pinto, hoje Menongue, centro sul de Angola, uns trezentos quilometros a sul do Bié. No que se chamava o princípio das terras do fim do mundo! O muene, possivelmente ganguela ou quioco, não queria vendê-las, já não sei porquê, mas quando, em 1958, bati o olho neles, não desisti enquanto não o convenci. Julgo que foi habilidade dele para cobrar um pouco mais caro, no que os africanos de um modo geral são mestres. Fez bem. Tenho uma idéia, vaga, que me custaram uns cem ou cento e cinquenta escudos cada um, o que era um razoável dinheiro naquele tempo e naquele sertão. São também representações de personagens da circuncisão. De acordo com o grande etnólogo José Redinha, com quem tive o privilégio fazer amizade, e recordo com saudade, são também Txicunza!


Os "manipanços" - Txikunzas

Txicunza ou Txicanza é o rito da mucanda, a prática da circuncisão com todas as suas praxes, regras e doutrinas, que prevaleceu entre os Quiocos. O homem com a máscara Txicunza é o primeiro a aparecer nas cerimónias e ritos iniciais, e sem ela nem sequer se pode dar início à festa.
Um dos manipanços é mais simplório, naive, isto é, ingénuo, o que, a meu ver só o valoriza. O outro mais bem elaborado, parece ter influência externa, chamada erudita! De qualquer modo são companhia que não dispenso, apesar de se ver que sofreram já com os anos e viagens!
Lá das bandas do Moxico, Luena, naquele tempo Vila Luso, são as duas pequenas tapeçarias que pelas suas diminutas dimensões não sei que finalidade teriam quando foram tecidas. Devem ser uma espécie de tapetes cerimoniais onde os conselheiros se sentam quando vão visitar o soba. Quem sabe! Mas têm tanto sabor de autenticidade africana, e são tão simples, que considero, e são, duas peças de arte. Se eventualmente algum entendido não estiver de acordo, não tem importância alguma! Em nossa casa todos apreciamos, e têm sido cobiçadas. Arte quioca.

Os ngoma, tambores compridos, dois, feitos de tronco de mafumeira (sumaumeira) abertos no interior e forrados de pele em um dos lados. Continuam impecáveis, como quando os adquiri. Não admira, porque há muitos anos fazem parte da composição de estantes, como suportes de prateleiras de livros, e assim não terem sido levados pelos filhos para batucadas de destrutivas farras de rock pauleira! Se a memória não falha também são lá do sul de Angola, das bandas do Caiundo, às margens do rio Cubango. Também ganguela ou quioco.
Os dois "ngoma" de 150 escudos cada!
Há mais e 50 anos!

Armas: as de fogo, treze, que possuía, usadas em África para caçar, foram oficialmente roubadas à chegada à alfândega do Brasil! Para esquecer. As brancas, por ordem de valor real e/ou estimativo começam por um punhal e um machado que, segundo o tio meu, o grande tio Chico, que mos deu, teriam pertencido a seu tio Mouzinho de Albuquerque, grande figura da história de Portugal que chegou a ser comissário régio em Moçambique. Homem de grande valor militar e moral, foi um dos educadores do Príncipe Dom Luís Filipe que morreu assassinado junto com o pai, o Rei Dom Carlos, em 1908. Ainda hoje na Academia Militar da Áustria, aos jovens cadetes é lida uma carta de princípios éticos, pela qual estes devem pautar a sua conduta pela vida fora, escrita por Mouzinho ao seu Príncipe!
Se lhe pertenceram ou não, não tenho como garantir, mas com esse curriculum, vieram para as minhas mãos. São antigos e bonitos, sobretudo o punhal, que é uma faca de chefe, um mucuali. O machado está entre o tipo de gala e de caça, e em Angola se chama javite, onjavite, canjavite, cau e certamente de outros modos ainda.
Os dois "punhais" e o javite

O outro punhal, ou faca, foi comprado no aeroporto de Kano, na Nigéria, em 1956! Peça para turista, mas de bonito acabamento, com a bainha em pele de cobra.
Neste aeroporto passei com o meu sogro, quando íamos a caminho de Benguela. O vôo de Lisboa a Luanda, num Super G - Constellation, quadrimotor, fazia escala técnica de abastecimento em Kano. O edifício do aeroporto era pouco mais do que um armazém, estando em construção um outro menos precário.
Aterrámos antes do nascer do dia e, durante aquela escala foi-nos servido um café da manhã. Café e pão! Os criados do restaurante, belo cofió vermelho na cabeça, serviram os passageiros com café, e passado um pouco um deles percorria as mesas com uma colher e uma toalha na mão. Fazia sinal para que puséssemos o açúcar na xícara para ele mexer! Enfiava a colher na nossa xícara, mexia, retirava-a, passava na toalha e mexia a de outro freguês, e assim por diante a todos os presentes! Ou só havia uma colher naquele restaurante (?!) ou assim ele teria menos trabalho de as lavar quando os passageiros acabassem a refeição! Mistério que não decifrável na ocasião, nem depois, mas que foi motivo de boa galhofa.
Outras peças, como o arco e flechas têm a sua origem contada no meu livro “Contos Peregrinos”. Mas como sei que muitos não leram... vou repetir o que ali está escrito, até porque não tenho que me preocupar com plágios e/ou direitos autorais:

Entre o que resistiu ao passar dos anos e dessas viagens, há uma lança, um arco e algumas flechas, um javite e um facão, comprados a um caçador cuamato, lá bem no finzinho sul de Angola, em Namacunde, junto à fronteira com a Namíbia.
O melhor da recordação ainda foi a negociação. O caçador, magro e sereno, como todo o bom caçador, atravessava a povoação, com o seu trajo tradicional, que não se compunha de mais do que uma tanga, uns escassos pedaços de panos pendendo na frente do sexo, um cordão na cinta que os sustentava, e alguns colares! Às costas o facão e na mão além de uma lança, o arco com cinco flechas, cada uma com sua ponta diferente. Uma penetrante, outra cortante, outra ainda tipo moca para caçar pássaros sem os destruir com objeto cortante,e mais uma para pescar.
Quando vi todos aqueles objetos, que achei sensacionais, perguntei-lhe se mos vendia. O homem quase não falava português. A negociação necessitou de interprete, porque caçador vive sempre no mato, onde só a sua língua tem serventia, raras vezes vai à civilização, e em Namacunde a civilização mal chegara! Chegava um pequeno avião de carreira a Ondjiva, a cinquenta quilometros dali, uma vez por semana, e depois só a estrada até lá.
O homem não queria vender, como seria de esperar. Era toda a sua ferramenta de sobrevivência, de trabalho. Mas não lhe era difícil repô-la em poucos dias. A argumentação do meu “advogado” e de algum dinheiro, o dobro do que alguns entendidos tinham avaliado, acabou por convencê-lo. Fez foi um ar muito espantado para o intérprete perguntando depois na sua língua:
- Branco tem espingarda boa, não sabe atirar com arco! Para que branco queria aquilo?
Quando me traduziram a sua observação por tão aparentemente despropositada compra da minha parte, disse-lhe:
- Está vendo aquele pneu abandonado, ali debaixo daquela arvore?
- Sim.
- Olha bem p´ra ele.
O pneu estava a uns quinze metros. Apontei, retesei o arco e atirei uma das flechas, que foi entrar certinha no meio do pneu!
- Hah! Hah! Háca!
- Viu? Agora já posso ir caçar com você!
Infelizmente não fui. Quem caçou, lá em casa, foram os filhos. O arco ainda hoje sobrevive bem, com a sua tira de couro em perfeito estado de conservação, a lança e o facão também, mas as flechas quase todas quebraram em tiro ao alvo, nas paredes!
Depois disto escrito aprendi um pouco mais de termos angolanos, e assim vamos ver como eles por lá chamam aos diversos tipos de setas:
- Mive, nome genérico de flecha, nos quiocos;
- Conji, tipo moca, para pássaros, entre os lunda, quiocos e ganguelas;
- Mive-ua-txicalo, tipo arpão, de madeira, multi barbelada, pode ser dos quiocos e lundas, ou
- Nsuma em quimbundo;
- Vulongo, penetrante, de ferro;
- Mive-ua-djimbo, em forma de machado, cortante;
- Ica, formato de meia lua;
A lança tem o nome de Eoanga.
Gostaram?

Também gosto muito daquela representação de uma aldeia cuanhama, feita de junco, com uns cinquenta centímetros de lado. Os cuanhamas são um povo estabelecido em sua maioria na zona sudoeste de Angola, entre os rios Cuango e Cunene. Povo caçador e pastoril, constrói à volta das suas casas uma paliçada, alta, para se proteger, de ataque de feras, principalmente leões, e defender também o gado, que para aquela gente representa tudo. Quem por ali andou reconhece imediatamente a região de onde ela veio. É das peças mais curiosas que guardamos com carinho, muito frágil, que considero obra de grande artista, com uma imaginação espetacular. Já se conserva conosco há uns quarenta anos!

Vejam o detalhe da antepara em frente da entrada do "banheiro"!

Outras peças sem aparência, mas que eu gosto, e está o assunto encerrado, pelo menos não aberto a estéreis discussões, são as caixas de rapé. Uma delas, de madeira escura comprei do próprio utente, com o tabaco dentro e tudo. O tabaco era um horror! Tinha um cheiro horrível, e para lhe tirar esse cheiro permaneceu meses, sim, meses, mergulhada em água com detergente.


As caixinhas de "rapé" !

Os africanos fumam dois tipos de tabaco, sendo o mais comum a liamba ou maconha, com que se entorpecem e levam a vida! O outro é um tipo de tabaco parecido com o comum, conhecido como acaia e mafuinha. Em rolos, o tabaco pode chamar-se cambando ou mbandu. Ambos têm um cheiro pestilento!
O tabaco transportado nestas pequenas caixas não se destina a fumo, mas a mascar ou enfiar pitadas no nariz como se usou no mundo civilizado, e a que se chamava rapé.
Tem mais, mas ficam para a próxima.

3 comentários:

  1. Que coincidência, andava pela Internet à procura de informação sobre 9 estatuetas do Bié de 1971 que o meu avô possui, semelhantes às suas.Também estas se encontram identificadas, mas com alguns nomes diferentes. Pelo que gostaria de entrar em contacto consigo, caso fosse possível. Com os melhores cumprimentos, Pedro Cadeco

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  2. Pedro: escreva para o meu email: oyarzun@terra.com.br

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