domingo, 10 de janeiro de 2010

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Luanda 75

Um berro na madrugada!


Depois da Europa com estágios e passeios terminados, em meados de 61, nas vésperas de regressar a Angola onde a guerra colonial estava a acender-se, entrei num ferro velho à saída de Sintra, que ficava num terreno onde hoje está construído um prédio com agência bancária e tudo, para ver uns carros bem antigos, aí dos anos 20, brinquedos que sempre exerceram em mim forte atração. Apeteceu-me comprar os dois velhinhos que ali jaziam, abandonados, um Chevrolet bege, capota de lona, aí de 1928 e um outro que nem sei já o que era. Sonhos destes, para quem não é rico, são difíceis de concretizar, e limitei-me a olhar, embevecido, para as relíquias.



Um dos que estavam aguardando desmanche! Chevrolet 1926. Uma pena


O outro seria talvez igual a este Willis Overland 1925. Beleza!

Ferro velho é um lugar onde me sinto bem! Sempre fuço por entre velharias e daquela vez tanto fucei que encontrei um monte, sim, um monte de camas de ferro, e achei que seria ótima idéia comprar umas quantas, para os quartos dos filhos. Não foi tarefa fácil encontrar cabeceiras que casassem com os pés, longarinas menos empenadas e mais fortes, decidindo que a solução seria comprar uma boa porção de cada. Acabei com umas oito cabeceiras e meia dúzia de pés.
Lá foi tudo, de navio, para Luanda, onde se fez a conveniente seleção e casamento, raspou-se a ferrugem, pintaram-se e vieram a servir muitos anos para os filhos, os tais quatro já nascidos nesse ano e mais os que vieram a nascer depois. Foi um bom “investimento”.
Entretanto parte dessas camas teve que ser substituída por beliches porque o espaço dentro de casa era escasso para tanta gente que de mansinho foi chegando.
Com as viagens, ou sem culpa destas, o número de camas foi-se reduzindo e hoje sobram só as duas que estiveram no quarto das filhas. As que estavam mais bem cuidadas! Alguns anos mais tarde, em Abril de 1975, ainda na Cabral Moncada, no número 128, a casa que comprámos e... lá está, decisão tomada de abandonar Angola, a Joana e Helena dormiam nessas camas.



Uma das duas camas que sobrevivem aoo fim de quase cincoenta anos de receber dorminhocos!

Uma bela noite, madrugada avançada, a Helena acordou com a luz do quarto acesa. No chão uma parafernália de coisas espalhadas, bolsas abertas, um reboliço. Pensou logo estas sonambolices da Joana, olha o que fazem! E, arrumada como é, tratou de repor tudo nos lugares. A seguir, eram umas quatro horas da manhã, aproveitou, já que estava acordada, para ir ao banheiro.
Sem que estivesse totalmente desperta, ao sair do quarto, alguém tenta lhe enfiar um lençol de banho pela cabeça! O susto foi medonho, coitada. Mas a Helena, que nunca entregou os pontos sem luta, defendeu-se por lapsos de segundos para se desenvencilhar daquilo com que o alguém teimava em lhe tapar a cabeça. Caiem ela e o outro no chão. Entretanto a Helena, assim que teve a cara e boca destapadas solta um berro de tal forma desesperado e forte que acordou não só todos os daquela casa, como grande parte da vizinhança que dormia no sossego de uma cidade que fora tranquila.

Estremunhado também, coração em sobressalto com tamanho berro, num salto saí do meu quarto, a porta do meu era a dois ou três metros do quarto dela e vejo a Helena:

- Pai! Pai! Um bandido!
Eu não via bandido nenhum.
- Onde filha?

- Vai ali, pai, a descer a escada!

Olho do cimo da escada e só consegui ver uma espécie de vulto virar no último degrau. Corro ao meu quarto pego uma caçadeira de três tiros, carrego num instante enquanto corro para baixo atrás do sujeito, dizendo aos filhos:

- Ninguém sai aí de cima.

A porta da copa para a cozinha estava fechada, mas havia uma outra porta que comunicava diretamente com a sala de jantar. Receoso que ele saísse por essa outra, voltasse atrás e agarrasse algum dos filhos como refém, procurei fechar com a chave a primeira para depois entrar pela segunda.
Nessa altura batem à porta da rua com violência. Abro e vejo três soldados da FNLA, os chamados Fenelas, cuja sede era na casa ao lado da nossa. Ouviram o tremendo grito e vieram correndo. Metralhadoras, pistolas e granadas de mão, na mão! Apavorado com a idéia que pudessem soltar uma granada dentro da casa, a primeira preocupação foi mandá-los guardar aquilo! Expliquei o que se passava e pedi que um deles se postasse em frente da tal outra porta da cozinha para evitar que o sujeito voltasse por aí.
Como a janela da cozinha para a rua tinha uma persiana, meio empenada, dificílima de abrir, conclui que o pilantra estaria encurralado. Quando por fim abro a porta é que vejo que o f.d.m. tinha mesmo entrado por essa tal janela dificílima de abrir. E voltou a sair por ali, porque a cozinha estava vazia e a janela aberta! O miserável tinha aberto a janela pelo lado de fora. Por dentro era difícil de abrir, mas para ladrão até por fora é tudo fácil.
A traseira da nossa casa dava para um parque, o Alvalade, com árvores, e sem iluminação. Qualquer um não precisava andar mais de meia dúzia de metros para ficar invisível. Pegámos em lanternas, acendemos as luzes todas das varandas, mas enxergar o assaltante é que nada. Os soldados deram uma rápida batida por detrás da casa mas também nada encontraram. O sujeito escapulira. Sumira, como por encanto, sem deixar rasto!
Entretanto os filhos rapazes, não apareciam! No meio de tanto tumulto e nervosismo ninguém ouvia bater, por dentro, na porta do quarto deles. Estavam fechados por fora. O bandido tinha começado a limpeza por aquele quarto. Levou um relógio do Luís e uma meia dúzia de escudos, e quando saiu trancou-lhes a porta por fora. Depois é que foi ao quarto das filhas, abriu a carteira da Joana e para facilidade de escolha espalhou tudo pelo chão, e se a Helena não tivesse acordado faria outro tanto no meu. Felizmente não entrou primeiro neste, porque se eu tivesse ficado fechado o caso poderia ter sido grave!
Na rua iluminavam-se janelas e mais janelas da vizinhança, cabeças aparecendo, indagando o que se passava. O forte berro alertara boa parte da rua.
A Helena muito excitada e nervosa, acabou por vir dormir no nosso quarto, bem como a Joana, claro, e mal nos tínhamos deitado, batem de novo à porta. Os soldados. Pegaram um sujeito! Estranho àquela hora da manhã, aliás ainda noite, e queriam que eu o identificasse. Estava ali detido, no meio do jardim da rampa, um pouco abaixo na nossa rua. Lá fui ver. Era um estúpido rapaz, branco, talvez vinte anos, com uma desculpa esfarrapada para explicar o que andava a fazer àquela hora da madrugada. Os soldados queriam linchá-lo, como é de supor, e insistiam para que eu confirmasse que era ele o assaltante. Como eu não o tinha visto voltei a casa para perguntar à Helena como ele estava vestido, e ela descreveu, sem sombra de dúvidas, a cor das calças e da camisa. O miserável, que o meu íntimo dizia ser ele mesmo, estava com outra roupa. E um pequeno embrulho na mão, que eu, burro, não me lembrei de mandar abrir! Devia já ser truque habitual. E sem nada mais que o pudesse condenar, sem ficar com idiota peso posterior na consciência, convenci os soldados a deixá-lo ir, o que fizeram extremamente contrariados.
Nem uma semana depois o bestalhóide fez outro assalto ali por perto e foi apanhado. Dessa vez lixou-se, claro.
Quem haveria de supor que umas velhas camas velhas teriam até história de bandido para contar?

09=01=10








Um comentário:

  1. eu lembro-me desta história do grito salvador da Helena que ficou famosa entre nós tal com a sua maravilhosa gargalhada. Mtos beijos

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