terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

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Máscaras, músicos e mussalo

Máscaras, várias. A máscara é uma escultura tradicional de África cuja feitura se perde nos tempos e terá começado como peça destinada a ritos religiosos. Há máscaras maravilhosas e valiosissimas nos principais museus do mundo, e constitui uma tradição muito arreigada aos costumes africanos.
Com interêsse histórico, só uma, em pedra sabão. Foi-me oferecida no Gabão.
Do Gabão. Pedra sabão rosa.
Depois da revolução em Portugal, logo que se anunciou que uma das primeiras atitudes do novo governo seria dar a independência às colónias, grande revolução aconteceu por toda a África. Primeiro no meu trabalho. No Banco, a meu cargo estavam as Relações Públicas, o que, face à nova perspectiva de todo o mundo dar o fora, e inevitável paralisação da economia, não tinha mais razão de existir. Relações do quê e com quem?
Por outro lado começaram a aparecer em Angola delegações de africanos, empresários, bancários e homens ligados a diversos setores governamentais para verem como eram os territórios que os portugueses tinham tão intransigentemente mantido sob sua posse.
Menos de vinte anos antes ainda alguns dirigentes africanos de países já independentes, acreditavam que estar sob o domínio dos portugueses era uma opção perfeitamente aceitável, até boa, segundo foi dito ao grande político Amilcar Cabral, que o deixou escrito! Parece impossível, mas é verdade! Entretanto a propaganda anti portuguesa era maciça por todo o mundo, com todos os exageros que os erros cometidos permitiam.
Alguns vizinhos, do Senegal, Gabão, Nigéria e outros chegavam a Angola e encontravam uma realidade que nada tinha a ver com as notícias que corriam nos seus países. Foram constatar que Luanda era, de longe, a cidade mais importante, mais desenvolvida e de melhor convívio racial de toda a África Negra! Tirando Benguela, é claro! A mim, portanto sem o ouvi dizer, foi-me dito por um diretor de banco da Costa do Marfim, durante um jantar num restaurante de Luanda, o Clube Naval:
- Foi pena que nós não tivéssemos sido colonizados pelos portugueses! Teria sido muito melhor. E eu que pensava que Abidjan era a melhor cidade da África negra!
Fez-se muita asneira, cometeram-se crimes, considerados quase normais para a época, hediondos aos olhos de hoje, lá isso é verdade. Mas ouvir isto de um africano, faz bem ao ego lusitano!
A verdade é que no banco eu não sabia o que fazer, o que era desagradável. Mandei um dos colaboradores ao Zaire ver a possibilidade de estabelecer relações comerciais mais íntimas, mas depois de ter sido recebido pelo diretor geral do banco nosso correspondente, via França, claro, que se deslocava num belo Mercedes último modelo, encasacado e engravatado a preceito, com sandaletes de plástico azul translúcido nos pés... não se anteviu qualquer hipótese de entendimento profissional!
Lembrei-me então de ir ao Gabão. Porquê ao Gabão? Porque estava em Luanda, vivendo como um grand seigneur um gabonês que se dizia amigo pessoal do Presidente do Gabão, Cristian Bernard Bongo, que encontrei diversas vezes em reuniões sociais! Bem falante, sabendo insinuar-se, foi fácil termos prolongadas conversas, acabando por me animar a visitar o seu país. Não precisava de visto. Nem reservar hotel. Havia dois bons hotéis e sempre quartos vagos.
Pedi, ao principais clientes industriais do banco, amostras de seus produtos, tabelas, catálogos, etc. e lá vou eu, uma pequena mala de roupa e uma enorme mala cheia de bagulho: amostras de escovas, tapeçarias, material elétrico para construção civil, catálogos de equipamento industrial diverso, metalo-mecânica, tintas e vernizes, pneus, roupa, sapatos, sandálias, perfumaria de preço popular, alimentos enlatados, cerveja, rações, café solúvel, enfim um monte de tranqueira. Comigo foi um colega, o Correia Martins, diretor de obras do banco, para ver que perspectivas haveria para a sua profissão de engenheiro civil naquele país.
Vôo Luanda - Libreville, uma vez por semana. Aos domingos. Depois de fazer escala em Brazzaville, desembarcamos no Gabão. Além de nós, somente uma dúzia de passageiros africanos embarcados na única escala, que logo passaram a polícia, e por fim os dois turistas, brancos, sem visto nos passaportes! Deu logo confusão! Um jovem tenente, solícito e muito educado, quando lhe disse que um amigo pessoal do Presidente nos garantira que não necessitávamos de visto, pensou um momento e telefonou para um chefe que o instruiu para que nos desse um visto provisório por três dias, mas que nos apresentássemos no dia seguinte no departamento de... já nem sei o quê.
De táxi a caminho do centro da cidade paramos no primeiro e melhor hotel, pertencente a uma das muitas conhecidas cadeias internacionais de hotelaria. Cheio. Completamente cheio. Havia uma convenção qualquer de países africanos e os hotéis estavam todos cheios! Quartos, nem unzinho, sequer!
Os dois bobocas, carregando duas maletas e uma mala enorme, sem lugar onde ficar!
Conhecimentos no país: um jovem, autêntico gentleman, diretor jurídico de um banco gabonês, que tínhamos recebido em Luanda, a quem logo telefonei pedindo socorro. Simpático e prestável conseguiu através de seus conhecimentos um quarto numa clínica onde um tio seu era médico, e creio até que dono! Ficámos então hospedados numa clínica, onde nos foram dadas rigorosas diretrizes, de não entrar depois das dez das noite, o que nunca cumprimos!
Chegávamos todos os dias depois dessa hora, ouvíamos um monte de repreensões das zelosas enfermeiras de serviço e por fim, mesmo fazendo-nos um grande favor, pagámos mais caro do que se tivéssemos ficado num hotel de cinco estrelas!
O meu colega do banco gabonês, Cristian também, marcou uma série de entrevistas com uns quantos comerciantes a quem fui apresentar o mostruário dos produtos angolanos. Eles simplesmente não acreditaram que em Angola se produzisse mais do que café, diamantes e petróleo, que a propaganda internacional não podia esconder! Teimavam que eram produtos importados que queríamos revender. Um território colónia a produzir alguma coisa? Impossível. Quando por fim os convencia que eu não estaria ali para bancar o vigarista, ficavam espantadissimos. Quase virei herói à conta do que em Angola se produzia, e a notícia de que andavam por ali dois brancos de Angola, a mostrar coisas incríveis, correu a pequena cidade e chegou ao conhecimento da rádio local.
Mandada também pelo Cristian, aparece-me uma tia, solteira ou desquitada, já nem sei, feioca, em bem mais de meio uso, jornalista da Rádio Libreville, para me entrevistar! Achou uma maravilha Angola produzir tudo aquilo, até porque no Gabão não se produzia rigorosamente nada! Tudo ali era importado de França, que muito mais inteligentes do que os descobridores portugueses, haviam descoberto a maneira de ficar quase eternamente a sugar as antigas colónias. Ainda hoje o neo-colonialismo é a maior desgraça de África.
Imaginem! A tia, entusiasmada com o grande furo jornalístico africano, levou-me à emissora onde me fez uma longa entrevista, a que não faltaram aquela perguntas fáceis para quem não é político, sobre o que se ia passar agora, isto é, a seguir à declaração de Portugal que dizia ter como prioridade dar quase imediatamente a independência às quase ex-colónias. Devo ter respondido algo como Sim, não, claro, é lógico e evidente, etc. tanto mais que naquela altura ninguém podia ter idéia do desenrolar dos acontecimentos. Nem o governo português sabia e tinha perdido o controle de qualquer negociação inteligente. Esta conversa durou talvez uma hora. Além do interesse que Angola despertava em todos os países sobretudo de África... deviam ter poucos programas!
O Correia Martins sempre comigo, porque como não falava francês, nem quando eu estava ocupado me largava!
Depois da entrevista a tia levou-nos a sua casa, apartamento simples mas bem cuidado, bebemos um copo, e a seguir convidámo-la para jantar. Não sei se foi de algum copo a mais, acho que ela viu em qualquer um de nós uma conquista garantida e, empolgada como estava, foi dizendo que um podia ficar na casa dela... mais à vontade do que na clínica... sem necessidade de horário de entrada... e free of charge! Apesar do convite ser tentador, delicadamente declinámos com a argumentação de não nos podermos separar porque o Correia Martins sozinho corria o risco de se perder!
Ela deve ter argumentado que não o deixaria jamais perdido, muito pelo contrário, mas assim mesmo nenhum de nós se abalançou a deixar-se envolver nos braços daquele simpático, ostensivo, conciso, preciso, mas um tanto velho convite! Não era bem um convite, era muito mais uma grande cantada!
No dia seguinte procurou-nos de novo. Desta vez para nos convidar para almoçarmos, sábado, dia seguinte, na casa de praia de um primo seu. Não nos preocupássemos com o transporte porque íamos no carro dela, e levaria mais uma amiga! Assim ambos teríamos companhia! Vejam só que programaço se estava a preparar!
Uma dúzia de quilómetros a norte da cidade lá estava a tal casa de fim de semana, tosca, agradável, debaixo de frondosas árvores que a defendiam do sol equatorial, junto à praia, um lugar bonito, e sossegado.
O primo era o diretor do Departamento de Estatística do Ministério da Agricultura. Para um país que na altura não tinha nem meio milhão de habitantes, pouco mais fazia do que exportar madeira, aliás de primeira qualidade, porque a maioria do seu território se situa em região de floresta equatorial, um cargo desta importância não tinha muita lógica, mas... mas era um sujeito simpático. Grandão, bonacheirão, boa praça.
Durante o descontraído almoço, bem servido e razoavelmente bebido, atrevi-me a perguntar-lhe o que poderia fazer o diretor de um departamento de estatística agrícola quando até as bananas vinham do país vizinho, Camarões, a sua única resposta foi sorrir para mim, e dizer-me:
- Tem razão!
Para rematar o banquete o anfitrião ofereceu-nos algo que supunha nos faria grande surpresa, e com isso poderia botar figura. A nós, os que vínhamos lá de Angola, terra de colonos, uma espécie de matumbos brancos, apresentou-nos uns pedaços de favo de abelha com mel, acabados de colher.
- Sabem o que isso é?
Sabíamos. E mais. Sabíamos como tratar o mel, retirá-lo do favo, derreter a cera, embalar o mel, comercializar este e a cera, etc. O mel, daquelas florestas, floresta equatorial ainda relativamente bem conservada, que ia até ao mar, era uma delícia. Sugerimos-lhe que o embalasse e comercializasse, que daquela qualidade, puríssimo, teria sucesso garantido. Podia até exportar para França. O homem ficou encantado com os nossos profundos conhecimentos. Prometi-lhe que após regressar a Luanda lhe mandaria, pelo correio, alguns livros sobre apicultura, o que não deixei de fazer.
Agradecido, ofereceu-me aquela pequena máscara feita de pedra sabão rosa.
Almoço e papo chegados ao fim, o anfitrião foi dormir a sesta mais a esposa. A tia e a amiga - acho que deviam estar todos mancomunados - logo nos convidaram para ir até à praia. Fomos. A praia era linda, as raízes da floresta banhando-se no Atlântico, areia limpissima, um mar com diversas tonalidades de azul, um lugar para fotografar e propagandear ao turismo mundial, para a seguir os turistas destruírem!

A orla da floresta sombreava parte da praia. As duas mininas, afastando-se discretamente uns convenientes passos uma da outra, logo se reclinaram dengosamente sob aquelas acolhedoras sombras convidando-nos a acompanhá-las, quem sabe se com a finalidade técnica de testarem a qualidade da circuncisão angolano-portuguesa! E algo mais.
Não sei já que medíocre argumentação tive que desenvolver em nome dos dois para declinar tão óbvios e calorosos convites. As mininas ficaram bravas, desenganadas, desprezadas, traídas! À alegria esfuziante e prometedora (de quê?) seguiu-se um frio distante e mudo. No caminho de regresso à cidade nem mais uma palavra trocámos, nem as voltámos a ver!
Se não fosse a máscara de pedra sabão, talvez já tivesse esquecido esta viagem, e até, quem sabe, os assédios que afoitamente a tia e sua amiga, esta aparentemente menos ávida, mas quiçá mais curiosa, nos fizeram! Se mostrámos que não éramos tão matumbos ao falar de abelhas e mel, a fama de português que não perde oportunidade de acariciar uma pele mais escura e macia, ali se desvaneceu! Se a tia não estivesse já tão pouco macia... quem sabe?!
De qualquer modo devo reconhecer que os créditos dos portugueses como colonizadores multirraciais devem ter ficado seriamente comprometidos. Lamento.
Angola. Máscara decorativa, cerca de 1 m. da altura

Uma outra estatueta em pedra sabão cinza, uma mulher ajoelhada com o filho nas costas, comprei na ex Rodésia do Sul, que depois era só Rodésia quando a do norte virou Zambia, e hoje Zimbabwe. Na estrada, a um artesão, quando fui visitar o monumento que deu nome ao país: o Grande Zimbabwe.
Do Zimbabwe. Pedra sabão

Muitos historiadores, arqueólogos e outros cientistas têm-se debruçado sobre este monumento e, tudo lido, não se chega a qualquer conclusão segura. A sensação que tive quando ali cheguei, além de admirar aquela estranha e bela construção é que seria um entreposto comercial, onde, em segurança se juntavam escravos e ouro que depois eram levados para negociar lá para as costas de Zanzibar. Posso estar muito enganado, mas até hoje não li nada que desminta esta hipótese.
É todavia algo de grandioso e impressionante, lá isso é. Pode-se ficar ali sentado horas sem fim refletindo sobre...
Outra maravilha que este país divide com a Zambia no rio Zambeze, são as quedas Vitória, ainda hoje assim chamadas, apesar deste nome ter sido uma homenagem à velha e macha rainha inglesa. É um espetáculo impressionante. Um dos poucos, pouquissimos, diplomas, dos muitos que me foram passados durante a vida, que guardo como recordação, é o da rápida visita que ali fiz em 1972.
Os nativos da região chamavam às quedas "O fumo que ressoa!"
Visto de avião é que se compreende bem a razão deste nome. A terra um belo dia abriu, rasgou-se, criando um vale profundo de curvas sinuosas e apertadas. As águas do rio que correm tranquilas no planalto, de repente despencam nesse vale, e por ali seguem o seu caminho. Desde longe vê-se uma nuvem de umidade que se eleva no ar como fumaça de fogueira, e ouve-se um ressoar contínuo como o respirar de um imenso e roufenho leão. O fumo que ressoa.


Bonito. Voltaria lá, se pudesse.

Ainda das pequenas recordações que guardam pela vida fora e não deixam esquecer o que vivemos quando as adquirimos, na Suazilândia. São três bonequinhos, pequenos, feitos de sementes de árvores e um pouco de pele de cabrito do mato. Os músicos. Eram mais, mas uns... ficaram-se pelo caminho ou talvez se tenham incorporado a alguma banda célebre!
Os "musicos" Suazi
 
Por fim, região de Malange, Baixa de Cassange. Como se pode ver pelo que guardo de artesanato é fácil imaginar que gosto muito. Mas do que é usado pelo povo, e raramente do “para turistas”.
As mulheres desta região, que vai até aos Luenas, fazem, tudo com produtos da terra, vegetais, um tipo de peneira, extra fina, que é uma verdadeira obra de arte, a que chamam Mussalo.

Uma obra de arte, em prfeição. "Mussalo"

Para peneirar fazem o mussalo rolar entre as mãos e a farinha que dali sai é de uma finura incrível.
Durante muitos anos umas quantas serviram de abatjours nos quartos das crianças. Deixavam passar uma luz bem suave que nos permitia entrar nos seus quartos sem os acordar.
Hoje, infelizmente sobra uma só, mas em estado impecável, apesar de ter entre 40 e 50 anos. Peça de exposição.
E são estas pequenas coisas que ajudam a nossa memória a não enfraquecer tão depressa, e nos transportam, com saudade e simplicidade aos locais de suas origens. São uma espécie de “túneis do tempo”!

30 jan. 10

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