domingo, 3 de janeiro de 2010

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Benguela e arredores

Benguela foi (ainda será?...) terra de poetas! Alguns deixaram poemas escritos, outros levaram uma vida misto de boemia e poesia. Mas boemia levada alegre não é um canto de amor à vida, um poema constante? Além do meu querido amigo Ernesto Lara, de quem vai um “cheirinho” de “O canto do Martrindinde”, e já veremos a que propósito isto vem, lembro dois benguelenses que só por si faziam a vida em Benguela valer a pena! Sugiro que antes de continuar a ler este texto leia primeiro a “Mukanda para a Cidade de Benguela”, carta linda, como tudo o que o Ernesto Lara escrevia, e que vem em http://www.angola-saiago.net/cidmae10.html  

Fala ele, mesmo que rapidamente, dum poeta desconhecido: o fotógrafo Luis de Camões! Não se podia estar com ele e ficar de má disposição. Era um bálsamo! Mesmo que fosse um bálsamo de maluquice, valia a pena. Conheci-o muito bem, e no tempo que trabalhei com material fotográfico, era impossível cortar-lhe o crédito apesar de, por boemia, levar alguns meses para pagar as contas!

Tinha no seu estúdio uma espécie de mezzanino, para onde subia por uma escada de madeira, e ali ficava estendido, recuperando o que a farra na noite não lho tinha permito, ou aproveitando a sesta! Quando chegava algum cliente à loja era preciso chamar várias vezes para ver aparecer uma ensonada cabeça lá no alto! Dizia ele que ali era o seu refúgio secreto, para onde muita vez subiam simpáticas garotas que ajudavam a embalar o seu “descanso” sem correr o perigo de serem vistas porque se mantinham deitadas lá no fundo, enquanto os clientes estavam na loja!
Depois, no famoso e saudoso bar do Guimarães, onde se juntava a alegria da terra, com “St. Pauli” e mais tarde com umas “Cucas”, contavam-se histórias, descontraía-se e, depois do cacimbo, as acácias iam começando a florir para enfeitar o Natal tropical daquela terra morena!
Um dos freqüentadores dessa tertúlia lá por 1954, era um piloto aviador que tenho a maior pena de ter esquecido o seu nome, e na minha memória aparece só uma turva figura, um daqueles morenos loucos de vida e de amigos.
Para pilotar, todos tinham que saber um pouco de inglês, por causa do trafega aéreo. Um dia viu anunciado numa revista americana um produto para desfrisar os cabelos crespos, e logo pensou que isso seria um belo negócio a fazer por todo o lado por onde andava.
Pediu a um colega, americano, que quando voltasse um dia dos EUA lhe trouxesse algumas embalagens desse produto, que ele já considerava a descoberta do século.
Passados uns meses chegou a promissora e miraculosa maravilha! Uma rápida olhada no rótulo onde se via uma garota com os cabelos todos lisinhos, e vá de fazer o primeiro ensaio, antes de “entrar no mercado”. Em quem ensaiar? Uma prima, bela cabeleira africana, logo se prestou para ser a primeira beldade a exibir tal progresso. E começa o trabalho: entorna um pouco de produto nas mãos e vá de esfregar a cabeça da prima! Não tardou que esta começasse a sentir uns ardores exagerados na nuca, mas o “cientista” não desistia: “Prima! Sofrer para ser bela!” E insistia. Não tardou que o cabelo, com a base queimada, começasse a cair! Correm para uma torneira para aplacar a dor, e em socorro da vítima acorre a família e os irmãos, que ao verem o sucedido partem para cima do “desfrisador”.
O nosso piloto/cabeleireiro teve que fugir da cidade e só regressar alguns meses depois quando a prima e família, acalmados, decidiram perdoar-lhe!
Veio depois a constatar-se que o tal produto deveria ter sido diluído em não sei quantas partes de água... e aplicado durante vários dias.
Mas esta história contada pelo autor, um indivíduo cheio de boa disposição, está até hoje gravada na minha memória e sempre me riu, mesmo sozinho, quando me vem à memória!
Havia lá na terra um outro piloto e rádio Amador, Belém, casado, tranqüilo, simpático, dono de um carro lindão. Um Citroen igual ao que vai aqui a imagem, só que cor verde e estofos bege. Um luxo! Não me lembro já se ele precisava de dinheiro ou queria comprar algo mais moderno, a verdade, é que insistiu comigo diversas vezes para eu ficar com o carro! Eu que tinha um boa situação na Lusolanda e andava com a mulher, grávida, sentada no quadro da bicicleta, e ainda por cima ficava de olhos vidrados a olhar aquele carro... seria o comprador certo, não fosse um fator simples: não tinha dinheiro! Lembro-me que ele queria 20 contos e que eu lhe pagasse como entendesse. Não havia entendimento possível sem os equivalentes “Angolares”! Até hoje sonho com essa lindeza de carro! Sempre sonhando...


Olhem que belezoca ! O "meu ainda era mais bonito: verde com estofos bege!


Precisava de vinte destas notas para ter o bólido!


O verso da nota.

Vamos agora aos insetos cantadores. Em Benguela era o Martrindinde, que para quem não conhece, é uma espécie de grilo, que inspirou o nosso grande boêmio/poeta Ernesto Lara


O canto do Martrindinde



O canto do Martrindinde
é um canto da cidade
vem pela noite dentro
cheio de ambiguidade




O canto do Matrindinde
é um cantar nacional
veio do mato à cidade
e tornou-se universal.


O belo martrindinde

Catengue, a cerca de 70 ou 80 kms de Benguela, no caminho para o interior, para o Huambo, por exemplo, era um local de passagem de carros e do combóio. Este metia água e lenha, os carros, alguns, combustível, e os passageiros aproveitavam para comer no “palace”, quase única casa, pensão, restaurante e comércio do lugar. A única atração daquela terra, além da eventual fome dos passantes, ou cansaço para passar a noite, era um búfalo que o dono do “hotel” tinha preso num curral de madeira. Bicho grande, o “Bonifácio”, pacífico, adorava que se lhe fizessem festas, comia o capim que lhe era servido com regularidade e... ali estava. O problema é que aquela região era (ou ainda é?) terra de búfalos, e quando chegava a época da reprodução o “Bonifácio” apurava as ventas e chegava-lhe o cheiro doce do cio das fêmeas! Apesar do curral ser feito de fortes troncos de madeira, “Bonifácio” dava um ligeiro empurrão na cerca e saía atrás das garotas! Não adiantava proculá-lo. Ficava uns dias desaparecido e, após certamente cumprido o seu dever de procriador, voltava tranquilamente para a pensão que o alimentava e mantinha forte, sem ter que brigar por um lugar na manada!


O "Sincerus caffer" - "Bonifácio"




Nesse “hotel”, uma noite em que ali passei, fizemos uma paragem para jantar. Noite. Janelas e portas abertas para tornar o ambiente mais agradável, os martrindindes estavam longe e as cigarras tinham já cessado o seu canto. A minha mesa a uns 8 ou 10 metros da porta para a rua, eu sentado de frente para a porta, comendo sem pressa o habitual bife com batatas fritas, acompanhado dum copo de vinho tinto, de momento ainda cheio pela metade. De repente sinto uma pancada na cabeça que me despertou em menos de um segundo, porque imediatamente após, a cigarra, que fora ela que num vôo suicida se chocara com a minha testa, caíra dentro do copo de vinho e vibrou tanto as asas que o vinho espirrou todo de dentro do copo! Tudo isto demorou uns segundos, mas foi o suficiente para que o meu companheiro de viagem, e eu, ficássemos com a cara, braços e camisa toda encharcada em vinho tinto. Até o bife e as batatas tiveram que ser substituídos!



A cigarra do género "bebedolas!


A cigarra após seu desesperado “canto do cisne”, jazia, morta de bêbeda, no fundo do copo vazio!

Mas nada disto impedia que tivéssemos perdido a juventude sem praticar desporto. Havia a praia, mas que já lá vamos, e a Associação Comercial com seu campo de Tênis.

Nesta foto vê-se o belo edifício da Associação Comercial e quase no canto inferior direito o campo de ténis que no ano seguinte desapareceu!

Toda a semana, às vezes mais do que uma vez lá ia jogar uma ou outra partida. O principal parceiro era um jovem, como eu, funcionário da Fazenda, cujo nome... há muito me fugiu. Ótimo parceiro, simpático, bom jogador – creio que era ele que ganhava quase sempre; depois de sair de Benguela só encontrei uma vez, em Luanda, cabelo levemente a encanecer, já diretor de Fazenda, mas sempre atencioso e educado. Está na foto à minha direita. Se alguém o reconhecer, ou melhor, souber do seu paradeiro, eu ficaria imensamente feliz. O mesmo para o outro parceiro, o Magalhães, funcionário também da Lusolanda, na contabilidade, jogador do clube de futebol da terra, sempre bem disposto e motociclista!

Os três tenistas de Benguela: ?, eu e Magalhães

Naquele tempo para se falar ao telefone com a famigerada metrópole... só do Lobito. A Benguela ainda não havia chegado esse imenso avanço tecnológico! Minha mulher aguardava instruções para embarcar de Lisboa para a nossa aventura africana. Nas vésperas da sua chorosa largada – largava os pais e a irmã! – eu quis telefonar-lhe. O Magalhães emprestou-me a sua moto – talvez fosse uma Norton! – e lá fui eu aqueles trinta e poucos quilômetros de asfalto, falar ao telefone. A minha caneta tinteiro de estimação que levava no bolso externo da camisa... voou no meio da viagem!
Foi este rapaz, o Magalhães que me apresentou aos “atletas” praianos! Aos domingos lá ia com minha mulher até à praia. Não conhecíamos ninguém. Só eu, os colegas de trabalho. Como em toda a praia, juntava-se uma turma de jogadores, normalmente de vôlei; ótimo para aquecer os músculos e dar um bom mergulho a seguir.

Num dos dias de grande calema, quando as ondas, enormes, que chegavam à praia, tinham o condão de encher de areia a rua atrás do “Porta Aviões”, tomar banho de mar era uma temeridade. Mas... lá está o atrevimento da juventude... Com uma grande câmara de ar a fazer de bóia, era uma delícia passar a arrebentação e ficar lá fora subindo e descendo no ondular daquelas grandes ondas. Depois, para vir para terra, é só esperar aquele intervalo das sete ondas quando o mar dá uma folguinha! Assim fiz. Pareceu-me que tinha chegado o momento para regressar à praia e comecei a nadar e ao mesmo tempo empurrando a bóia. Só que... estava um pouco longe demais para ter tempo de aproveitar o tal intervalo das ondas, e quando estou já perto da praia, olho para trás e vejo um autêntico “tsunami” – nesse tempo não existia este termo! – a desfazer-se por cima da minha cabeça! Solto a bóia, encho os pulmões de ar, e andei a rolar dentro da onda apanhando em todo o corpo uma valente surra de cascas de mariscos, pedras, pequenas mas pareciam chibatas, não sabia qual era o lado do céu ou do fundo, até que esse castigo acabou, ponho a cabeça fora de água e vejo a segunda onda, igual em tamanho e fúria, a despencar! Repete-se a cena, mas desta vez o mar foi generoso: a onda agarrou em mim, como um trapo velho, desprezível, e me jogou para cima da areia, onde fiquei uns momentos estendido... a respirar!
A minha mulher assistiu àquele pré naufrágio, pensando que eu estava total senhor da situação! Não estava. Só a levar pancada e a aprender.

3-jan-10










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