quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Faz tempo que não recordo Moçambique. Hoje vai um episódio triste, vergonhoso, mas, é história, e a história não é para esquecer.
Os próximos textos sobre este país lindo, serão mais agradáveis! Prometo


NOITE  DE  HORROR

Lourenço Marques. 1974

A revolução já tinha acontecido em Portugal. A primeira medida tomada, depois de trancafiados na cadeia os responsáveis da PIDE, incluindo os burocratas que ali trabalhavam, foi anunciar a independência das colônias.
Quando? Como? Isso ninguém sabia, mas como os exemplos anteriores de grande parte das independências em África fizeram correr muito sangue, a preocupação geral era grande.
Os africanos há anos, quase há séculos era o que almejavam, ver-se livres do jugo colonial que nunca aceitaram. Hoje são subjugados poder económico. Mas ninguém gosta de jugo. Não só os africanos como todos aqueles que ali viviam e não podiam trabalhar livremente porque as dificuldades criadas pela metrópole a todos pesavam. A uns mais vergonhosamente, mas a todos, economicamente.
Finalmente chegava a independência. Para isso tinham lutado, e era um direito seu inalienável e histórico. Os brancos que tinham ali vivido toda a sua vida, alguns vindos de três, quatro e mais gerações, achavam-se no mesmo direito à independência, à continuação do seu trabalho, das suas vidas, a não perder o que tinham. À paz.
Mas como ia ser essa independência?
Geraram-se à última hora pseudo movimentos políticos de feição moderada, que pretendiam opor-se a uma independência unicamente negra, o que era total ilusão, que pressupunha a continuação de muitos dos brancos e mestiços tanto na política como em lugares públicos de responsabilidade, sobretudo técnicos, outra ilusão, mas sobretudo o que se gerou foi muita confusão e muito pânico em todos os lados.
Substituíram-se os governos coloniais por governos de transição com elementos da Frelimo, até hoje no poder, cabendo a responsabilidade pela segurança dessa transmissão de poderes a um Alto Comissário português, nomeado pelo chamado conselho da revolução. Com letra minúscula!
Os africanos que compunham esse governo por parte da Frelimo, nada racistas, consideravam os brancos, todos, sem excepção, inimigos dos pretos. Era difícil, quase impossível o diálogo com esta mentalidade!
Alguns dos platónicos que quiseram ainda iludir-se que um governo misto poderia acontecer, preservando os bens humanos e materiais adquiridos, acabaram provocando uma reação perigosa, e em setembro desse ano apoderaram-se do Radio Clube de Moçambique, e numa emissão desastrosa incitavam a população, sobretudo branca, a se defender com armas contra a imposição, pelo governo português, de um governo negro, que entretanto já ia dando provas de arrogância e hostilidade a peles claras.
Como resultado, a estação de rádio foi ocupada por soldados portugueses, com alguma troca de tiros, e toda a população de um modo geral ficou ainda mais receosa que no meio de tamanha exaltação pudessem acontecer outros confrontos, armados, perigosos.
A tensão era grande, ia crescendo, e os europeus, mesmo nascidos em Moçambique acabaram por se convencer que tinham que sair de qualquer modo.
Entre as tropas que desde o inicio da guerra colonial, em 1961, foram mandadas para as colônias, podiam-se destacar os comandos. Homens super treinados e ensinados para lutar nas condições mais adversas, para matar nem que fosse mordendo no pescoço do inimigo como fazem as onças e leões. Sobreviver a qualquer custo, vencendo.
O inimigo que lhes foi incutido no espirito em doses maciças, durante o treinamento quase do tipo lavagem cerebral, não era a população africana, que deviam proteger, até porque, apesar de raros, havia homens de cor nessa tropa de elite. Inimigos eram os soldados contra quem se lutava, em Moçambique, sobretudo da Frelimo. Se nos abstivermos de que guerra é sempre um ato criminoso, seja porque motivo for, a partir do momento que ela começa e os homens não se entendem, os comandos são peça fundamental.
Assim que se anunciou o fim da guerra, esses comandos dispersos pelas zonas mais recônditas do país foram mandados regressar às cidades, aquartelados, sem missão outra que não fosse aguardar o seu embarque de regresso a Portugal. Os meios de transporte eram diminutos, e eram largas dezenas de milhares de homens só nas forças armadas a retirar de todas as colônias. Só em Angola mais de cinquenta mil! Fora os civis que também queriam ou tinham que ser retirados. De avião levaria anos, e navios já Portugal tinha poucos!
Alguns aguardavam, numa espécie de férias forçadas e incomodas, em Lourenço Marques, cidade tranquila apesar da tensão que todos carregavam dentro de si. Férias aliás merecidas, como para todos os que deram o seu melhor de si, em qualquer dos lados.
Do mesmo modo foram levadas para a capital algumas companhias de soldados da Frelimo, a quem o país estava a ser entregue.
Aquartelados, não no mesmo edifício, mas em áreas contíguas. Aqui começa um grande erro. Não foi muito fácil para os comandos aceitar aqueles vizinhos com quem uns dias antes estavam em luta de morte, mas não criaram problemas. Procuraram ignorar-se.
Logo a seguir à revolução a estupidez subiu à cabeça de muitos. Era conveniente ser de esquerda, quanto mais à esquerda melhor, já que o comando da revolução estava dominado por lacaios de Moscovo. E uma das maneiras de exibir esse esquerdismo era menosprezar tudo quanto simbolizasse a direita, na qual, resta saber porquê, se incluíam os comandos, de quem o MFA - Movimento das Forças Armadas - em Portugal, que era senhor e dono da situação, temia alguma atitude contra-revolucionária. Por isso ia-se adiando quanto possivel o seu regresso à metrópole.
Dias depois, como os dois aquartelamentos não tinham talheres suficientes para que todos comessem, tiraram os garfos e facas dos comandos para os entregar aos soldados da Frelimo! A maioria destes nem hábito tinha de comer assim! E aqueles, em condições normais, não comiam de outro jeito! Aí a tensão estoirou.
Não que os soldados da Frelimo tivessem alguma culpa nisso. A burrice foi do oficial português responsável, aliás, irresponsável, que numa atitude subserviente e completamente estúpida dera essas ordens.
Esta elite militar tinha, para esse oficial, virado uma espécie de lixo, e talvez por isso mesmo na sua opinião devessem passar a comer com as mãos, para saberem quem mandava agora!


Bem em destaque a Praça 7 de Março. À esquerda ficava o BCCI
 
A seguir ao almoço, saem do aquartelamento quatro jeeps carregados de comandos armados, bravos, furiosos, em manifestação de protesto contra a estupidez de tal ordem que parecia ter sido dada para os desafiar. Nada contra a Frelimo. Enquanto circulavam pelas ruas da cidade foram dando rajadas de metralhadora para o ar! Atitude impensada, infantil.
Um dos tiros, por incrível que pareça, em vez de ser dado para cima foi para o lado, atravessou toda uma galeria comercial, comprida, que ia de uma rua a outra, àquela hora com bastante gente, indo atingir uma senhora que passava no outro lado. Morreu na hora. Se a população andava assustada isto deixou-a aterrada.
Os pretos abandonaram o trabalho e correram a procurar refúgio em suas casas, a maioria nos bairros periféricos, gritando:
- Os brancos querem matar os pretos. Os brancos querem matar os pretos! Fujam. Fujam.
Gerou-se o pânico total. Nas ruas de acesso aos bairros suburbanos fizeram-se barricadas, não deixando branco nenhum cruzá-las, mesmo os que tivessem que por ali passar para chegar a suas casas. A cidade ficou fechada. Branco que chegou perto dessas barricadas, onde os ânimos estavam exaltados pelo terror e pela tradicional violência que é característica das massas populares enfurecidas, foi impiedosamente morto. Muitos. Muita gente.
Uma das funções do Alto Comissário era exatamente a manutenção da ordem, não a segurança ou defesa da população, mas a ordem na transferência para a Frelimo da governança do país. Para isso era o comandante chefe das forças armadas portuguesas e simultâneamente das forças unificadas, portuguesa e Frelimo.
Mas a sorte das colónias estava traçada. A missão portuguesa junto aos Governos de Transição era assegurar que esta se processasse sem perturbações, fundamentalmente da parte dos brancos¸ uma vez que tinha sido decidido entregar os novos territórios diretamente, e sem mais delongas, em negociata rápida e suja, aos partidos comunistas.
Elemento do tal conselho da revolução portuguesa, oficial da marinha, logo graduado ou promovido a almirante - nem sei quantos degraus terá subido de um só pulo - foi nesse dia jantar a casa de um amigo de longa data.
Ao jantar, a dona da casa e o marido, administrador do banco onde eu trabalhava, o almirante e sua mulher, uma espécie de chefe de gabinete deste, e eu.
Desde a tarde, quando se assistiu ao tumulto provocado pelos comandos, sabia-se que algo de grave e muito anormal estava acontecendo. As informações chegavam imprecisas, confusas, porque essas barricadas foram improvisadas já perto do fim do dia.
O telefone não parava. De dentro para fora e de fora para dentro. Pedidos de informações da situação geral na cidade, confirmação ou desmentido de rumores. Logo era o gerente de uma das agências bancárias da periferia informando que havia grande tumulto em frente da agência. O que fazer? Nada. Apagasse as luzes, e não saísse sem que tudo voltasse ao normal.
Pouco depois chamam o almirante ao telefone. A informá-lo sobre as barricadas e o que lá estava acontecendo. Tumultos graves, muita confusão e várias mortes confirmadas.
Este, politicamente procura o colega da Frelimo. Não o encontra nos primeiros telefonemas, nem toma atitude. Não pode. O governo era já da Frelimo e a sua autonomia restringia-se quase exclusivamente ao controle dos que afinal eram portugueses. Fala com diversos militares, mas resolver o problema, nada.
Chegam mais notícias de outras agências do banco, com a mesma tónica da primeira, e muitissimo preocupantes. Em quatro agências estava pessoal retido, apavorado. O mesmo conselho. Aguentassem quietos, se possível escondidos, telefone à mão, e não saíssem sem ter a certeza que a situação normalizara.
De novo o almirante ao telefone,
- Não posso resolver sozinho. Tenho que consultar a Frelimo.
- Mas está morrendo gente. Mande sair o exército para tomar conta da situação.
Fala finalmente com o chefe do governo provisório, da Frelimo, que se opõe à saída do exército português. Os soldados de Portugal só estavam ali aguardando embarque para abandonarem o país e sem qualquer outra função. Além disso não era político para a população negra ver, naquela altura, sair o exército português! Mesmo em missão de paz.
- E os soldados da Frelimo?
Alem de outras escusas evasivas, poderiam causar o mesmo pânico nas populações brancas. A situação vai acalmar.
Não acalmou. Pelo contrário, até altas horas da madrugada a violência foi incrível. Sangue chama sangue.
O almirante continuou manietado e preocupado. Não mandou nada. Manteve fechado nos quartéis o exército que ainda ali estava para quê, se não podia sequer policiar? Para manter a segurança das populações? De quais?
Saldo final, muitos mortos.
O tumulto acabou por morrer sem intervenção de quaisquer forças da ordem. Que ordem?
Essa noite que tinha a intenção de ser de conversa amena, ao jantar, transformou-se num suplício. O alto comissário não tomava atitudes, sentia a sua idiota impotência, e nós não tínhamos a menor hipótese de ajudar alguém.
Perto da meia noite voltou-se a falar com as agências do banco, o pessoal estava todo bem, já não se ouvia tanto tumulto, mas não era aconselhável sair de noite. Quem estivesse dentro do banco que aí passasse a noite. Era mais seguro.
Na manhã seguinte a preocupação estava estampada na cara de todos.
O pessoal das agências estava bem, mas havia que ir pessoalmente incutir-lhes alguma confiança. Lá foi o administrador visitá-las. As ruas onde tinham montado as barricadas apresentavam um espetáculo de desolação: carros ainda a arder, montes de ferros retorcidos, paus, pedras, tudo o que se pode usar para esse fim, cheiro a borracha queimada. Alguns corpos cobertos por panos ou papeis. Um horror.
Xipamanine, em cujo largo ficava uma das agências, sempre em grande animação com o seu mercado de peixe, frutas, hortaliças, panos, etc. naquela manhã estava quase deserto. As lojas de comércio dos indianos, dos monhés, continuavam com as portas fechadas. Apesar de ter acabado o tumulto, o medo entre todos aumentara.
A chegada do patrão, o administrador, às agências, nesse dia, foi um sucesso. A cara dos funcionários, entre os quais algumas mulheres, cansados, atemorizados, mas a trabalhar, quando viram o numero um do banco ir cumprimentá-los, mudou como a água para o vinho. Alguns choraram de emoção. O patrão também teve dificuldade em esconder a sua lágrima.
O que se tinha passado nessa noite foi uma amostra do que poderia vir a acontecer após a independência.
Se alguns portugueses tinham mantido ilusões de ficar em África, nessa noite perderam-nas.
África! Adeus.
 
Do livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” de Francisco G. de Amorim, 1988

















































2 comentários:

  1. Caro Senhor:
    O texto que aqui está e publicado num site sobre Moçambique, não tem referências de datas. Percebo que saiu, como muitos, de Angola para o Brasil, com a dita descolonização, e este texto depreendo que tenha a ver com o sucedido, em LM, em Outubro de 1974. Sou oficial do QP (cor.) com 4 comissões por escala (1 em Ang e 3 em Moçambique) e tenho escrito e publicado vários livros sobre a guerra e descolonização, e sobre o antes, durante e pós-25 Abril. Se quiser contactar-me o mail é: manuel.a.bernardo@sapo.pt
    Ao dispor
    Manuel Bernardo

    ResponderExcluir
  2. Caro senhor:
    Como moçambicano saído daquela ex-colónia em 1973, este é um assunto que muito me sensibiliza. Mas tb a sua experiência vivida em angola.
    Como poderei conseguir um exemplar do livro?
    Cumprimentos,
    Casimiro Serra

    casimiro.serra@hotmail.com

    ResponderExcluir