sábado, 6 de junho de 2009

Modelo do Renault, com a diferença do meu ser um furgão,
sem vidros laterais atrás.

Pelas estradas de Angola
1954

(Do livro "Contos Peregrinos a Preto e Branco" - 1998)
Nas andanças por aquelas picadas, percorrendo distancias que algumas vezes pareciam não ter fim, mesmo com ajudante ao lado, o sono encontrava ensejo para brigar com o motorista, e em muitas dessas ocasiões, sem grande dificuldade o vencia.
Saída de Benguela, uma sexta feira ao sol posto, direção sul, estrada para Sá da Bandeira, hoje Lubango, sempre com o afável ajudante Bartolomeu, para ajudar a “quebrar o galho” em caso de avaria naquelas estradas imensas e despovoadas, e um passageiro a mais, empregado da empresa onde eu trabalhava, que sabendo que íamos passar ao lado da sanzala onde vivia a sua família, veio pedir que o levasse. Não teve qualquer dificuldade em ouvir o sim. Era uma rara oportunidade de visitar os seus durante o fim de semana, sem gastar um cêntimo.
Já depois de termos percorrido quase duzentos quilômetros, no local indicado, deixou-se este homem, bem novo ainda, que se deveria recolher de volta no domingo pela hora do almoço. E seguimos em frente. O destino ainda estava longe. Não muito, mas a estrada ia piorando, e era já noite. Mais um grupo de pessoas a pé pela estrada, duas mulheres, uma com o filho às costas, e um homem.
- Para onde vão?
- Vai no Caluquembe.
- Entrem.
- Háca! Bom mesmo. ´brigato.
A viagem segue, o sono a insistir comigo que não gostava muito de me dar por vencido, e sobretudo porque queria chegar ao destino e ali então dormir tranquilo. Depois de algumas perigosas cabeçadas, acabei por fechar os olhos uns lapsos de segundo, suficientes para perder o controle do carro e sair fora da estrada.
Passámos com muita sorte entre duas arvores, o carro salta com força ao atravessar a vala que ladeava a estrada e pára.
- Alguém se magoou?
- Não siô.
- Então vamos dormir um pouco, aqui mesmo, até eu poder conduzir de novo.
Todos se ajeitaram, o que não foi difícil, sobretudo para quem vive vida dura do interior, e assim ficámos uma ou duas horas.
Depois deste cuchilo, quando me senti em forma para prosseguir, pus o carro a trabalhar, mas sair de onde tinha parado, o que era bom, nada. Estava com uma roda no ar e parte do chassis assente no chão!
Toca a sair do carro e a carregar com ele. Carrinho pesado aquele Renault! Para o deslocar pouco mais do que um metro, deu uma boa canseira, pior ainda por ser noite. Mas o esforço de todos, inclusive das mulheres, acabou resolvendo o problema, e lá fomos adiante.
Mais uma vez os boleias foram de primordial ajuda, sem que isso tivesse custado alguma coisa a qualquer das partes.
Missão cumprida no destino, resolver um problema mecânico de um trator, domingo pela manhã de regresso a casa. Com passagem no mesmo lugar onde dois dias antes havia deixado o rapaz que tinha ido visitar a família.
Na estrada, à sombra de uma frondosa mulemba lá estava ele, com a mãe, o pai e mais alguns familiares. Fizeram uma grande festa quando parei o carro, agradecendo muito ter-lhes levado o filho, e queriam à viva força que fosse com eles comer uma galinha que tinham já preparado, para mostrar o seu agradecimento!
Ir, era atrasar o regresso a casa, e não ir era uma desconsideração àquela gente simples. Devo dizer em abono da verdade que, sem fazer com isso nenhum sacrifício, fui forçado a aceitar o convite com a intenção premeditada de tentar fingir que comia alguma coisa para não perder muito tempo.
O fogo nas sanzalas está sempre pronto, e a galinha também estava pronta para se chegar ao lume. Para beber, uma espécie de cerveja de massambala, uma variedade de sorgo que é a base da alimentação daquela região.
Esta bebida, que se pode chamar Uala, Quilombo ou Macau, conforme a região, com vinte e quatro horas de fermentação é muito leve, fresquissima, e de graduação alcoólica que não deve passar de 1º. No segundo dia, mais fermentada, o álcool aumenta, e a partir do quarto dia já não se pode mais beber. Sobretudo no primeiro dia é muito agradável, e pode beber-se à vontade; o perigo de embriagar é diminuto.
África, a meio do dia, numa região a mil e tantos metros de altitude, agradavelmente quente e seca, onde as sombras são sempre frescas, uma sanzala com meia dúzia de cubatas, tudo muito limpo, um fogo no centro com duas galinhas a assar, e uma bebida pura e fresquissima, não há restaurante cinco estrelas que se lhe possa comparar. Quem resiste? Não há no mundo melhor galinha de churrasco do que a que se comia no mato, em Angola! Não há mesmo. Galinha que se alimenta pelo campo, no Brasil se chama caipira, e que em África é totalmente caipira porque ninguém lhe dá complemento, é o Maximo.
Assada com carinho e paciência naquele fogo de lenha que há milénios os africanos fazem possivelmente melhor do que alguém mais, e muito bem temperada com jindungo, a malagueta que deixa as beiças a arder, cujo fogo se apaga com uala, cerveja ou vinho... Meu Deus, que coisa boa!
A intenção era fingir que comia um pouco e dar logo o fora, porque o que faltava percorrer era longa caminhada, em estrada de terra, e ainda queria estar um bocado em casa, domingo, a descansar, e acompanhar a minha mulher à espera do primeiro filho. Mas depois de sentado numa quibaca, gozando aquele ambiente, a paz, o clima, a simpatia e a felicidade daquela gente ao poderem retribuir a quem lhes proporcionou a visita do filho, tudo isso valia muito mais do que correr para casa! Sem esquecer a galinha e a uala, claro. São momentos que não se esquecem, e não se podem perder. Claro que me fui deixando ficar e acabei por chegar a casa já noite bem entrada, mas regalado. Feliz.
Quanto eu daria para voltar lá de novo!Estas boleias não se apagam da memória
(do Brasil, por Francisco G. de Amorim)
06. jun. 09

Um comentário:

  1. Olha vovô, há de me dizer onde fica essa Senzala, que só pela descrição já me convenceu de ir lá fazer uma visita! Adorei o texto!

    Beijos!

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