Ainda em 1954
Pelas estradas de Angola
.
Outro modelo daqueles famigerados Renault!
Foto (colorida!) da época, com o viandante... novo!
Em África, dar boleia a africanos era atitude um quanto inusitada, mas não impossível de acontecer. Eles também não pediam. Nem conheciam o significado do polegar para tais situações. Não eram turistas, apesar de alguns se deslocarem com regularidade para centenas de quilômetros de distancia. Como deslocações longas já vinham fazendo desde que o mundo é mundo, boleia era coisa de branco!
Para quem trabalhava por Angola fora, rodar por aquelas estradas, não asfaltadas, as chamadas picadas, com pouquissimo trânsito, chegava a ser monótono, apesar de todo o motorista viajar sempre com um ajudante. Indispensável. Não se podia ficar sozinho naquelas imensidões africanas, onde tudo é longe de tudo, e em caso de acidente ou avaria o socorro eventual poderia demorar dias a aparecer.
Quantas vezes foi preciso quebrar um tronco de arvore para levantar melhor o carro e meter o macaco por baixo, empurrá-lo para ajudar a sair de um atoleiro, ir chamar socorro por ali, sabe Deus às vezes a que distância, etc. O ajudante era peça fundamental.
Antes de alguém se meter ao caminho era bom indagar como estava a estrada para tal lugar, e a resposta era simples: ou passa-se bem ou está péssima! Naquele tempo só havia dois tipos de estradas: passa ou não passa. Muitas vezes depois das chuvas, chuvadas tropicais, não se passava mesmo. Havia que esperar que as águas se escoassem e que o chão secasse, para não se atolar na lama, o que tantas vezes acontecia, ou quando tinha caído uma ponte de madeira, interrompendo a passagem por vários dias até se solucionar o problema com nova ponte ou com outro itinerário. Era uma aventura andar por aqueles caminhos.
Benguela, é uma pequena cidade no sul de Angola, na costa, com praias lindas, grande centro de comércio, onde naquele tempo não viviam nem brancos, nem pretos, nem mulatos. Só gente. A única cidade de África de onde isto se podia dizer com propriedade, não obstante casos de estúpida atitude de alguns, felizmente raros, e naquela ocasião já coisa a ficar para o passado.
Esta imagem de Benguela foi um dia lembrada no meio de um grupo de pessoas que conversavam sobre África, durante uma pequena festa na Alemanha. Presente um membro feminino da embaixada de Angola, já independente há bastantes anos. O espanto e a felicidade que se estampou no rosto dessa senhora foi sensacional. Ela era de Benguela, e entusiasmada confirmou:
- Isso eu venho afirmando há anos, e nunca me acreditaram. Foi preciso vir alguém do Brasil para o confirmar!
Cidade onde o tempo teimava em passar, ciosa das suas tradições, o bairro de Benfica com seus quintalões e famílias tradicionais, cidade dengosa, trabalhadeira, com o generoso mar em frente e as hortas do Cavaco ao lado, de onde lhe vinham a toda a hora os mais frescos legumes e bananas. Ah! Benguela!
A minha vida profissional em Angola começou aqui, e com máquinas agrícolas. Isso me proporcionou a possibilidade de percorrer no primeiro ano toda a região centro e sul de Angola, com bastante minúcia, não só as povoações como o mato. E foi o meu primeiro, e íntimo, contato com o interior, com o povo. Mais tarde o trabalho nas cervejas e sobretudo a caça complementariam este contato. Uma das mais curiosas lições daquela gente me foi dada logo de início.
Era necessário carregar num caminhão um arado de discos, grande, pesando mais de uma tonelada. Os discos, afiados, cortantes, eram perigosos, e como tinha que ser carregado à mão, todo o cuidado era pouco.
Chamaram-se todos os homens que por ali estavam disponíveis. Dezessete! Era um enxame à volta do arado, mas dividido o peso da máquina pelos homens dava ainda uns sessenta quilos por cabeça. Era mesmo pesado!
- Atenção! Todos ao mesmo tempo. Vamos lá: um... dois... três. Já.
Ouviram-se uns quantos gemidos, como se muitos deles se estivessem esforçando, mas o tal arado não se mexeu um milímetro! Estranho!?
Repete-se a cena. Nada. Mais uma vez. O mesmo.
Parei para pensar o que se estaria passando. Diz o motorista do caminhão:
- Estão mangonhando!
- Estão o quê?
- Finge só, patrão. Nem faz força!
- Ai é?
Tirei dez homens com o pretexto que muitos não deixavam espaço suficientemente para se moverem. E repetiu-se o atenção. Vamos lá...
Desta vez foi, num instante!
Mas para a história de outra boleia, vamos sair dessa Benguela cheia de luz e inocência um quanto manhosa, num dia da semana. Principio da noite. Escura. Chovia, e chovia bem. No carro, um furgão, Renault, de suspensão dura como molas de azinho o que significa que ao passar sobre um palito o carro saltava como corça, ia um agricultor para casa de quem seguíamos para dar assistência a um equipamento agrícola, e mais o indispensável ajudante. Passado Catengue, a caminho de Chongoroi encontrámos quatro homens seguindo a pé, em fila, pela estrada, envoltos nos seus cambriquites encharcados, um só velho guarda chuva meio rasgado para todos! Parei o carro.
- Vamos levar estes homens.
- O senhor vai dar boleia, sem saber quem são???
- Vou. Claro. Porquê?
- Eu nunca dou boleia. Sabe-se lá o que pode acontecer.
- Tem razão. Nunca se sabe o que pode acontecer. Mas assim mesmo vou levá-los.
Entraram os quatro. Mostrando, no escuro da noite só os dentes sempre de grande alvura, sorrindo a agradecer, porque ainda tinham pela frente muitos quilômetros a percorrer, o que seria feito mesmo a pé, tranquilos, se não tivesse aparecido alguém que os levasse.
- ´brigato, patrão.
Apesar do piso arenoso daquela picada, o carro agora com o peso de sete homens seguia mais confortável, saltava menos, mas prosseguia com dificuldade devido à quantidade de chuva que caía, que entre outras coisas dificultava a visão.
Talvez uma hora depois avistámos no meio da picada duas luzes vermelhas que pareciam de outro carro, e só muito perto pudemos reconhecer que era mesmo um carro, parado. Um belo carro americano, de um advogado de Benguela, muito dado a escapadas amorosas, que seguia para Sá da Bandeira com duas amigas, engates de fim semana, bonitonas, como seria de esperar. Ménage a trois? Quem sabe! Não era meu problema!
Parámos e logo se constatou o que tinha acontecido. Ao tentarem atravessar uma pequena linha de água, seca quase todo o ano, que naquele dia as chuvas tinham enchido e transformado num rio, pouco fundo, mas caudaloso, o carro morreu afogado! Ali estavam ele e elas, apavorados, abrigados dentro do carro, a água subindo de nível já quase a meio das portas, sem possibilidade de saírem tão cedo dessa situação. Teriam que esperar que as águas baixassem, se não subissem mais ainda, e que a parte elétrica secasse para o motor voltar a trabalhar. Isto pressuponha ficarem ali até lá para o meio dia do dia seguinte, se a chuva parasse! E não só não estava com cara de parar, como o nível da água insistia em subir.
Assim que avistaram os faróis de um carro a aproximar-se, o galã, jovem, gordo, e rico, com alguma dificuldade saiu pela janela, porque se abrisse a porta o carro ficaria alagado, e parecendo emergir de uma piscina veio pedir ajuda. Precisava de um trator que lhe rebocasse o carro dali para fora.
Não foi preciso dizer coisa alguma ou pedir ajuda aos homens que iam de boleia comigo. Saíram logo, e com mais o ajudante, o agricultor e o galã entrámos todos na água. Uma das bonitonas ao volante, ao fim de algum tempo e algum esforço, o carro estava em lugar seguro. Abriu-se o capô, secou-se a fiação e o distribuidor, e com alguma insistência o motor voltou a funcionar, e o trio farrista ficou pronto a seguir as suas aventuras amorosas... ou escabrosas!
Não sem antes agradecerem muito, e sobretudo terem dado ao ajudante e aos quatro homens algum dinheiro pela ajuda, porque sem eles não teria sido possível sair daquela enrascada! Aos homens, humildes, esse dinheirinho extra soube muito bem. Melhor foi para quem conseguiu sair de uma complicada situação, que poderia ter-se agravado mais ainda. A continuarem as chuvas nada impedia que o carro acabasse por ser arrastado e impossibilitado depois de ser retirado sem a ajuda de um trator, difícil de encontrar naquelas redondezas, ou até mesmo destruído, o que tantas vezes aconteceu.
De volta ao carro disse ao agricultor
- Viu? Realmente nunca se sabe o que pode acontecer. Imagine que não tínhamos trazido estes homens. Acha que sem eles a nossa ajuda teria valido de alguma coisa?
- Só nós os três não tínhamos tirado o carro dali.
- Repare que eu não dei boleia à espera de me aproveitar dos serviços deles. Trouxe-os porque isso não me custa nada. Eles ficaram muito gratos, o pouco mais de chuva que apanharam para tirar o carro do rio foi-lhes indiferente, ainda levam no bolso uns angolares extra bem merecidos, e eu vou todo satisfeito porque, sem premeditações, ajudei a resolver uma porção de problemas.
- É verdade. Nunca tinha pensado nisso. Valeu a pena. Aprendi a lição.
Espera-se que sim, que tenha aprendido.
(... e que, se ainda viver, não tenha esquecido!)
Para quem trabalhava por Angola fora, rodar por aquelas estradas, não asfaltadas, as chamadas picadas, com pouquissimo trânsito, chegava a ser monótono, apesar de todo o motorista viajar sempre com um ajudante. Indispensável. Não se podia ficar sozinho naquelas imensidões africanas, onde tudo é longe de tudo, e em caso de acidente ou avaria o socorro eventual poderia demorar dias a aparecer.
Quantas vezes foi preciso quebrar um tronco de arvore para levantar melhor o carro e meter o macaco por baixo, empurrá-lo para ajudar a sair de um atoleiro, ir chamar socorro por ali, sabe Deus às vezes a que distância, etc. O ajudante era peça fundamental.
Antes de alguém se meter ao caminho era bom indagar como estava a estrada para tal lugar, e a resposta era simples: ou passa-se bem ou está péssima! Naquele tempo só havia dois tipos de estradas: passa ou não passa. Muitas vezes depois das chuvas, chuvadas tropicais, não se passava mesmo. Havia que esperar que as águas se escoassem e que o chão secasse, para não se atolar na lama, o que tantas vezes acontecia, ou quando tinha caído uma ponte de madeira, interrompendo a passagem por vários dias até se solucionar o problema com nova ponte ou com outro itinerário. Era uma aventura andar por aqueles caminhos.
Benguela, é uma pequena cidade no sul de Angola, na costa, com praias lindas, grande centro de comércio, onde naquele tempo não viviam nem brancos, nem pretos, nem mulatos. Só gente. A única cidade de África de onde isto se podia dizer com propriedade, não obstante casos de estúpida atitude de alguns, felizmente raros, e naquela ocasião já coisa a ficar para o passado.
Esta imagem de Benguela foi um dia lembrada no meio de um grupo de pessoas que conversavam sobre África, durante uma pequena festa na Alemanha. Presente um membro feminino da embaixada de Angola, já independente há bastantes anos. O espanto e a felicidade que se estampou no rosto dessa senhora foi sensacional. Ela era de Benguela, e entusiasmada confirmou:
- Isso eu venho afirmando há anos, e nunca me acreditaram. Foi preciso vir alguém do Brasil para o confirmar!
Cidade onde o tempo teimava em passar, ciosa das suas tradições, o bairro de Benfica com seus quintalões e famílias tradicionais, cidade dengosa, trabalhadeira, com o generoso mar em frente e as hortas do Cavaco ao lado, de onde lhe vinham a toda a hora os mais frescos legumes e bananas. Ah! Benguela!
A minha vida profissional em Angola começou aqui, e com máquinas agrícolas. Isso me proporcionou a possibilidade de percorrer no primeiro ano toda a região centro e sul de Angola, com bastante minúcia, não só as povoações como o mato. E foi o meu primeiro, e íntimo, contato com o interior, com o povo. Mais tarde o trabalho nas cervejas e sobretudo a caça complementariam este contato. Uma das mais curiosas lições daquela gente me foi dada logo de início.
Era necessário carregar num caminhão um arado de discos, grande, pesando mais de uma tonelada. Os discos, afiados, cortantes, eram perigosos, e como tinha que ser carregado à mão, todo o cuidado era pouco.
Chamaram-se todos os homens que por ali estavam disponíveis. Dezessete! Era um enxame à volta do arado, mas dividido o peso da máquina pelos homens dava ainda uns sessenta quilos por cabeça. Era mesmo pesado!
- Atenção! Todos ao mesmo tempo. Vamos lá: um... dois... três. Já.
Ouviram-se uns quantos gemidos, como se muitos deles se estivessem esforçando, mas o tal arado não se mexeu um milímetro! Estranho!?
Repete-se a cena. Nada. Mais uma vez. O mesmo.
Parei para pensar o que se estaria passando. Diz o motorista do caminhão:
- Estão mangonhando!
- Estão o quê?
- Finge só, patrão. Nem faz força!
- Ai é?
Tirei dez homens com o pretexto que muitos não deixavam espaço suficientemente para se moverem. E repetiu-se o atenção. Vamos lá...
Desta vez foi, num instante!
Mas para a história de outra boleia, vamos sair dessa Benguela cheia de luz e inocência um quanto manhosa, num dia da semana. Principio da noite. Escura. Chovia, e chovia bem. No carro, um furgão, Renault, de suspensão dura como molas de azinho o que significa que ao passar sobre um palito o carro saltava como corça, ia um agricultor para casa de quem seguíamos para dar assistência a um equipamento agrícola, e mais o indispensável ajudante. Passado Catengue, a caminho de Chongoroi encontrámos quatro homens seguindo a pé, em fila, pela estrada, envoltos nos seus cambriquites encharcados, um só velho guarda chuva meio rasgado para todos! Parei o carro.
- Vamos levar estes homens.
- O senhor vai dar boleia, sem saber quem são???
- Vou. Claro. Porquê?
- Eu nunca dou boleia. Sabe-se lá o que pode acontecer.
- Tem razão. Nunca se sabe o que pode acontecer. Mas assim mesmo vou levá-los.
Entraram os quatro. Mostrando, no escuro da noite só os dentes sempre de grande alvura, sorrindo a agradecer, porque ainda tinham pela frente muitos quilômetros a percorrer, o que seria feito mesmo a pé, tranquilos, se não tivesse aparecido alguém que os levasse.
- ´brigato, patrão.
Apesar do piso arenoso daquela picada, o carro agora com o peso de sete homens seguia mais confortável, saltava menos, mas prosseguia com dificuldade devido à quantidade de chuva que caía, que entre outras coisas dificultava a visão.
Talvez uma hora depois avistámos no meio da picada duas luzes vermelhas que pareciam de outro carro, e só muito perto pudemos reconhecer que era mesmo um carro, parado. Um belo carro americano, de um advogado de Benguela, muito dado a escapadas amorosas, que seguia para Sá da Bandeira com duas amigas, engates de fim semana, bonitonas, como seria de esperar. Ménage a trois? Quem sabe! Não era meu problema!
Parámos e logo se constatou o que tinha acontecido. Ao tentarem atravessar uma pequena linha de água, seca quase todo o ano, que naquele dia as chuvas tinham enchido e transformado num rio, pouco fundo, mas caudaloso, o carro morreu afogado! Ali estavam ele e elas, apavorados, abrigados dentro do carro, a água subindo de nível já quase a meio das portas, sem possibilidade de saírem tão cedo dessa situação. Teriam que esperar que as águas baixassem, se não subissem mais ainda, e que a parte elétrica secasse para o motor voltar a trabalhar. Isto pressuponha ficarem ali até lá para o meio dia do dia seguinte, se a chuva parasse! E não só não estava com cara de parar, como o nível da água insistia em subir.
Assim que avistaram os faróis de um carro a aproximar-se, o galã, jovem, gordo, e rico, com alguma dificuldade saiu pela janela, porque se abrisse a porta o carro ficaria alagado, e parecendo emergir de uma piscina veio pedir ajuda. Precisava de um trator que lhe rebocasse o carro dali para fora.
Não foi preciso dizer coisa alguma ou pedir ajuda aos homens que iam de boleia comigo. Saíram logo, e com mais o ajudante, o agricultor e o galã entrámos todos na água. Uma das bonitonas ao volante, ao fim de algum tempo e algum esforço, o carro estava em lugar seguro. Abriu-se o capô, secou-se a fiação e o distribuidor, e com alguma insistência o motor voltou a funcionar, e o trio farrista ficou pronto a seguir as suas aventuras amorosas... ou escabrosas!
Não sem antes agradecerem muito, e sobretudo terem dado ao ajudante e aos quatro homens algum dinheiro pela ajuda, porque sem eles não teria sido possível sair daquela enrascada! Aos homens, humildes, esse dinheirinho extra soube muito bem. Melhor foi para quem conseguiu sair de uma complicada situação, que poderia ter-se agravado mais ainda. A continuarem as chuvas nada impedia que o carro acabasse por ser arrastado e impossibilitado depois de ser retirado sem a ajuda de um trator, difícil de encontrar naquelas redondezas, ou até mesmo destruído, o que tantas vezes aconteceu.
De volta ao carro disse ao agricultor
- Viu? Realmente nunca se sabe o que pode acontecer. Imagine que não tínhamos trazido estes homens. Acha que sem eles a nossa ajuda teria valido de alguma coisa?
- Só nós os três não tínhamos tirado o carro dali.
- Repare que eu não dei boleia à espera de me aproveitar dos serviços deles. Trouxe-os porque isso não me custa nada. Eles ficaram muito gratos, o pouco mais de chuva que apanharam para tirar o carro do rio foi-lhes indiferente, ainda levam no bolso uns angolares extra bem merecidos, e eu vou todo satisfeito porque, sem premeditações, ajudei a resolver uma porção de problemas.
- É verdade. Nunca tinha pensado nisso. Valeu a pena. Aprendi a lição.
Espera-se que sim, que tenha aprendido.
(... e que, se ainda viver, não tenha esquecido!)
do livro "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1988, de Francisco G. de Amorim
09 jun. 09
09 jun. 09
Olá TioAdorei esta história tão simples mas tão cheia de ensinamentos,de facto o egoismo vira-se contra nós próprios e o DAR pode ser um dia tão recompensador,Um AbraçoTeca
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