sexta-feira, 19 de junho de 2009


1962.
De Maquela do Zombo para Damba.
Norte de Angola.
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Seria mais ou menos assim a senzala

Bem perto da fronteira norte com o Zaire. Por ali a guerrilha não dava muita trégua, o que tornava deveras perigoso circular por aquela região. No entanto, volta e meia as coisas se apresentavam mais calmas ou mais controladas e sempre aparecia quem se aventurasse a fazê-lo. Não havia outro meio de visitar todas as povoações, porque poucas justificavam ter pista para aviões, por pequena que fosse. Alem disso o eventual ataque de guerrilheiros a carros particulares era raro, menos ainda numa estrada de bom piso. De qualquer modo raros eram os caros que ali passavam.
A estrada estava boa, piso firme e liso, e o carro, desta vez um Fusca, seguia em boa velocidade. Comigo só o ajudante que falava, alem de português, nada mais do que a língua da sua região, o umbundo. Como se dizia na época, bailundo!
De repente ao passar ao lado de uma sanzala, um porco de tamanho já razoável, pesando quatro ou cinco arrobas, andar tranqüilo e despreocupado, já que o problema colonial não era com ele, lembra-se de cruzar a estrada. Sem hipótese de desviar ou travar completamente, o Fusca apanhou-o e jogou-o longe. Longe... uns 4 ou metros.
Que chatice! Logo em plena região efervescente. Pára-se o carro e analisam-se os estragos mútuos. Um porco morto e um pára-lamas torcido, encostado no pneu. Felizmente só isso.
Acorre gente, primeiro a criançada, os candengue, e os homens, enquanto as mulheres largam o pilão, a mandioca, as quindas e os mussalos para virem juntar-se ao grupo de espectadores.
Num instante está um monte de gente à nossa volta, mais ou menos todos falando ao mesmo tempo, ou para si mesmos, uns com os outros ou somente imitindo expressões de pasmo.
- Háca! Aiué!
A língua daquele povo é o quicongo, mesma remota raiz do quimbundo e do umbundo, mas já assaz diferente, para não permitir um entendimento fácil com as gentes do centro e sul. E a gente daquela sanzala pouco ou nada falava de português.
Para encetar o diálogo avança um homem, uma espécie de intérprete porta voz do pensamento e vontade da comunidade! Começa a discussão, calma e difícil por causa da língua, mas não impossível, sobre o porco, que estava morto. Todos na esperança, quase certeza, que o motorista lhes ia pagar o animal, procuravam valorizá-lo. Para que não houvesse divergência de atitudes e valores a passar ao branco, antes de se pronunciarem conferenciavam primeiro entre si e o porta voz transmitia a opinião aprovada. Depois era preciso traduzir a mensagem, e a seguir discuti-la. Regatear o valor. O primeiro valor é sempre alto! Voltava o grupo a confabular entre si, com uns quantos mais calmos e condescendentes e outros linha dura, deixando transparecer que nem todos estavam de perfeito acordo, cabendo sempre ao mesmo porta voz transmitir a opinião, se não unânime, pelo menos da maioria, e acordada. Tudo isto sem pressa, pacífica e tranquilamente. Para eles o tempo passa devagar, e sabem bem que as cadelas apressadas parem os filhos cegos. Encostado ao carro eu gozava aquela negociação, feita com a colaboração do ajudante, bailundo forte, o Agostinho, que não entendia bem, creio que nem mal, as mensagens emitidas pelos co-proprietários do porco. Entretanto eu deixara de ter pressa em sair dali porque aquele dialogo era sensacional, e muito me divertia.
Ao fim de um bom tempo tinha-se conseguido estabelecer a primeira plataforma de entendimento. O valor do porco. Cem escudos. Mas era conveniente que se repetisse para que não restassem duvidas:
- O porco vale então cem escudos?
Todos abanaram positivamente a cabeça, porque cem escudos era linguagem geral!
- Sim.
A cara deles mostrava-se satisfeita com o acordo. Estava encerrado o primeiro capítulo. Depois desta etapa decidi que era preciso passar a discutir um outro aspecto importante da questão: a estrada fora feita para porcos ou para carros?
Não esperavam por esta! Com ar de candengues apanhados com a mão no doce, recomeçam as sessões parlamentares entre todos, que não tiveram muita dificuldade em concordar que as estradas haviam sido feitas para carros. Sentido de justiça não lhes faltava, e mesmo sabendo que podiam perder a disputa, se disputa se podia chamar aquela procura de entendimento, não negavam o que a consciência lhes ditava. O porco não devia ter atravessado a estrada. Fim do capítulo segundo.
Até aqui já se tinham passado talvez uns trinta minutos. O semblante daquela gente perdera parte do sorriso! Já antevia os tais cem escudos a voarem!
Novo ponto a discutir: uma vez que a estrada era para carros, o porco é que havia estragado o carro, que ficou com um pára-lama todo torcido, a que entretanto o Agostinho já havia dado ali mesmo um jeito para não encostar no pneu, que não chegou a sofrer. O culpado era o porco. Quem devia pagar a reparação?
Aquela gente com ar ainda um pouco mais triste, após conferenciarem ativa e novamente entre si acabaram por acordar que a verdade era aquela. A culpa era do porco. Todos, através do porta voz, acabaram por dizer que sim, e ficaram em silêncio à espera do desfecho do diálogo.
Calculou-se então que a reparação do carro custaria outros cem escudos, assunto de que eles não tinham noção, e que na verdade ia custar bem mais. Foi preciso explicar-lhes que o carro tinha que ir para a oficina, pára-lamas novo, pintura, etc., e isto se não tivesse afetado a direção. Tudo coisas que significavam mais ou menos... chinês. Ao fim de mais outro tanto tempo, concordaram também que esse valor seria, quem sabe?, o custo da reparação.
Quarto capítulo. Recapitulando, antes de passar à final: se o porco valia cem escudos, a culpa do acidente fora do dito porco, e o custo da reparação era também de cem escudos, está-se mesmo a ver que quem ia pagar o estrago era o próprio porco.
- !!!!
Desilusão. Começaram por pensar que além de ficarem com o porco para o comerem, ainda iam receber cem escudos de indenização, e agora não só não receberiam nada, como tinham que entregar o porco!
O ar era de tristeza e confusão no semblante de cada um e de todos. Ficou no entanto bem assente que eu levaria o porco para me pagar dos estragos por ele feitos. O porco passou a ser minha propriedade. Tudo muito devagar e cordial, nunca se passando ao ponto seguinte sem que o primeiro ficasse bem claro em suas mentes. Mas o que é justo é justo!
Nessa época eu trabalhava na fábrica de cerveja, a Cuca, a mais antiga e bem conhecida em todos os cantos de Angola, e sempre viajava levando o carro abastecido com umas quantas caixas, para o que pudesse acontecer. Nunca havia perigo de se acabarem porque no próximo distribuidor repunha o estoque.
- Bom, então o porco é meu.
- ... sim, siô.
Vai começar nova discussão, desta vez mais sutil e delicada.
- Eu vou dar o porco para vocês comerem.
- ???!!!
- Dado; oferecido!
Não queriam. Aquilo fazia muita confusão nas suas cabeças. Porquê lhes havia eu de oferecer o porco? Alguma coisa ia querer de volta. O negócio não estava a cheirar-lhes bem! Nunca alguém lhes tinha dado alguma coisa sem querer de volta uma paga maior. Desta vez não era o caso. Foi difícil convencê-los que eu simplesmente lhes oferecia o porco e não queria nada de volta. Assim mesmo continuavam desconfiados.
Só se convenceram quando o finalmente o Agostinho a um sinal meu tirou de dentro do carro uma caixa de cervejas e lhes entregou.
- Como vocês foram simpáticos, não só vão ficar com o porco, como ainda com esta caixa de cerveja, para acompanhar a festa.
Como se pode imaginar, isto não foi dito com tanta singeleza, por dificuldade de entendimento lingüístico.
Quando por fim ficaram bem cientes de que iam mesmo ficar com o animal, sem pagar nada e ainda por cima recebiam, de graça, uma caixa de cervejas, foi uma festa. Quizomba, aliás madinga!
Toda esta conversa havia durado perto duma hora, mas valeu muito a pena. Analisar as discussões entre eles, cautelosas para não deixarem transparecer os seus pensamentos, desconfiados com um indivíduo que nunca tinham visto, e desejosos de, como toda a gente, levar alguma vantagem, era um espetáculo.
Nas suas caras via-se agora tranquilidade. As crianças não entenderam muito bem o negócio, nem era negócio que lhes interessasse. Mas os adultos, homens e mulheres batiam palmas de alegria e agradecimento. Correram a pegar no porco para o esfolar, e não queriam deixar-me ir embora sem que ficasse para comer com eles! Infelizmente não podia. Naquela estrada não se devia nunca circular de noite, e ainda tinha muito quilometro a percorrer.
Bebemos uma cerveja juntos, quase trocámos juras de amizade eterna, o que não era difícil de concretizar, e depois, com muita mágoa, tive que ir embora.

(a continuar...)
in "Contos Peregrinos a Preto e Branco", 1998
por Francisco G. de Amorim
4 jun. 09

5 comentários:

  1. lindo, quase que me sinto lá a ouvir a barganha, é mesmo a nossa terra....e as suas gentes.
    kandandos
    Graça

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  2. Saudades daquela boa terra

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  3. Saudades daquela linda Terra

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  4. Passei todo o ano de 1962 em Maquela do Zombo (Béu, Sacandica, Cuilo Futo e mais algumas povoaçoes vizinhas) como furriel miliciano na CART 85, vi muitos porcos, so nao vi esse.

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  5. Resposta para o anônimo:
    Como sabe que não viu esse se os porcos não tinham identificação?

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