domingo, 28 de junho de 2009

1962.
De Maquela, pela Damba,
para o Uige
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Mata da região do Uige - por Neves e Sousa, o Grande pintor de Angola


Não muitos quilômetros adiante da anterior cena em que o porco foi a personagem de destaque, a estrada estava em construção, ou reconstrução, e como tinha chovido muito nos dias anteriores as obras tiveram que parar, porque numa extensão bastante grande, aquilo se transfomara num lameiro só. Barro vermelho, terrível. Região de café, quente e úmida.
O Fusca sempre foi um carro especial, e com alguma experiência é difícil deixá-lo atolar, mesmo nesses lameiros profundos. Qualquer outro carro, mesmo jeep, dificilmente os atravessa. Fusca dança em cima da lama, entra com as rodas nos trilhos de outros carros, normalmente de caminhões, fundas, roça a barriga pelo chão, escorrega aqui, empurra ali, mas lá progride, Deus sabe como. De repente pela frente um caminhão tombado. Derrapara na lama e estava caído de lado. A carga era de animais: porcos, cabras, galinhas, patos, etc. Tudo por ali espalhado. Uns ciscando, outros fuçando ou picando um pouco de capim aqui e além. O motorista e o ajudante sentados no chão procurando com trabalho alguma sombra da carroceria, procuravam que os animais não se dispersassem, enquanto aguardavam socorro já pedido na véspera. Tinha que vir um trator, possante, para endireitar o carro, ainda por cima a ter que o fazer no meio de um lamaçal que estava longe de secar. Quando chegaria? Quem sabe! Paciência era uma virtude que não podia faltar a quem andava naquelas estradas.
O acidente tinha sido na véspera, há mais de vinte e quatro horas, e tudo ali jazia sob um pesado calor úmido e um desconforto total. Nem na cabine do carro podiam entrar, porque o banco estava na posição vertical!
No meu carro, além das caixas de cerveja ia sempre uma bolsa isotérmica, que antes da saída de qualquer povoação, se enchia com o máximo possível de cervejas bem geladas, e que assim se mantinham o dia todo.
Como é evidente não podíamos fazer nada para ajudar os homens a sair daquela situação.
Parei o carro, boa tarde, isto é que foi azar, iam para onde, vêm de onde, etc., e pouco mais do que isto. Depois de ouvir os escassos lamentos úteis em semelhante ocasião, sempre me pareceu que o melhor seria aliviar um pouco a má disposição daqueles dois. E perguntei:
- E que tal agora uma Cuca gelada?
Perguntar ao nu e esfarrapado se quer uma camisa! Nova e lavada!
- Você vê-nos nesta situação miserável e ainda vem gozar conosco? Cerveja gelada, hein? Siga a sua vida e deixe a gente em paz! - disse o motorista com cara de poucos amigos.
- Bom. Querem, ou não querem uma Cuca geladinha?
- Se isso fosse possível, era milagre. É tudo quanto estou a desejar desde que o sol começou a aquecer. Mas, por favor, não brinque com coisas sérias.
Fui ao carro, tirei duas cervejas, que estavam mesmo geladas, e quando as entreguei aos homens, eles não queriam acreditar! Não é que lhes apareciam, ali no meio de nada, onde ninguém passava há pelo menos vinte e quatro horas, duas cervejas, e geladas! Era mesmo milagre! O espanto na cara daqueles homens era digno de ser perpetuado! E a alegria?
Beberam com um prazer que de certeza nunca outra cerveja lhes havia proporcionado! Só se ouvia Aaaahhhh, que maravilha!
Tive que seguir viagem, mas de certeza aqueles homens, que ainda ali ficaram, esperando por ajuda válida, nunca mais na vida devem ter esquecido que um dia lhes caiu do céu uma Cuca tão bem gelada.
Nessa noite iria dormir no Uige e no seguinte talvez em casa, em Luanda, onde a família, nessa altura composta pela mulher e já cinco filhos, me cutucava de saudades.
A certa altura, caminhando pela berma da estrada, com a tranquilidade de quem dispõe de todo o tempo do mundo, um homem já entrado em anos, porque alguns cabelos teimavam em querer aparecer brancos, carregava na cabeça um bonito cacho de bananas.
Era habitual nestas minhas saídas, correndo através das estradas de Angola, no regresso levar alguma coisa para os muitos dentes do pessoal que me aguardava: por vezes alguma pequena peça de caça, visto que sempre levava comigo uma ou duas armas, ou galinhas, ou frutas, raramente verduras, que comprava aos camponeses a preços muito inferiores ao que se encontravam na cidade, e decidi entabular negociações para comprar o cacho de bananas. Parei o carro.
- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Quer vender o cacho de bananas?
- Não, patrão. É para minha casa.
- Mas onde você encontrou esse cacho pode ir lá buscar mais. E eu pago esse.
- ???!!!
Esta conversa não foi assim tão simples. O nosso homem não queria mesmo vender as bananas! Mas avançando um pouco mais na difícil argumentação, acabei por convencê-lo!
- E então quanto valem as bananas?
O homem pensou, demorou a responder e depois:
- Dez angolar!
- Dez angolares??? Isso é muito caro. É o preço que eu pago na cidade.
Ofereci cinco.
- Cinco não. É pouco. Dez angolar.
Aí ficámos: eu oferecendo cinco e ele insistindo nos dez, sem evoluir, até que o pobre homem capitulou e concordou com os cinco angolares.
Guardámos o cacho dentro do carro e quando lhe fui pagar com uma nota de dez o velhote respondeu que não tinha troco. Aliás não tinha uma única moeda. Rebuscado pelos bolsos lá encontrei dez angolares trocados e passei-os para a mão dele. Viu que era dinheiro demais e quis devolver o excedente do combinado!
Nessa altura era eu que insistia que lhe queria pagar os dez angolares. O homem não aceitava. O combinado tinham sido cinco!
Então lá lhe entreguei o combinado, e a seguir “ofereci-lhe” os outros cinco para ele beber uma cerveja! Assim era outra coisa! Ele aceitou, sorriu, agradeceu, e cada um seguiu o seu destino! O nosso homem com dez angolares no bolso, que lhe deram com certeza muito jeito, e eu, além de ter desfrutado daquela simpática negociação, carregando umas ótimas bananas para a turma dos meus caluandos.
Era assim, naquele tempo!

N.- Em 1962 a moeda já tinha deixado de ser “angolar” para ser “escudo”. Mas isso fica para outra história!

in "Contos Peregrinos a Preto e Branco" de Francisco G. de Amorim

28 jun 09


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