terça-feira, 16 de junho de 2009



De Benguela
a Sá da Bandeira


Não era este o hotel do Toco, mas... parecido!


Continuemos em 1954
Por esta estrada, pouco mais do que picada, passei inúmeras vezes. Era a ligação de Benguela para o sul, para Sá da Bandeira, hoje Lubango, e daqui para Moçamedes, hoje Namibe, para o Humbe, e para a região dos cuanhamas e cuamatos, fronteira com a Namíbia.
O mesmo furgão, Renault, duro, incómodo, e somente dois passageiros. A minha mulher e o ajudante, o Sebastião.
Este, que um dia depois de eu ter ido embora de Benguela me escreveu uma longa carta que começava com Meu amado mestre, que quase me fez sentir o Messias! Era um rapaz novo, o Sebastião, humilde, alegre, prestável. Nada sabia de mecânica, mas foi sempre imensamente prestável, quando o carro avariava no caminho, em casa dos agricultores onde tantas vezes tive que prestar assistência a equipamentos agrícolas, e até nos escritórios da empresa, na montagem das máquinas novas que iam chegando. Ao fim de um ano de andar comigo já fazia muita coisa. Talvez daí o tratamento de Mestre!
Desta vez o Renault ia com o motor a falhar. Engasgava-se com facilidade, sobretudo nas subidas. A gasolina não chegava bem ao carburador, e nunca se chegou bem a saber se era a bomba, que foi trocada, mais tarde até colocada uma outra em paralelo, elétrica, que a original era mecânica, desmontou-se e lavou-se o deposito de combustível, limparam-se os canos, enfim fez-se tudo o que era possível, e o carro continuava a falhar.
Perto de Cacula saímos da estrada principal para visitar um fazendeiro, com quem troquei idéias sobre problemas ligados à melhoria da sua produção agrícola. Trabalhava este ainda de acordo com o que a natureza lhe dava, o que significa que não melhorava a terra, não fazia rotação de culturas, nada. Achava ele que se a terra era virgem tinha que dar produções imensas durante bastante tempo! Só dali a muito tempo é que iria pensar em qualquer ajuda, análise de terras, eventual adubação, etc. Burro! Produzia algum milho, massambala, pouca horta e umas quantas arvores de fruta, e criava gado. Tudo à boa moda do Deus dará!
Alem de um pastor, tomava conta do gado uma cadela de raça misturada com Leão da Rodésia, valente e bonita. Uma semana antes de lá passarmos tinha enfrentado, sozinha, uma leoa que se aproximou do gado certamente com a intenção de levar alguns bifes para a família. Enfrentou-a e conseguiu afastar a leoa que desistiu dos seus intentos. Bichinho valente, estava com uma ninhada de sete filhotes. E como filhote, mesmo de vira latas, é bonito, aqueles eram lindos. Saímos de lá com um macho, que cresceu conosco e se fez um estupendo companheiro e guarda.
O destino era Sá da Bandeira, cidade situada numa região montanhosa, a mil e oitocentos metros de altitude, um clima maravilhoso, e que naquela altura tinha o melhor hotel do mundo: o Grande Hotel da Huíla. Limpíssimo, as camas com colchões ingleses, altos, muito macios e confortáveis, o ar era condicionado pelo tempo sempre fresco de dia e frio de noite devido à altitude, os quartos de banho impecáveis, banheira grande, sempre com água quente a qualquer hora, uma sala de jantar sóbria e uma suculenta comida caseira, mas que ainda hoje não tem hotel, mesmo com cem estrelas, que se lhe compare! Era uma delicia.
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Grande Hotel da Huila, restaurado. Era todo branco (mais bonito) e tinha um simpático jardim onde agora está a piscina
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Chegar a qualquer hotel depois de uma viagem por estradas de terra, poeirentas e esburacadas era sempre uma maravilha. Mas chegar ao Grande Hotel da Huíla, e sobretudo lá ficar alguns dias, era o Máximo que se podia almejar.
Depois de Cacula a estrada começa já a subir para o planalto, e o carro falha cada vez mais.
Engasga-se. Pára. Abre o capô. Olha-se para dentro e nada se faz porque não há nada que se possa fazer, apesar de carregar sempre no carro uma completa mala de ferramentas. Seria a tal bomba de gasolina? Talvez, mas mesmo que fosse não havia outra para trocar em pleno mato. Com isto vai-se perdendo tempo, e entretanto a noite adensa-se. O local mais próximo onde ficar era no Toco, no entroncamento das estradas de Sá da Bandeira para Benguela e para a Matala.
Depois de Hoque a estrada entra no começo do alto da serra e sobe íngreme e ziguezagueante até chegar ao topo, a dois mil metros de altitude.
O carro, cada vez mais engasgado, não consegue subir. Fez-se tudo, e... nada. Só de marcha a trás, de ré! Faltando ainda uns doze a quinze quilômetros, a única solução para não ficar na estrada foi virar o carro e ir às arrecuas p´a trás!
Abriu-se a porta traseira do furgão, o Sebastião sentado com as pernas para fora, lanterna na mão tentando alumiar, mal, as bermas da estrada, e eu com o pescoço torcido quase 180º conduzindo aquela droga de carro montanha acima. O frio entrava pela porta aberta e ia congelando a todos. Velocidade lenta. Lenta, ainda é pouco, lentíssima. Por todas as razões, e até porque o motor podia não aguentar e fundir de vez!
Nem o motorista aguentava muito apesar da sua juventude! Anda um pouco, pára para descansar e mexer o pescoço. Anda um pouco mais, torna a parar, e assim, com uma canseira imensa, finalmente chegámos ao Toco às duas horas da manhã. Ainda hoje não sei bem como conseguimos tal proeza. Os vinte e poucos anos de idade...
Dizer-se que ia cansado é piada. Arrasado. Depois de ter saído de Benguela a pensar que ia dormir no melhor hotel do mundo, para onde tinha telefonado a reservar o quarto, e não poder lá chegar, qualquer lugar servia para descansar e tentar endireitar o pescoço, mais do que torto!
Até mesmo numa espécie de hotel, no Chongoroi, a uns duzentos quilômetros de Benguela, que tinha unicamente dois quartos, e onde uma vez tive que ficar para dormir. O travesseiro estava tão limpo, que fui obrigado a cobri-lo com a minha camisa, mesmo empoeirada, para poder disfarçar! Acordei de manhã com uma pontada nas costas, e pensei que fosse do colchão, feito de palhas de milho, que pelo meio tinha uns tarolos imensos, duros que nem troncos! Não era. Alguém que lá dormira antes tinha esquecido um lápis dentro da cama que se me enfiara nas costas! Os lençóis desses palaces não deviam ser mudados mais do que uma vez por ano! Começavam por ser brancos e quando já não se viam de escuridão, então iam lavar! Dormia-se vestido, só se tirando as botas! Alguns nem isso!
Mas quando se era obrigado a ficar nesses cinquenta estrelas a razão era ditada pelo cansaço que não permitia andar mais sem risco de adormecer ao volante. Era o que havia!
Mais estrelas ainda tinha outro hotel em Menongue. Depois de me deitar e apagar a vela, assim que me habituei à escuridão do quarto, começo a ver uma imensa porção de estrelas no teto! Não, não era a classificação turística hoteleira! Faltavam algumas telhas, o que permitia ver aquele céu, lindo quando se quer apreciar, mas pouco convidativo quando o buraco do telhado é bem por cima da cama! Por acaso nessa noite não choveu!
No Toco, a que eufemisticamente se chamava povoação, onde como é evidente luz elétrica não existia, havia somente três casas, todas pertencentes à mesma família. A de comércio, a habitação e uma espécie de hotel ou albergue, construída num local um pouco mais elevado, em cima de uma rocha. Era um edifico térreo com cinco portas para a rua, aliás a estrada. Cada porta dava para um quarto com meia dúzia de camas, onde os viajantes, praticamente só camionistas, à medida que chegavam, qualquer que fosse a hora, se deitavam para dormir. Nenhuma porta tinha chave. Não fazia falta. Era assim a África, tranquila.
A organização ali era simplissima. Quem fosse chegando procurava uma cama vazia, deitava-se, dormia, e no dia seguinte pela manhã, depois de matabichar pagava a sua conta e seguia então viagem. O matabicho, para gente que além ter estômagos fartos, não sabia quando chegava ao próximo destino, compunha-se de café, leite, pão e manteiga, e ou bifes, grandes, com batata frita, ou então bacalhau cozido com batatas! O que no Brasil se chama café da manhã, ali era algo de substância. E matabichar às cinco, seis horas da manhã, uma bacalhauzada, era ótimo! Já se saía aviado para o que desse e viesse.
Dormiam os viajantes uns quantos no mesmo quarto e muitas das vezes nem se chegavam a ver pelo desencontro das horas de chegada e partida. Mas dormiam e roncavam.
Pescoço à banda, braços e costas doloridos, todos nós enregelados, tudo o que eu naquela ocasião pedia a Deus que me desse era uma cama com dois cobertores de papa bem quentinhos. Não aguentava mais.
Abri a primeira porta, entrei sem acender a luz, porque nem havia, adivinhei algumas camas vazias, e cansado como estava comecei logo a despir-me. Minha mulher atrás, lanterna na mão, cautelosamente percorrendo os cantos do quarto à procura de alguma barata! Eu queria lá saber de baratas. Só queria mesmo era deitar-me. De repente o foco da lanterna ilumina uma cadeira que tem pendurada um par de calças. De homem. Mais uma camisa e no chão umas botas.
Sussurrando, chama-me e mostra-me a descoberta. Aponta a lanterna para a cama, e lá estava outro hospede, dormindo o sono dos justos, profundamente.
Eu já tinha despido a camisa e as calças. Pegamos tudo novamente e vá de ir procurar outro quarto. O segundo estava vazio, bem confirmado pela lanterna que desta vez não procurou mais baratas mas percorreu todas as camas.
Para não dar hipótese a que outro retardatário viesse dormir conosco, improvável devido ao adiantado da hora, empurrei uma cama para a porta, para teoricamente a trancar. Não trancava, mas pelo menos dificultava a entrada de alguém mais e talvez, talvez, se tentassem forçar devia fazer suficiente barulho nos acordar e assim podermos avisar que o quarto estava ocupado! Cansado como estava, eu não acordaria de jeito nenhum, mas ficámos moralmente mais à vontade!
Num instante acabei de me despir e em menos de outro estava enfiado por cima daquele colchão de palha, mesmo duro, debaixo dos tais cobertores pesados. Não sei quanto tempo levei para adormecer, mas creio ter entrado na cama já com um olho fechado!
Depois daquela viagem incrível, com um frio miserável, de ré, todo torcido, aquela cama mesmo sendo bastante péssima era uma maravilha! E devo ter dormido bem porque me levantei só a meio da manhã! E não perdoei o meu matabicho de herói!
No dia seguinte, feriado, 8 de dezembro de 1954, conseguimos finalmente, e ainda muita engasgadela do motor chegar a Sá da Bandeira, porque já não havia mais subidas íngremes, a estrada desenvolvia-se pelo topo da serra, e aí, sim, descansar e gozar aquele clima e Aquele Hotel.
Que saudades!...

Do livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”, 1998, por Francisco G. de Amorim
16 jun. 09

2 comentários:

  1. É , que saudades, resta-nos recordar.

    Fiz esta viajem tantas vezes na Páscoa com os meus pais, os meus tios (Rita) e uma ou outra familia . Eram sempre pelo menos 3 carros, não fosse um ficar pelo caminho. Partir às 5 da manhã para chegar ao Grande Hotel antes de ser noite. Eu sou menos antiga que este senhor , porque tomei muitos banhos na dita piscina. O Fanizinho até apanhou lá uma hepatite que nos pôs a todos de gatas. Sim que ele é que a apanhou, mas todos sentimos os nervos e a preocupação da minha mãe, um drama.



    Renatinha, tu que já lá foste também – à Huila e a este hotel - nos dias de hoje, a estrada e a viajem também não será muito mais confortável, pois não? A grande diferença é que na nosdsa infância os carros não tinham AC, então íamos de vidros abertos cabelos ao vento, a comer pó, pó que se colava desde a cueca até á testa. O meu pai ficava mascarado, cabelo, sobrancelhas e pestanas brancas e cara empoada…era muito divertido.

    Enfim, vamos ao trabalho.

    Lilia Henriques

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  2. As voltas que o mundo dá!
    Tenho 58 anos. Sou da geração dos seus filhos. Há muitos, muitos anos, teria eu 12 ou 13 anos fui dar umas voltas num barco à vela lindíssimo. Andei várias vezes nele. O suficiente para ainda hoje saber a sua forma de cor. É o barco que desenho há mais de 30 anos...
    Em Dezembro do ano passado lá fui passar o natal com a minha mãe (minha e de mais 9 irmãos), os meus irmãos e cunhados, cunhadas, filhos e sobrinhos e sobrinhos netos . Pouca coisa, só família directa, mas que ainda assim,vai para cerca de meia centena. Na "ressaca", da sempre enorma festa, no dia 26 a minha mãe vem ter comigo e diz-me:
    Olha, tenho aqui uma coisa que se calhar gostarás de ler! e dá-me o livro da viagem do tio Chico Amorim do Brasil a Angola. Folheio o livro e é como se me tivessem dado um soco na boca do estomago. Fiquei sem ar. Ali estava ele, de corpo inteiro. Bonito como sempre o tinha visto, e tal e qual como sempre o quiz desenhar, meu barco das grandes viagens que nunca fiz e que tanto sonhei!
    O ARGUS!!!!!
    Estou certo que me perdoará esta espécie de apropriação, mas -no sentir- pelo que sonhei, pelo queo desenhei e pelo que ele me deu ainda que só assim, este seu barco também é meu.
    Agora, por via de um amigo, volto a passear, ja não no seu barco mas nas viagens que também eu fiz pelas estradas de Angola,trabalhando também eu na CUCA talvez 20 anos depois de si (é bem verdade que as estradas eram bem melhores mas aos 19 anos ter que atravessar 3 rios para ir passar o fim de semana a Malange ainda era obra) mas também percorrendo os mesmos caminhos fosse por Malange, na Fazenda Cahombo onde era a minha base, ou no Camucuio de caminho para o Lubango ou Moçamedes. Foi nessas andanças que fui aprendendo a ser um razoável Regente Agrícola,e, mais importante para mim,a amar a mina terra.
    JUlgo que não será dificil advinhar mas apresento-me.
    Pedro Dornellas, 1 dos 10 filhos do Martim e da Maria meus pais.
    Obrigado por tantos prazeres que, sem o saber, me deu recentemente
    essueu@sapo.pt

    Obrigado pelo

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