Muita
coisa me tem acontecido desde que deixei o blog vazio, praticamente desde Junho.
Depois
disso simplesmente postei uma página da história do nosso filho Francisco, que
nos deixou tão repentinamente que ainda não consegui recuperar o meu equilíbrio
emocional.
O filho
que tinha vindo viver conosco para nos ajudar neste nosso fim de vida!
Sobre o
seu caráter e sua vida, mais tarde irei escrever alguma coisa. Por ora ainda estou
incapaz.
Hoje vou reproduzir a carta, um pouco longa, de um jovem, tranquilo e filósofo que, quando bem menino, dizia que um dia queria ser “cientista maluco” (!) que considero um monumento à arte de escrever. A seu pedido emito os nomes nela referida, que não diminuem o teor e a graça da escrita.
Carta aos padrinhos, agradecendo a mensagem que recebeu de parabéns no aniversário
Queridos
padrinhos!
Quando nos encontramos pela última vez eu falei que ia tentar dar mais
notícias, ia tentar me comunicar melhor. Então aqui estou eu me comunicando! É
a primeira notícia que dou e faz pouco mais de 1 ano desde que nos vimos, eu
sei. Levando em conta que eu acho que não escrevi nada nos últimos 35 anos, 1
notícia depois de 1 ano não me parece tão péssimo... Não é ótimo, mas é melhor
do que 0 notícias em 34 anos.
E essa mensagem também serve como uma resposta à mensagem de feliz aniversário
que me deram. Esse é um dos meus problemas com comunicação assíncrona: eu
admito que não vi a mensagem no próprio dia do meu aniversário, vi apenas no
dia seguinte, mas era um dia de semana que eu tinha que trabalhar, e não queria
só responder "obrigado". Queria escrever uma resposta mais completa,
mais complexa, mais elaborada (obviamente não tão grande quanto a que estou
escrevendo agora, mas algo melhor do que só uma palavra), então decidi escrever
no final de semana seguinte, que teria mais tempo. Aí tive combinações
presenciais de aniversário e não tive tanto tempo para elaborar uma mensagem
quanto gostaria, então fui postergando, e fiz isso até hoje. Se tivesse
recebido os desejos de feliz aniversário ao vivo teria respondido ao vivo
imediatamente, não precisaria elaborar muito, mas mensagem escrita tem que ser
um pouco a mais, ainda mais pelo tempo que eu já tinha demorado para responder.
Não só isso como depois de um certo tempo fica quase vergonhoso responder.
Estou eu aqui respondendo o feliz aniversário 110 dias depois do meu
aniversário. Talvez fosse melhor apenas não responder. E é uma bola de neve
psicológica: quanto mais tempo passa mais eu sinto que a mensagem precisa ser
mais elaborada e mais eu sinto que talvez não valha a pena responder. E o que
normalmente acontece é que eu não respondo nada. E é o que eu normalmente teria
feito: ignorado. Não que eu não me importe, mas talvez eu me importe demais, e
talvez me importe da forma errada. Não sei explicar direito. Não sei se tenho
muita culpa de como o meu cérebro escala paranóias, mas talvez tenha como
tentar combater isso. E sei que os tios também não têm muita culpa pois quando
decidiram ser meus padrinhos não sabiam o quão problemático eu viria a ser. Mas
é isso. Esse é o afilhado que têm. Obrigado pelo desejo de feliz aniversário
110 dias atrás!
Então
vamos por partes. Primeiro vamos falar das notícias e novidades.
Quando me despedi dos tios eu lembro que tinha por volta de 15 dólares na conta.
A situação melhorou consideravelmente desde então. Comecei a trabalhar, a minha
mulher ainda trabalhava, conseguimos juntar dinheiro, estamos mais confortáveis
financeiramente, e agora parou de trabalhar para fazer o curso de animação
gráfica que era o sonho dela! A situação que estava mais ou menos desesperadora
um ano atrás agora está tranquila e com ótimas expectativas para o futuro! E
essa é basicamente a única notícia de real importância que tenho a dar, que eu
me lembre. Fora isso, nada de muito emocionante aconteceu, a vida só seguiu por
um ano mesmo. Montamos a miniatura da Torre de Belém e a colocamos num móvel
junto com umas plantas (meu apartamento é cheio de plantas, basicamente graças
à “dona da casa”) e estava ali de enfeite até que um dia descobrimos que a
Torre de Belém funciona perfeitamente para guardar o rolo de sacos plásticos
que usamos para limpar a caixa de areia dos gatos. Imagino que isso deva ser
ofensivo para algumas pessoas, mas no espaço limitado do apartamento minúsculo
que temos temos que tentar juntar beleza com funcionalidade, e a Torre de Belém
está lá guardando o rolo de sacos plásticos. Espero que isso não seja
ultrajante demais que me faça perder a cidadania portuguesa!
Mas não
venho aqui apenas dar notícias, venho também contar um pouco mais de mim para
que possam me conhecer um pouco melhor. Então vou contar sobre a nossa última
grande atividade juntos: o casamento da vossa filha! Mas vou contar da minha
perspectiva! Afinal eu sou o personagem principal da história da minha vida. Eu
vejo tudo com os meus olhos e interpreto tudo com o meu cérebro. E o que segue
é o casamento interpretado por mim.
Já
conversamos um pouco sobre o casamento quando estive aí, mas eu queria contar
apenas mais dois detalhes.
O primeiro
é o mais simples, provavelmente o mais insignificante no geral, mas no meu
ponto de vista foi algo de uma magnitude imensurável. Quando a Inês andava de
braços dados ao tio Gonçalo em direção ao altar todos os olhos os acompanhavam,
todos de pé vendo o casamento realmente começar. A noiva e o pai estavam
majestosos, o centro das atenções, e eu observei a caminhada de um lugar muito
privilegiado: eu estava numa cadeira bem ao lado direito da passagem. Eu não os
via há sabe lá Deus quanto tempo. O padrinho muitos e muitos anos, e a noiva
ainda mais anos! Mas ali estavam eles. E depois de tanto tempo sem os ver, esse
foi o momento do reencontro. Talvez não o momento mais oportuno para um
reencontro, mas foi ali a primeira vez em talvez mais de uma década que o meu
padrinho estava logo ali, a alguns centímetros de mim. E assim como para mim
esse foi o momento do reencontro foi também para o padrinho, e num gesto de
afeto ele me estendeu a mão, e em resposta eu estendi a mão, e ali, naquele
momento mesmo que não ideal, depois de décadas, um aperto de mão, um contato. E
isso foi um dos momentos que mais me marcou no casamento. E tudo até então
parece um lindo conto do reencontro de um afilhado com um padrinho depois de
muito tempo. E era para ter parado por aí, mas é nesse momento que o meu
cérebro começa a pensar mais do que deveria...
Foi um
gesto de carinho, e foi muito emocionante para mim. Mas depois de alguns
segundos, quando a emoção do momento passou um pouco, o meu ego não conseguiu
se segurar completamente. O que realmente aconteceu foi o que meu padrinho
apertou minha mão, mas o que também aconteceu foi que o pai da noiva apertou a
MINHA mão. Só a minha. Mais ninguém teve esse privilégio (obviamente que estou
apenas contando meus iguais: os insignificantes da platéia, é claro que o pai
da noiva apertou a mão de muita gente que era mais importante no evento, mas
não vou me comparar a eles - a graça de ser o melhor jogador de futebol da
minha rua é apenas me comparar com as pessoas da minha rua, não vou tentar me
comparar com o Messi, com o Cristiano Ronaldo, ou com o Neymar). Então eu fui
imediatamente promovido de "apenas mais um dos espectadores" para
"o espectador que apertou a mão do pai da noiva", o que não muda
muita coisa, minha insignificância no evento continuou tão insignificante
quanto a de qualquer um dos espectadores. Os astros do evento eram outros,
disso não há dúvidas. Porém - e digo novamente: esta é a história contada do
meu ponto de vista - nada muda o fato de que o pai da noiva apertou a minha
mão, e apenas a minha mão. No começo de um concerto de uma orquestra o maestro
aperta a mão do primeiro violino, e apenas do primeiro violino. Eu ali me senti
o primeiro violino dos espectadores. Não que eu saiba tocar o violino (ou
qualquer outro instrumento), mas isso não vem ao caso!
E eu
falando aqui parece que o tio virou para mim, estendeu o braço, e tivemos um
firme aperto de mãos como se estivéssemos fechando um bom negócio, mas na
verdade o que aconteceu foi que ao passar ao meu lado, muito sutilmente ele
chegou um pouco a mão para perto de mim, e tivemos um contato, um pequeno
aperto de mãos, uma troca de olhares, e um sorriso. Mas lembro novamente que
esta é a história vista pelos meus olhos, e pelos meus olhos não há dúvidas de
que o tio-padrinho apertou minha mão. Porém, como foi algo bem sutil, não creio
que muitos tenham visto, e quem viu bem possivelmente ignorou o acontecido, mas
não eu. Esse foi o auge do casamento na minha história. Eu já era casado quando
entrei e continuei casado quando saí, então para mim nada mudou. Mas esse
momento foi a primeira e única vez que o meu padrinho apertou minha mão
enquanto acompanhava a noiva ao altar num casamento da filha, então foi bem
marcante!
Depois
disso tive um re-reencontro um pouco melhor com o tio durante o casamento (mas
não enquanto a noiva estava andando em direção ao altar) com direito a abraços,
reencontrei também a tia, a outra filha, e tivemos uma conversa um pouco
melhor, mas o casamento foi realmente muita correria para os participantes
principais do evento, então o re-re-reencontro de verdade foi quando fui a vossa
casa passar uns dias e conseguimos conversar de verdade e ter um tempo de
qualidade juntos. Mas isso não preciso contar muito pois estávamos lá
conversando em pessoa.
O segundo
detalhe do casamento é algo que conta um pouco sobre um interesse meu que
poucos sabem e que acredito que não seja interesse de muitos, mas o que eu
posso fazer a respeito? Não sou eu que decido como meu cérebro funciona, então
eu só aceito. Já aviso aqui que o resto desta "carta" vai ser
possivelmente confuso, terá um quantidade considerável de termos técnicos,
talvez seja um pouco perturbador, e talvez os faça repensar muitas coisas, mas
por favor tente continuar lendo o máximo que conseguir, no final tudo fará
sentido e espero ter demonstrado um pouquinho desse maravilhoso e confuso mundo
que é o meu cérebro.
O meu
interesse, que admito que é algo que até eu acho meio estranho, é fonética e
fonologia. Um pouco de história sobre esse interesse: há muito, muito tempo
atrás, quando eu era apenas um garotinho ainda, um amiguinho meu do colégio
tinha uma mãe que era fonoaudióloga, e uma das coisas que ela fazia era ensinar
crianças surdas a falar. O quão fantástico é isso? E como é possível isso? Como
uma pessoa que não ouve consegue saber como falar? Pois bem, foi aí que começou
meu interesse. Um bom tempo depois, já na faculdade, quando eu e um grupo de
amigos tentamos criar uma empresa, um dos participantes (que era amigo de
faculdade da minha irmã) tinha pais surdos. A mãe ficou surda, então ela
aprendeu a falar enquanto ainda ouvia, mas o pai sempre foi surdo e conseguia
falar consideravelmente bem. E conversar com eles foi mais um momento da minha
vida que ativou esse interesse pelo aparelho bucal como instrumento sonoro
humano.
Agora que
temos já uma breve história do motivo do meu interesse - e espero que não
tenham dormido de tédio ainda - devem estar se perguntando: como raios isso
está relacionado ao casamento? Não posso responder ainda, preciso explicar mais
algumas coisas!
Eu vos
apresento: a língua portuguesa!
Vou tentar
fazer um experimento aqui. Talvez não dê certo, não posso prometer nada!
Mentalizem o nome da noiva: Inês... Inês. "Falem" mentalmente (ou até
não mentalmente, pode falar alto) esse nome. Essa é a palavra importante do
momento. Agora, se você é como eu, carioca, você provavelmente falou
"Ineix". É, eu sei, não é exatamente o nome que os tios escolheram,
mas é assim que eu falo. E lembrando novamente que tudo aqui é contado do meu
ponto de vista, o que faz com que essa seja a pronúncia correta do nome! Nós
cariocas gostamos de colocar um I depois do E, e o S vira um X, o que faz com
que "nós cariocas" vire "noix cariocax". O que eu acredito
que vocês tenham falado é "Inêx". Apesar de não ter um I depois do E,
o S também vira um X.
Acho que
até agora é tudo mais ou menos simples, mas já vou pedir desculpas pois agora
vai tudo ficar consideravelmente mais complicado.
Vamos
classificar alguns fonemas de consoantes, e a forma como classificamos é
basicamente em 3 qualidades do fonema:
- o modo de articulação, que é basicamente como o som é criado
- o ponto de articulação, que é basicamente onde na boca o som é criado
- e o modo
de fonação, que é se as cordas vocais vibram ou não durante a articulação
(estamos
fazendo tudo mais ou menos por alto aqui, não precisamos ser muito técnicos,
mas precisamos ser um pouco...)
Os três exemplos a seguir não são exatamente necessários para a idéia geral mas
são válidos para um melhor entendimento:
- A consoante M é uma consoante nasal bilabial sonora: nasal (o ar passa pelo
nariz) bilabial (articulada com os dois lábios) sonora (as cordas vocais
vibram) - o fonema é criado com os dois lábios se juntando, impedindo a
passagem de ar pela boca, deixando o ar passar pelo nariz, enquanto as cordas
vocais vibram.
- A consoante T é uma consoante oclusiva dental surda - oclusiva (o ar não
passa) dental (articulada com a língua e os dentes) surda (as cordas vocais não
vibram) - o fonema é criado com a língua encostando nos dentes superiores para
impedir a passagem do ar pela boca, enquanto as cordas vocais não vibram.
- A consoante J é uma consoante fricativa palatoalveolar sonora - fricativa (o
ar passa por um canal estreito) palatoalveolar (articulada com a língua e os a
região entre o palato e os alvéolos - a parte da boca logo atrás dos dentes
antes do céu da boca) sonora (as cordas vocais vibram) - o fonema é articulado
com o ar passando por um canal estreito criado pela aproximação da língua com a
região entre o palato duro e os alvéolos dentários. Ok, eu admito, essa parece
muito assustadora, mas é só falar o nome "João" e pensar bem em como
está a posição da língua durante o J.
Na
classificação temos o modo de articulação, o ponto de articulação, e o modo de
fonação. O modo de articulação existem alguns, o ponto de articulação existem
vários, mas o modo de fonação existem apenas dois: ou as cordas vocais vibram
ou elas não vibram. Então podemos juntar várias consoantes em pares, sendo uma
sonora (vibram) e outra surda (não vibram). Uma forma interessante de perceber
se as cordas vocais vibram ou não é colocar as pontas dos dedos levemente
pressionando contra a garganta e falando a palavra beeem deee vagaaar. Mas
também prestem atenção em como a boca, os lábios e a língua estão posicionados
durante a articulação das consoantes.
Um exemplo desses pares é V e F, como na palavra FAVA. Temos o F, que é uma
consoante surda, e o V que é uma consoante sonora, sendo as duas fricativas
(canal estreito) labiodentais (lábio e dente). Preste atenção nos dois pares de
fonemas e como a estrutura bucal e a posição da língua são iguais entre V e F,
a única diferença é a que em uma as cordas vocais vibram e na outra não. Um
outro par muito importante para o resto da história é o par do J (consoante
sonora) e o X (consoante surda), como nas palavras JÁ e CHÁ. Veja novamente que
a única diferença é que uma é sonora e a outra é surda.
Outros pares de consoantes que diferem apenas no modo de fonação
(sonora/surda): T e D; P e B; C e G; S e Z.
O próximo passo agora é falar de uns detalhes mais obscuros do idioma
português, coisa que todos fazem mesmo sem saber que fazem, e ouvem sem achar
estranho, é tudo normal, mas fonemas mudam! O fenômeno que estou falando se
chama Assimilação Regressiva do Vozeamento, e o que isso quer dizer?
Assimilação quer dizer que durante a fala alguns fonemas se juntam de alguma
forma. Regressiva quer dizer que o fonema posterior influencia o fonema
anterior. Vozeamento quer dizer que o atributo do fonema que é assimilado é o
modo de fonação (uma consoante "sonora" também pode ser chamada de
"vocalizada").
Os exemplos a seguir vão começar com "as", e o fonema que precisamos
prestar atenção é o do S de AS. Se falarmos "as pessoas" o S vai ter
som de X, até aí acho que já concordamos. Mas se falarmos "as
mulheres" o S de AS vai ter som de J. E isso se dá pela influência do M
(consoante sonora) no fonema "normal" do S que é o X (consoante
surda) transformando em J (consoante sonora com mesmo modo e ponto de articulação
que o X). Isso é a Assimilação Regressiva do Vozeamento: a consoante anterior S
assimilou o modo de fonação sonoro da consoante posterior M. (Uma observação
curiosa aqui para um outro tipo de assimilação regressiva é que se falarmos
"as amoras" o S de AS vai ter som de Z...)
E agora
com certeza estão se perguntando: o que raios que tem os fonemas com o
casamento? Digo que estou chegando lá, mas ainda falta uma coisinha!
Agora
vamos analisar a Assimilação Regressiva do Vozeamento usando o nome da noiva:
Inês. Se falarmos "Inês foi" ou "Inês quer" o S de Inês vai
ter som de X, mas se falarmos "Inês voltou" ou "Inês gosta"
o S vai ter som de J. E para nós essa mudança no fonema é super normal,
natural, automática, e não precisamos de esforço algum para falar ou entender,
mas a mudança no fonema acontece.
Mas sabe
pra quem essa mudança de fonema não é tão natural e automática? Para os
ingleses! (apesar de que eles têm as próprias assimilações no idioma deles).
E é assim
que o meu interesse por fonologia é relevante na minha experiência durante o
casamento! Os ingleses não sabem falar o nome da Inês de forma nativa dentro de
um contexto fonético complexo onde uma consoante não pode ser articulada de
forma independente dentro de uma sequência. É um absurdo! Mas mais engraçado do
que isso é que fica evidente que alguns optaram pela articulação do S sonoro
como J e uns pela articulação surda como X, independente do fonema que vem a
seguir, e deve ser baseado no momento em que eles aprenderam o nome e como o nome
os foi apresentado. Já que nós falamos o nome de formas sutilmente diferentes
dependendo do fonema que vem a seguir. E talvez até um pouco melhor do que isso
é que os portugueses falando inglês fazem a assimilação regressiva mesmo em
inglês! Então um português que fale por exemplo "Inês was", como o W
é uma semivogal (ou seja, é sonora), transforma o S de Inês de X para J. Isso é
fantástico! Pelo menos para mim, e novamente lembro que este é o conto do
casamento visto pelos meus olhos, ouvido pelos meus ouvidos e interpretado pelo
meu cérebro. Acredito que os votos de casamento tenham sido lindos, e que as
memórias que os amigos compartilharam tenham sido maravilhosas, mas a
assimilação regressiva do vozeamento foi a coisa que mais me marcou em todos os
discursos.
Alguns
chamam esse meu interesse e conhecimento por fonologia "cultura
inútil", mas muito pelo contrário! E digo mais, já me foi útil até durante
a faculdade de engenharia mecânica, e vou compartilhar aqui o conto que não
apenas demonstra mais desse meu interesse como conta um momento engraçado da
minha vida: o meu professor de mecânica dos fluidos estava um dia dando uma
bronca na turma pois todos os alunos queriam apenas decorar as fórmulas físicas
e resolver a prova como se fossem uma calculadora, e decorar a fórmula não é a
parte mais importante, a parte importante é sabendo a fórmula entender como ela
funciona, por que ela funciona, e a teoria por trás da fórmula. E para
exemplificar que os alunos eram todos programados para aceitar regras e não
tentar questionar ou entender o por que das regras ele deu um exemplo que todos
nós (pelo menos na educação do Brasil) conhecíamos, que é a regra de "M
sempre antes de P ou B" (que é uma regra que dita apenas que não se usa N
antes de P ou B, e que não se usa M antes de qualquer outra consoante). O
professor apenas falou que essa regra é uma regra que todos nós aceitamos e
seguimos e perguntou se alguém sabia o motivo dela, as razões por trás da
regra. E bem, eu só levantei a cabeça e respondi: "quando uma consoante
oclusiva é precedida por uma consoante nasal elas seguem o mesmo ponto de
articulação". Os alunos não só não entenderam a explicação como bem
provavelmente não entenderam metade das palavras, o professor aceitou a
resposta e eu recebi um bônus na nota da prova! Ou seja, conhecimento muito
útil! E a explicação não é de todo um absurdo: quando uma consoante oclusiva
(que obstrui completamente a passagem de ar) vem depois de uma consoante nasal
(que obstrui a passagem de ar pela boca mas deixa o ar sair pelo nariz) o ponto
de articulação (posição da boca, lábios e língua) é a mesma. E, na língua
portuguesa o M é a nossa consoante nasal bilabial, e P e B são as nossas
consoantes oclusivas bilabiais (uma surda e a outra sonora). Mas o mais interessante
é que o N que usamos antes de todas as outras consoantes não é sempre o mesmo!
Por
exemplo:
- na
palavra "andar" o N é articulado com a língua no dente pois vem antes
de um D
- na
palavra "angústia" o N é articulado com a base da língua contra o palato
mole pois vem antes de um G
- na
palavra "antigo" em português do Rio de Janeiro
("anTCHIgo") o N é articulado ali no ponto entre o palato e os
alvéolos pois vem antes de um TCH que é um X oclusivo
- na palavra "ansiedade" o N é articulado não com a ponta da língua
mas com a lâmina da língua contra os alvéolos pois vem antes de um S (que não é
uma consoante oclusiva, e sim sibilante, então as regras não são sempre tão
claras, mas neste exemplo deveria funcionar)
Isso é
tudo muito fascinante!
E é isso,
agora vou parar de falar de fonética antes que eu tenha que enviar essa
mensagem em três volumes de capa dura. Quando eu começo a falar disso eu me
empolgo! Mais uma curiosidade sobre o seu afilhado: enquanto algumas pessoas
cantam no chuveiro (que por algum motivo parece ser bem comum) eu pratico
fonemas incomuns (para mim) no chuveiro. Cada maluco com sua maluquice.
Mil beijos
aos tios, às filhas, e ao neto,
Do
afilhado meio sumido e meio louco,
14/08/23
*****
Resposta do Padrinho
Querido
Francisco,
Por muitos anos que viva não vou esquecer este seu email, e por várias razões.
A primeira
é que você corajosamente admite as suas falhas em manter as comunicações ativas
como reflexo dos afetos reais que o unem às pessoas. E para ser sincero, creio
que 99% das pessoas sofrem do mesmo mal mas apenas 0,99% o confessam! Pois
fique sabendo que, na parte que me toca, não há prazo certo para responder aos
amigos. O prazo é o que as circunstâncias permitem. O conteúdo da resposta é
que importa. E no que toca a conteúdo, o seu email é profusamente recheado!
Sentimos claramente o seu afeto, que é sem dúvida um espelho do nosso.
A segunda
razão é o destaque que você deu ao nosso aperto de mão que inaugurou a solene e
profundamente emocional caminhada com a Inês, sob os arcos da catedral vegetal,
para a levar ao altar onde o noivo e o seu pai nos aguardavam. É verdade, os
pais das noivas não cumprimentam os convidados no trajeto solene “down the
aisle”. Nem eu pretendia cumprimentar ninguém. Mas você era, fisicamente, o
primeiro convidado de toda a galeria, não te via há décadas e senti uma grande
alegria de te ver ali. Creio que você, afilhado distante mas querido, filho de
queridíssimo compadre cuja amizade já conheceu dois séculos, dois milénios e
mais de quatro décadas, simbolizou para mim a magia que se vivia naquele
momento, a força do amor que constrói relações, e atravessa o tempo e o espaço,
transpõe gerações e se materializa numa comunhão de seres que se querem bem.
Não pensei em te cumprimentar. A minha mão procurou espontaneamente a tua e eu
fui também um observador do gesto. Lembro que depois disso pensei comigo mesmo
“Pai da noiva, se segura, senão vai parecer Prefeito em dia de inaguração de
ponte!…”. Mas aquele cumprimento, simbolizou todos os outros que se limitaram a
sorrisos, e toda a minha felicidade por ver reunidos ali os nossos amigos e os
amigos dos noivos, as pessoas que nos amam, a celebrar em conjunto a alegria e
a vida. Você simbolizou tudo isso e o nosso aperto de mão selou essa energia
solar.
A terceira razão, foi a extraordinária lição de fonética e fonologia com que
você nos brindou. Confesso que para mim foi uma verdadeira revelação, não só o
seu interesse pelo tema, como as extraordinárias sutilezas da teoria, para mim
quase completamente desconhecida, e ainda a abordagem multi-linguística,
avançando pela articulação anglo-saxónica!... Para além de ser surpreendente e
gratificante ver a sua coerência apaixonada pela matéria, é um assombroso mundo
que se abre para mim...
At last
but not at least, saber que profissional e financeiramente a sua vida e da
Melissa, está mais segura, mais confortável, mais realizada. Quando gostamos de
alguém, saber das suas vitórias é tão bom como perceber as nossas. Ficamos
muito felizes por vocês. E apesar de não sermos ricos (às vezes parece
diferente, mas a verdade é que, biblicamente, ganhamos o pão com o suor dos
nossos rostos), queremos que você saiba que pode sempre contar connosco num
momento de aperto. Mesmo. Não é demagogia. E esperamos que você nunca se acanhe
de partilhar connosco não só os bons, mas também os maus momentos.
Finalmente, escreva sempre que der vontade. E apenas quando der vontade. Essas
são as palavras que a gente gosta de receber. Não as de obrigação.
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