quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Entre muito livro, fotografias, documentos, pinturas e objetos colecionáveis deixados pelo meu filho, ainda desarrumados porque as obras da sua casa não estavam terminadas, e que procuro organizar, tenho encontrado muita coisa de interesse.

Hoje vai um texto, que considero muito bem escrito por um jornalista/escritor, Victor Mendanha (1941-2011), cujo nome me era totalmente desconhecido.

Victor Mendanha foi chamado em 1961 para cumprir o serviço militar em Angola, onde decidiu ficar, trabalhando em vários jornais. Esteve ainda em Moçambique, regressou a Angola pós- independência, simpatizante do MPLA que o prendeu e o obrigou a regressar a Portugal em 1977.

Texto dedicado, hoje, por mim, sobretudo àqueles que vivenciaram África, e sei que vão fazer suas as palavras do escritor.

 

XÊ  LUANDA! . . .        VOCÊ  É  MESMO  A  MINHA  TERRA

                             (VICTOR MEDANHA)


 

Já há muito tempo que estava para desabafar contigo, Luanda., Mas sentia uma vergonha boa de namorado que sabe ir receber um sim, mas prefere gozar o prazer desse momento devagarinho. Para ti  é novidade, o eu ter nascido longe, no quente Alentejo. Terra em que o Sol, igual ao teu, faz também, gretar com o seu tórrido calor, o chão que é o mesmo chão em que te ergues. E as gentes, Luanda, como são parecidas com as tuas!  Morenas de face, rijas de corpo, em ambas se notam os riscos de suor que o trabalho árduo faz cair pela testa.  Vou-te fazer uma confidência, mas não f'iques zangada... lá...  Olha... Eu, quando cheguei, não gostava de ti. Sentia uma coisa cá dentro a roer... a roer. Maldito bicho aquele!... Não me largava nem me deixava dormir... Vê lá tu que até o Mussulo, a tua ilha encantada, me parecia feio. Estive mesmo para voltar pelo mesmo caminho. Sentiria talvez a troça de quem nunca te quis conhecer. Mas deixá-lo... ao menos tornaria a beber e saborear a água de minha aldeia por cocharro de cortiça. . . Ao menos tornaria a pescar barbos no Guadiana. . . Ao menos sentiria renovado prazer da sesta dormida  à sombra retemperadora da azinheira. E então Luanda, quando me lembrava disto virava-me e revirava-me na cama solitária onde se perdiam as minhas esperanças de dormir. Mas tu ias-me perdendo, maliciosa e docemente, como prendem os braços macios das mulatas.

Devagarinho, de mansinho. . . dei por isso quando era tarde. Estava eu em cima no terraço da Fortaleza, olhando para o horizonte onde se perde o teu casario, quando me deu para filosofar. E reparei que te aceitava melhor. Tu para mim, já eras a cidade onde eu ganhava o meu pão. Fiquei mais calmo, mas tremente. . . Talvez fosse devido à fresca brisa que, àquela hora, começava a soprar do mar! ? ­ Talvez! ?. . . A pouco e pouco, este sentimento, indefinido ainda, consolidou-se sem eu fazer nada para que isso acontecesse. A água da f'onte de minha aldeia foi esquecida pela do Bengo, que parece nisto de saudades e a sombra frondosa de um imbondeiro fez-nos varrer da memória a da minha azinheira. Dei por mim a pescar no Cuanza, sem me lembrar sequer do Guadiana,  que continuava a correr longe. E a partir daí, Luanda, aconteceram-me coisas maravilhosas. Dia a dia apercebi-me de quem tu eras. Da tua força prosaicamente traduzida por mais de 300 prédios construídos por ano. Da tua  energia; demonstrada nos 200..000.000 Kw/h. que consomes em cada doze meses. Da tua beleza, evidenciada pela Natureza, que sempre te deve ter amado. E então embriaguei-me por ti.  Perdi noites nas rebitas dos subúrbios   que acabam no outro  dia, quando o sangue fica em fogo e os olhos das mulheres fazem convites felinos de amor. Rebolei-me nas  areias das tuas praias de sonho e mergulhei no azul do acolhedor mar que vem suplicar favores a teus pés. Comi com gula o teu churrasco e a tua moamba Saboreei o teu ananás. Senti nos meus lábios o sumo do coco e deitei-me à sombra das f'olhas nervosas dos coqueiros, lá na ilha do Mussulo, na tua ilha encantada, cuja beleza me era indiferente e agora fico horas e horas, a verchimbicar” um pescador de samba, na sua canoa, em prodígio de equilíbrio. Exulto de alegria quando passo por uma rua e vejo uma casa térrea ceder lugar a um gigante de cimento. Descanso vendo, de um dos teus miradouros, o sol mergulhar no Oceano. Gozo a alegria dos teus mercados e a frescura dos teus parques. E, como muitos dos teus filhos, vou de vez em quando ao aeroporto ver quem chega da Metrópole. Sem medo de uma caída de saudosismo. Noto até que os que chegam trazem a pele branquinha, e perderam lá na Europa, o à vontade de andarem em mangas de camisa. Até dei por mim torcendo por um do teus clubes, numa tarde de futebol nos Coqueiros. Não sei como foi isto... mas gosto de ti, das tuas coisas boas, critico os teus defeitos... foi precisamente ao fazê-lo pela primeira vez que conheci o meu sentimento por  ti. Desejava que fosses mais perfeita mas só queremos que sejam melhores as pessoas e as coisas de que gostamos... Foi para te dizer tudo isto que te pedi para me escutares. Fiquei contente por o teres feito. Enquanto falei contigo até parece que tudo em ti parou para me dares atenção. A tua vida palpitante de trabalho e movimento próprios do dia a dia de uma grande cidade, acalma progressivamente, neste momento. São seis horas da tarde. O perfil exótico das ramagens dos mamoeiros dos quintais, esbatem-se no azul escuro dos céus, enquanto o dever cumprido se estampa no  rosto dos que procuram o lar.                            

Lá em baixo, na Marginal, as folhagens das palmeiras reais murmuram segredos que ninguém sabe traduzir. As luzes da cidade espalham-se na baía. Os automóveis, mais parecendo pirilampos gigantes, rasgam as tuas ruas com a luz dos faróis. O dia cai, Luanda! A calma das noites tropicais convida aos sentimentos quentes de afetos.

   XÊ  LUANDA! . . .        VOCÊ  É  MESMO  A  MINHA  TERRA

 

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