quinta-feira, 26 de setembro de 2024

 

1.- Origem do nome Amorim

 O sobrenome Amorim surgiu na Península Ibérica, originado a partir do latim "amabilis", que quer dizer "amável". Assim, o significado do nome Amorim é "local dos amantes" ou mesmo "local de amar". Amorim deriva do Latim, e significa local de namoro/namorados. Os sobrenomes/apelidos portugueses ''Amorim" e "Morim" têm origem nesta freguesia antiga, e estão entre os nomes mais comuns na cidade, mas em especial nesta freguesia.

Amorim é  uma zona localizada no município de Póvoa de Varzim, em Portugal, mas acredita-se que a família Amorim tenha surgido na região espanhola de mesmo nome, na região da Galiza. Em Portugal, os primeiros a terem esse sobrenome teriam sido habitantes da zona de Amorim. A teoria mais aceita é que o nome Amorim seja de origem espanhola e que tenha chegado a Portugal devido à história dos dois países que, diversas vezes, estiveram sob o mesmo governo. Um dos registros ocorre durante o reinado de D. Joao I, quando o galego Hilário de Amorim, senhor da Torre de Amorim, se fixou em Ponte de Lima.

Assim como todas as famílias europeias antigas, a família Amorim também possui seu brasão. Este é de cor vermelha e possui o desenho de cinco cabeças mouras decapitadas, o que leva a conclusão de que a família Amorim esteve envolvida na guerra de reconquista, na expulsão dos mouros da Península Ibérica.


Amorim é uma antiga paróquia, que aparece pela primeira vez no século XI. É popular na Póvoa de Varzim devido ao seu pão, caracteristicamente consumido a altas temperaturas, logo após ser cozinhado - a Broa de Amorim.

Paróquia muito antiga que se estendia até ao mar. O nome da Paróquia de Santiago de Amorim aparece pela primeira vez em 1033. 0 Censual de Braga regista-a então sob o titulo "De Santo Jacobi de Amorim". Note-se contudo que Varzim era, desde a fundação do condado de Portugal, um vasto território feudal com autonomia administrativa e militar, uma honra de cavaleiros, abarcando todo o território desde a costa aos montes de Laundos e Terroso. Após o conflito dos cavaleiros da Honra de Varzim com Sancho I de Portugal, boa parte do território de Varzim é incorporado na Terra de Faria.

A área é, contudo, habitada desde épocas pré-históricas, como evidenciam os topónimos Leira da Antas (entre Terroso e Amorim) e Montinho, Amorim de Cima, que terão origem na existência de mamoas ou antas pré-históricas.


2.- Mais um pouco sobre  FGA

 Entrevista do jornalista do Expresso, em 2000.Valdemar Cruz ao autor de “Aprendiz de Selvagem”Dr. Costa Carvalho,

 O Filho do Amazonas 

A pretexto de um mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros, Costa Carvalho, 66 anos, ensaísta e ex-director dos principais jornais diários do Porto, acaba de publicar Aprendiz de Selvagem – O Brasil na Vida e na Obra de Francisco Gomes de Amorim (Campo das Letras). São 747 páginas destinadas a resgatar a memória de um homem responsável por uma torrencial produção literária com forte inspiração nos problemas da escravidão, na emigração brasileira e no exotismo da selva amazónica.

Mas se hoje alguém reconhece o nome deste escritor oitocentista, com quem o romantismo português está em divida, e apenas pela quase inacessível e monumental obra Memorias Biográficas de Almeida Garrett. Da glória do seu tempo já pouco resta, apesar do imenso espólio revelado por Costa Carvalho e agora disponível para outros estudos na Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim.

O que mais o surpreendeu ao descobrir a personalidade e a obra de Gomes de Amorim?

É preciso dizer que todo este trabalho nasce graças a uma sugestão de Arnaldo Saraiva, o meu orientador no primeiro mestrado de Estudos Portugueses e Brasileiros, iniciado no ano lectivo de 1995/96. Na altura, eu pouco sabia acerca de Gomes de Amorim, mas aceitei este desafio acima de tudo por se tratar de uma figura obscura, que não me dizia nada. O que mais me surpreendeu, para lá da sua vida de aventureiro, foi o facto de, tendo partido para o Brasil aos 10 anos, não seguir o percurso normal do emigrante que vai a procura da árvore das patacas. Regressa nove anos depois, com uma apetência cultural que considero única na literatura portuguesa. Quando parte, é quase analfabeto. Quando regressa, inicia um percurso fantástico, sem nunca ter frequentado uma escola.

Como é que foi possível essa transformação?

Há um momento decisivo, quando, em plena selva amazónica, descobre o poema Camões, de Almeida Garrett, juntamente com outros livros velhos, em casa de uma família indígena, dentro de um cesto com folhas de bananeira brava. Isto acontece em 1840, e Gomes de Amorim faz um esforç0 tremendo para ler o livro. Quando o consegue, é uma revelação,

e passa a olhar para a Amazônia com um olhar feito de poesia. Cinco anos mais tarde, ainda mal sabe escrever, mas dirige-se a Garrett por carta, pedindo-lhe para ficar ao seu serviço. É uma carta horrível, cheia de erros de português. O interessante e constatar que Garrett, apesar de não o conhecer de lado nenhum, responde-lhe um ano depois, o que leva Gomes de Amorim a ver nessa resposta um apelo a que regresse a Portugal. Esta e uma relação extraordinária, porque acaba por ser esse rapaz, nascido em A-Ver-o-Mar, a acompanhar até a morte e a fechar os olhos do grande Garrett.

Essa relação com Garrett é pelo menos invulgar e proporciona as Memórias Biográficas, que Gomes de Amorim tem o cuidado de não chamar biografia...

O modo como tudo começa é que é fantástico. Depois da troca de correspondência, em 7 de Julho de 1846, uma terça-feira, Gomes de Amorim apresenta-se em casa do escritor. O criado João comunica a Garrett que está lá fora um rapaz vindo do Brasil. Garrett recebe-o de imediato e, em 1852, a pedido de uma editora alemã, nomeia-o seu biógrafo oficial. Porém, entre 1846 e 1849 quase não tiveram contacto. Gomes de Amorim passa por vários ofícios, entre os quais o de chapeleiro, e depois começa a escrever umas poesias patrióticas e republicanas. Em Agosto de 1849, é-lhe promovido um jantar de homenagem, presidido por Garrett. Nessa altura, restabelecem contacto, e a partir daí Gomes de Amorim é de uma dedicação total ao escritor.

Garrett vê nele qualquer coisa de especial. Há um pormenor elucidativo: como recebia muita correspondência, Garrett, de tempo a tempos, deitava fora maços de cartas; mas guardou desde início as cartas boçais enviadas por Gomes de Amorim. 

Mas essa relação não é o objecto do seu estudo, que aponta claramente para outras latitudes. É curioso que comece o livro com uma referência ao Evangelho Segundo Sao João, quando escreve: «No principio era o preto.» No final diz que a «a carne fez-se verbo». Pelo meio deixa claro que a relação com o negro, o problema da escravatura, constitui um dos pilares da obra de Gomes de Amorim...

As palavras não têm memória, embora a memória seja feita de palavras. E as palavras de Gomes de Amorim circulam muito em torno da figura do negro. Essa foi uma luta que travou até ao fim da vida. Opôs-se a todo o gênero de escravatura e a qualquer atentado contra a vida e a existência do indivíduo que estava condenado a ser escravo no Ocidente, dito cristão e civilizado. Ao longo da sua vida, tem situações dolorosíssimas. Fica em estado de choque pelo modo como são tratados os negros no Amazonas. Talvez seja o único que, em meados do século XIX, ataca frontalmente todos os negreiros. Longe de ser apenas o biógrafo oficial de Almeida Garrett, Gomes de Amorim acaba por ser vítima dos seus dois grandes amores: o Brasil e Garrett. E vítima por

parte do Brasil porque foi votado a um completo esquecimento, ao ponto de nem sequer figurar no rol de escritores de temática amazónica; isto apesar de obras como O Cedro Vermelho, Ódio de Raça, Viagens no Interior do Brasil, Os Selvagens ou O Remorso Vivo. Quanto a Garrett, é sabido que a relação entre os dois ofuscou tudo o mais. 

Quando é que Gomes de Amorim começa a escrever? 

É preciso ter em consideração que ele possuía uma memória fabulosa. Ainda adolescente, já sabia de cor Os Lusíadas. Tratava-se de uma personagem que era uma autentica folha em branco. Era o verdadeiro selvagem. Antes de ser escritor, era um bom conversador. Nesse sentido, entra pela oralidade e só depois, a partir dos 30 anos, e que começa a escrever. O que espanta e como, tendo regressado do Brasil com apenas 19 anos, mantem viva a memória de tudo quanto viveu. 0 vocabulário utilizado para descrever a flora da Amazónia é de uma precisão fantástica. Lê-se aquilo e respira-se a selva brasileira, os seus mitos, as suas lendas...

Ficou por tratar um espolio muito vasto...

Sim, o que toma o estudo da sua obra muito difícil. Oscar Lopes, no Dicionário do Romantismo Português, diz que Gomes de Amorim é mais importante do que aquilo que se poderia pensar e que era importante alguém fazer um estudo que o tomasse mais legível. Este 1ivro poderá ser um contributo, mas há ainda muita coisa dispersa. Os problemas começam logo porque nunca foi um homem com dinheiro. Quando morreu, o seu espólio viajou por vários continentes. A maior parte da documentação ficou na posse do filho, que a tem disponibilizado aos investigadores. Agora foi tudo oferecido a Bib1ioteca Municipal da Póvoa de Varzim, onde passara a ser possível consultar todos os manuscritos, em que se incluem as suas memórias e as que escreveu sobre Alexandre Herculano e Latino Coelho. Há ainda poemas, correspondência, algumas dezenas de comédias inéditas, coleções de jornais, coleções de folhetins recortados dos jornais da época e infindáveis autógrafos... 

Que conclusões é que tira desse espólio? 

Ainda agora, depois da publicação do livro, estão a aparecer novos documentos. Tenho a esperança de que possam surgir mais achegas, mas no essencial o que ficará é a imagem de Gomes de Amorim como uma figura preponderante do romantismo português. A partir de 1858 e até a sua morte, em 1891, quase não sai de casa, devido a um espasmo cerebral, mas continua a ser procurado anos a fio por toda a gente, da literatura as artes plásticas. Uns vão apenas para conversar, outros querem prestar-lhe homenagem, e um terceiro grupo vai claramente à procura de opiniões e conselhos para o modo como devem desenvolver as suas obras. Isto acontece com vários pintores da época, para quem era essencial conhecer a opinião de Gomes de Amorim.

26/09/2024

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Entre muito livro, fotografias, documentos, pinturas e objetos colecionáveis deixados pelo meu filho, ainda desarrumados porque as obras da sua casa não estavam terminadas, e que procuro organizar, tenho encontrado muita coisa de interesse.

Hoje vai um texto, que considero muito bem escrito por um jornalista/escritor, Victor Mendanha (1941-2011), cujo nome me era totalmente desconhecido.

Victor Mendanha foi chamado em 1961 para cumprir o serviço militar em Angola, onde decidiu ficar, trabalhando em vários jornais. Esteve ainda em Moçambique, regressou a Angola pós- independência, simpatizante do MPLA que o prendeu e o obrigou a regressar a Portugal em 1977.

Texto dedicado, hoje, por mim, sobretudo àqueles que vivenciaram África, e sei que vão fazer suas as palavras do escritor.

 

XÊ  LUANDA! . . .        VOCÊ  É  MESMO  A  MINHA  TERRA

                             (VICTOR MEDANHA)


 

Já há muito tempo que estava para desabafar contigo, Luanda., Mas sentia uma vergonha boa de namorado que sabe ir receber um sim, mas prefere gozar o prazer desse momento devagarinho. Para ti  é novidade, o eu ter nascido longe, no quente Alentejo. Terra em que o Sol, igual ao teu, faz também, gretar com o seu tórrido calor, o chão que é o mesmo chão em que te ergues. E as gentes, Luanda, como são parecidas com as tuas!  Morenas de face, rijas de corpo, em ambas se notam os riscos de suor que o trabalho árduo faz cair pela testa.  Vou-te fazer uma confidência, mas não f'iques zangada... lá...  Olha... Eu, quando cheguei, não gostava de ti. Sentia uma coisa cá dentro a roer... a roer. Maldito bicho aquele!... Não me largava nem me deixava dormir... Vê lá tu que até o Mussulo, a tua ilha encantada, me parecia feio. Estive mesmo para voltar pelo mesmo caminho. Sentiria talvez a troça de quem nunca te quis conhecer. Mas deixá-lo... ao menos tornaria a beber e saborear a água de minha aldeia por cocharro de cortiça. . . Ao menos tornaria a pescar barbos no Guadiana. . . Ao menos sentiria renovado prazer da sesta dormida  à sombra retemperadora da azinheira. E então Luanda, quando me lembrava disto virava-me e revirava-me na cama solitária onde se perdiam as minhas esperanças de dormir. Mas tu ias-me perdendo, maliciosa e docemente, como prendem os braços macios das mulatas.

Devagarinho, de mansinho. . . dei por isso quando era tarde. Estava eu em cima no terraço da Fortaleza, olhando para o horizonte onde se perde o teu casario, quando me deu para filosofar. E reparei que te aceitava melhor. Tu para mim, já eras a cidade onde eu ganhava o meu pão. Fiquei mais calmo, mas tremente. . . Talvez fosse devido à fresca brisa que, àquela hora, começava a soprar do mar! ? ­ Talvez! ?. . . A pouco e pouco, este sentimento, indefinido ainda, consolidou-se sem eu fazer nada para que isso acontecesse. A água da f'onte de minha aldeia foi esquecida pela do Bengo, que parece nisto de saudades e a sombra frondosa de um imbondeiro fez-nos varrer da memória a da minha azinheira. Dei por mim a pescar no Cuanza, sem me lembrar sequer do Guadiana,  que continuava a correr longe. E a partir daí, Luanda, aconteceram-me coisas maravilhosas. Dia a dia apercebi-me de quem tu eras. Da tua força prosaicamente traduzida por mais de 300 prédios construídos por ano. Da tua  energia; demonstrada nos 200..000.000 Kw/h. que consomes em cada doze meses. Da tua beleza, evidenciada pela Natureza, que sempre te deve ter amado. E então embriaguei-me por ti.  Perdi noites nas rebitas dos subúrbios   que acabam no outro  dia, quando o sangue fica em fogo e os olhos das mulheres fazem convites felinos de amor. Rebolei-me nas  areias das tuas praias de sonho e mergulhei no azul do acolhedor mar que vem suplicar favores a teus pés. Comi com gula o teu churrasco e a tua moamba Saboreei o teu ananás. Senti nos meus lábios o sumo do coco e deitei-me à sombra das f'olhas nervosas dos coqueiros, lá na ilha do Mussulo, na tua ilha encantada, cuja beleza me era indiferente e agora fico horas e horas, a verchimbicar” um pescador de samba, na sua canoa, em prodígio de equilíbrio. Exulto de alegria quando passo por uma rua e vejo uma casa térrea ceder lugar a um gigante de cimento. Descanso vendo, de um dos teus miradouros, o sol mergulhar no Oceano. Gozo a alegria dos teus mercados e a frescura dos teus parques. E, como muitos dos teus filhos, vou de vez em quando ao aeroporto ver quem chega da Metrópole. Sem medo de uma caída de saudosismo. Noto até que os que chegam trazem a pele branquinha, e perderam lá na Europa, o à vontade de andarem em mangas de camisa. Até dei por mim torcendo por um do teus clubes, numa tarde de futebol nos Coqueiros. Não sei como foi isto... mas gosto de ti, das tuas coisas boas, critico os teus defeitos... foi precisamente ao fazê-lo pela primeira vez que conheci o meu sentimento por  ti. Desejava que fosses mais perfeita mas só queremos que sejam melhores as pessoas e as coisas de que gostamos... Foi para te dizer tudo isto que te pedi para me escutares. Fiquei contente por o teres feito. Enquanto falei contigo até parece que tudo em ti parou para me dares atenção. A tua vida palpitante de trabalho e movimento próprios do dia a dia de uma grande cidade, acalma progressivamente, neste momento. São seis horas da tarde. O perfil exótico das ramagens dos mamoeiros dos quintais, esbatem-se no azul escuro dos céus, enquanto o dever cumprido se estampa no  rosto dos que procuram o lar.                            

Lá em baixo, na Marginal, as folhagens das palmeiras reais murmuram segredos que ninguém sabe traduzir. As luzes da cidade espalham-se na baía. Os automóveis, mais parecendo pirilampos gigantes, rasgam as tuas ruas com a luz dos faróis. O dia cai, Luanda! A calma das noites tropicais convida aos sentimentos quentes de afetos.

   XÊ  LUANDA! . . .        VOCÊ  É  MESMO  A  MINHA  TERRA

 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

 

Escrito em Maio de 2004

 

O  HUMANO  E  O  DIVINO

 

Desde o princípio que há os que acreditam e os que se negam a acreditar. Através dos tempos sempre apareceram uns quantos, metidos a intelectuais, que punham em dúvida a simplicidade do Divino, chegando até a quererem, não a crerem, que no princípio não existira Verbo, mas... mas... o que, então?

Dizia-se que o comunismo ateu, quando, ferozmente, abria uma porta de argumentação contra a religião, encontrava pela frente outras duas portas, fechadas. Batalhava, argumentava, e por fim abria uma delas. À frente lá estavam mais duas, e assim sucessivamente, sem nunca conseguir abri-las todas e “cientificamente” provar algo que materializasse o Divino.

Como tudo isto começou? Ninguém sabe. O Universo, dizem, há uns 15 a 18 bilhões de anos e a Terra há 4 ou 5. Será? Lá vem a velha pergunta: e antes disso?

Houve muitos materialistas ou humanizadores, entre eles Renan com o seu livro “A vida de Cristo”. Surge agora um outro, já com milhões de exemplares vendidos que, romanceando, vai deixando nos leitores a impressão de que, há dois mil anos, pouco mais terá acontecido do que um simples “vento de verdade” e quase de demagogia!

Como vende fácil a falsidade, a maledicência, o obtuso! Como as pessoas gostam de se iludir, procurando resposta para aquilo que os seus corações já conhecem mas a sociedade teima em escarnecer! Porque pôr em dúvida a Verdade só porque é mais fácil jogar a primeira pedra do que lutar por essa mesma Verdade?

Tem “profissionais” da Igreja que a desacreditam. Tem, sim. Muitos, infelizmente. Mas esses são simplesmente homens, fracos como qualquer de nós, que melhor fariam se tivessem enveredado por qualquer outra profissão.

A verdade é que a Verdade não depende dos outros. Depende unicamente de cada um, do modo como olha para dentro de si e para os outros.

Alguns dos chamados intelectuais gostam, uns, de a pôr em dúvida, pretendendo até com argumentos chamados científicos, o que é por demais simples, negá-la, outros de jogar com a incredulidade popular e enriquecer, baralhando as idéias daqueles que se querem ver baralhados.

O cristianismo atravessa uma fase difícil. Saímos há muito da sua primeira etapa: a caridade. Foi preciso um ateu nos vir dizer que praticar a caridade é humilhar o seu semelhante. Contraria São Paulo, mas os tempos de hoje são outros. Vivemos um capitalismo selvagem em que se permite que alguns bilhões de seres humanos vivam na mais absoluta miséria, para a seguir lhes acenarmos com dádivas de sobras e os comprometermos com os nossos interesses político-econômicos. Vendemos-lhes armas para que pratiquem os genocídios que entenderem atrás de miragens de riquezas que sempre vão parar nas mãos dos gananciosos fabricantes de morte.

Publicamos livros sensacionalistas que pretendem negar o Divino, porque é isso que vende.

Permitimos que se minta, se roube, se mate, se matem até inocentes ainda no ventre das mães porque estas não perceberam ainda quanto de divino tem o ser-se Mãe.

Permitimos tudo isto, porque é mais cômodo e financeiramente mais rentável, e continuamos a não querer dar ouvidos àquilo que podia, se deixássemos, sair espontaneamente de dentro de nós: o culto da Verdade.

A Verdade que nos diz que somos todos irmãos, que podendo haver ricos e pobres nenhum irmão deve ou pode viver na miséria, que em vez de assistirmos aos permanentes e diários genocídios, devíamos andar sempre de bandeira branca nas mãos, que enfim devíamos ser inocentes de espírito como são as crianças, puras. Quem mais disse ou pratica isto?

Foi esta a mensagem que Alguém nos deixou, e que morreu para defender a Palavra da Sua Verdade.

Não bastasse a força desta mensagem há toda a história contada em quatro diferentes Evangelhos que só deixa dúvidas a quem não quer ver, e sobretudo não quer comprometer-se.

Alhear-se e negociar com a Verdade, é, infelizmente, humano. Comprometer-se até às últimas consequências, isso sim, também é Divino. Essa é a diferença.

 

Rio, 9-mai-04

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

 

Muita coisa me tem acontecido desde que deixei o blog  vazio, praticamente desde Junho.

Depois disso simplesmente postei uma página da história do nosso filho Francisco, que nos deixou tão repentinamente que ainda não consegui recuperar o meu equilíbrio emocional.

O filho que tinha vindo viver conosco para nos ajudar neste nosso fim de vida!

Sobre o seu caráter e sua vida, mais tarde irei escrever alguma coisa. Por ora ainda estou incapaz.

 Hoje vou reproduzir a carta, um pouco longa, de um jovem, tranquilo e filósofo que, quando bem menino, dizia que um dia queria ser “cientista maluco” (!) que considero um monumento à arte de escrever. A seu pedido emito os nomes nela referida, que não diminuem o teor e a graça da escrita.


Carta aos padrinhos, agradecendo a mensagem que recebeu de parabéns no aniversário

 

Queridos padrinhos!


Quando nos encontramos pela última vez eu falei que ia tentar dar mais notícias, ia tentar me comunicar melhor. Então aqui estou eu me comunicando! É a primeira notícia que dou e faz pouco mais de 1 ano desde que nos vimos, eu sei. Levando em conta que eu acho que não escrevi nada nos últimos 35 anos, 1 notícia depois de 1 ano não me parece tão péssimo... Não é ótimo, mas é melhor do que 0 notícias em 34 anos.
E essa mensagem também serve como uma resposta à mensagem de feliz aniversário que me deram. Esse é um dos meus problemas com comunicação assíncrona: eu admito que não vi a mensagem no próprio dia do meu aniversário, vi apenas no dia seguinte, mas era um dia de semana que eu tinha que trabalhar, e não queria só responder "obrigado". Queria escrever uma resposta mais completa, mais complexa, mais elaborada (obviamente não tão grande quanto a que estou escrevendo agora, mas algo melhor do que só uma palavra), então decidi escrever no final de semana seguinte, que teria mais tempo. Aí tive combinações presenciais de aniversário e não tive tanto tempo para elaborar uma mensagem quanto gostaria, então fui postergando, e fiz isso até hoje. Se tivesse recebido os desejos de feliz aniversário ao vivo teria respondido ao vivo imediatamente, não precisaria elaborar muito, mas mensagem escrita tem que ser um pouco a mais, ainda mais pelo tempo que eu já tinha demorado para responder. Não só isso como depois de um certo tempo fica quase vergonhoso responder. Estou eu aqui respondendo o feliz aniversário 110 dias depois do meu aniversário. Talvez fosse melhor apenas não responder. E é uma bola de neve psicológica: quanto mais tempo passa mais eu sinto que a mensagem precisa ser mais elaborada e mais eu sinto que talvez não valha a pena responder. E o que normalmente acontece é que eu não respondo nada. E é o que eu normalmente teria feito: ignorado. Não que eu não me importe, mas talvez eu me importe demais, e talvez me importe da forma errada. Não sei explicar direito. Não sei se tenho muita culpa de como o meu cérebro escala paranóias, mas talvez tenha como tentar combater isso. E sei que os tios também não têm muita culpa pois quando decidiram ser meus padrinhos não sabiam o quão problemático eu viria a ser. Mas é isso. Esse é o afilhado que têm. Obrigado pelo desejo de feliz aniversário 110 dias atrás!

Então vamos por partes. Primeiro vamos falar das notícias e novidades.
Quando me despedi dos tios eu lembro que tinha por volta de 15 dólares na conta. A situação melhorou consideravelmente desde então. Comecei a trabalhar, a minha mulher ainda trabalhava, conseguimos juntar dinheiro, estamos mais confortáveis financeiramente, e agora parou de trabalhar para fazer o curso de animação gráfica que era o sonho dela! A situação que estava mais ou menos desesperadora um ano atrás agora está tranquila e com ótimas expectativas para o futuro! E essa é basicamente a única notícia de real importância que tenho a dar, que eu me lembre. Fora isso, nada de muito emocionante aconteceu, a vida só seguiu por um ano mesmo. Montamos a miniatura da Torre de Belém e a colocamos num móvel junto com umas plantas (meu apartamento é cheio de plantas, basicamente graças à “dona da casa”) e estava ali de enfeite até que um dia descobrimos que a Torre de Belém funciona perfeitamente para guardar o rolo de sacos plásticos que usamos para limpar a caixa de areia dos gatos. Imagino que isso deva ser ofensivo para algumas pessoas, mas no espaço limitado do apartamento minúsculo que temos temos que tentar juntar beleza com funcionalidade, e a Torre de Belém está lá guardando o rolo de sacos plásticos. Espero que isso não seja ultrajante demais que me faça perder a cidadania portuguesa!

Mas não venho aqui apenas dar notícias, venho também contar um pouco mais de mim para que possam me conhecer um pouco melhor. Então vou contar sobre a nossa última grande atividade juntos: o casamento da vossa filha! Mas vou contar da minha perspectiva! Afinal eu sou o personagem principal da história da minha vida. Eu vejo tudo com os meus olhos e interpreto tudo com o meu cérebro. E o que segue é o casamento interpretado por mim.

Já conversamos um pouco sobre o casamento quando estive aí, mas eu queria contar apenas mais dois detalhes.

O primeiro é o mais simples, provavelmente o mais insignificante no geral, mas no meu ponto de vista foi algo de uma magnitude imensurável. Quando a Inês andava de braços dados ao tio Gonçalo em direção ao altar todos os olhos os acompanhavam, todos de pé vendo o casamento realmente começar. A noiva e o pai estavam majestosos, o centro das atenções, e eu observei a caminhada de um lugar muito privilegiado: eu estava numa cadeira bem ao lado direito da passagem. Eu não os via há sabe lá Deus quanto tempo. O padrinho muitos e muitos anos, e a noiva ainda mais anos! Mas ali estavam eles. E depois de tanto tempo sem os ver, esse foi o momento do reencontro. Talvez não o momento mais oportuno para um reencontro, mas foi ali a primeira vez em talvez mais de uma década que o meu padrinho estava logo ali, a alguns centímetros de mim. E assim como para mim esse foi o momento do reencontro foi também para o padrinho, e num gesto de afeto ele me estendeu a mão, e em resposta eu estendi a mão, e ali, naquele momento mesmo que não ideal, depois de décadas, um aperto de mão, um contato. E isso foi um dos momentos que mais me marcou no casamento. E tudo até então parece um lindo conto do reencontro de um afilhado com um padrinho depois de muito tempo. E era para ter parado por aí, mas é nesse momento que o meu cérebro começa a pensar mais do que deveria...

Foi um gesto de carinho, e foi muito emocionante para mim. Mas depois de alguns segundos, quando a emoção do momento passou um pouco, o meu ego não conseguiu se segurar completamente. O que realmente aconteceu foi o que meu padrinho apertou minha mão, mas o que também aconteceu foi que o pai da noiva apertou a MINHA mão. Só a minha. Mais ninguém teve esse privilégio (obviamente que estou apenas contando meus iguais: os insignificantes da platéia, é claro que o pai da noiva apertou a mão de muita gente que era mais importante no evento, mas não vou me comparar a eles - a graça de ser o melhor jogador de futebol da minha rua é apenas me comparar com as pessoas da minha rua, não vou tentar me comparar com o Messi, com o Cristiano Ronaldo, ou com o Neymar). Então eu fui imediatamente promovido de "apenas mais um dos espectadores" para "o espectador que apertou a mão do pai da noiva", o que não muda muita coisa, minha insignificância no evento continuou tão insignificante quanto a de qualquer um dos espectadores. Os astros do evento eram outros, disso não há dúvidas. Porém - e digo novamente: esta é a história contada do meu ponto de vista - nada muda o fato de que o pai da noiva apertou a minha mão, e apenas a minha mão. No começo de um concerto de uma orquestra o maestro aperta a mão do primeiro violino, e apenas do primeiro violino. Eu ali me senti o primeiro violino dos espectadores. Não que eu saiba tocar o violino (ou qualquer outro instrumento), mas isso não vem ao caso!

E eu falando aqui parece que o tio virou para mim, estendeu o braço, e tivemos um firme aperto de mãos como se estivéssemos fechando um bom negócio, mas na verdade o que aconteceu foi que ao passar ao meu lado, muito sutilmente ele chegou um pouco a mão para perto de mim, e tivemos um contato, um pequeno aperto de mãos, uma troca de olhares, e um sorriso. Mas lembro novamente que esta é a história vista pelos meus olhos, e pelos meus olhos não há dúvidas de que o tio-padrinho apertou minha mão. Porém, como foi algo bem sutil, não creio que muitos tenham visto, e quem viu bem possivelmente ignorou o acontecido, mas não eu. Esse foi o auge do casamento na minha história. Eu já era casado quando entrei e continuei casado quando saí, então para mim nada mudou. Mas esse momento foi a primeira e única vez que o meu padrinho apertou minha mão enquanto acompanhava a noiva ao altar num casamento da filha, então foi bem marcante!

Depois disso tive um re-reencontro um pouco melhor com o tio durante o casamento (mas não enquanto a noiva estava andando em direção ao altar) com direito a abraços, reencontrei também a tia, a outra filha, e tivemos uma conversa um pouco melhor, mas o casamento foi realmente muita correria para os participantes principais do evento, então o re-re-reencontro de verdade foi quando fui a vossa casa passar uns dias e conseguimos conversar de verdade e ter um tempo de qualidade juntos. Mas isso não preciso contar muito pois estávamos lá conversando em pessoa.

O segundo detalhe do casamento é algo que conta um pouco sobre um interesse meu que poucos sabem e que acredito que não seja interesse de muitos, mas o que eu posso fazer a respeito? Não sou eu que decido como meu cérebro funciona, então eu só aceito. Já aviso aqui que o resto desta "carta" vai ser possivelmente confuso, terá um quantidade considerável de termos técnicos, talvez seja um pouco perturbador, e talvez os faça repensar muitas coisas, mas por favor tente continuar lendo o máximo que conseguir, no final tudo fará sentido e espero ter demonstrado um pouquinho desse maravilhoso e confuso mundo que é o meu cérebro.

O meu interesse, que admito que é algo que até eu acho meio estranho, é fonética e fonologia. Um pouco de história sobre esse interesse: há muito, muito tempo atrás, quando eu era apenas um garotinho ainda, um amiguinho meu do colégio tinha uma mãe que era fonoaudióloga, e uma das coisas que ela fazia era ensinar crianças surdas a falar. O quão fantástico é isso? E como é possível isso? Como uma pessoa que não ouve consegue saber como falar? Pois bem, foi aí que começou meu interesse. Um bom tempo depois, já na faculdade, quando eu e um grupo de amigos tentamos criar uma empresa, um dos participantes (que era amigo de faculdade da minha irmã) tinha pais surdos. A mãe ficou surda, então ela aprendeu a falar enquanto ainda ouvia, mas o pai sempre foi surdo e conseguia falar consideravelmente bem. E conversar com eles foi mais um momento da minha vida que ativou esse interesse pelo aparelho bucal como instrumento sonoro humano.

Agora que temos já uma breve história do motivo do meu interesse - e espero que não tenham dormido de tédio ainda - devem estar se perguntando: como raios isso está relacionado ao casamento? Não posso responder ainda, preciso explicar mais algumas coisas!

Eu vos apresento: a língua portuguesa!

Vou tentar fazer um experimento aqui. Talvez não dê certo, não posso prometer nada! Mentalizem o nome da noiva: Inês... Inês. "Falem" mentalmente (ou até não mentalmente, pode falar alto) esse nome. Essa é a palavra importante do momento. Agora, se você é como eu, carioca, você provavelmente falou "Ineix". É, eu sei, não é exatamente o nome que os tios escolheram, mas é assim que eu falo. E lembrando novamente que tudo aqui é contado do meu ponto de vista, o que faz com que essa seja a pronúncia correta do nome! Nós cariocas gostamos de colocar um I depois do E, e o S vira um X, o que faz com que "nós cariocas" vire "noix cariocax". O que eu acredito que vocês tenham falado é "Inêx". Apesar de não ter um I depois do E, o S também vira um X.

Acho que até agora é tudo mais ou menos simples, mas já vou pedir desculpas pois agora vai tudo ficar consideravelmente mais complicado.

Vamos classificar alguns fonemas de consoantes, e a forma como classificamos é basicamente em 3 qualidades do fonema:
- o modo de articulação, que é basicamente como o som é criado
- o ponto de articulação, que é basicamente onde na boca o som é criado

- e o modo de fonação, que é se as cordas vocais vibram ou não durante a articulação

(estamos fazendo tudo mais ou menos por alto aqui, não precisamos ser muito técnicos, mas precisamos ser um pouco...)
Os três exemplos a seguir não são exatamente necessários para a idéia geral mas são válidos para um melhor entendimento:
- A consoante M é uma consoante nasal bilabial sonora: nasal (o ar passa pelo nariz) bilabial (articulada com os dois lábios) sonora (as cordas vocais vibram) - o fonema é criado com os dois lábios se juntando, impedindo a passagem de ar pela boca, deixando o ar passar pelo nariz, enquanto as cordas vocais vibram.
- A consoante T é uma consoante oclusiva dental surda - oclusiva (o ar não passa) dental (articulada com a língua e os dentes) surda (as cordas vocais não vibram) - o fonema é criado com a língua encostando nos dentes superiores para impedir a passagem do ar pela boca, enquanto as cordas vocais não vibram.
- A consoante J é uma consoante fricativa palatoalveolar sonora - fricativa (o ar passa por um canal estreito) palatoalveolar (articulada com a língua e os a região entre o palato e os alvéolos - a parte da boca logo atrás dos dentes antes do céu da boca) sonora (as cordas vocais vibram) - o fonema é articulado com o ar passando por um canal estreito criado pela aproximação da língua com a região entre o palato duro e os alvéolos dentários. Ok, eu admito, essa parece muito assustadora, mas é só falar o nome "João" e pensar bem em como está a posição da língua durante o J.

Na classificação temos o modo de articulação, o ponto de articulação, e o modo de fonação. O modo de articulação existem alguns, o ponto de articulação existem vários, mas o modo de fonação existem apenas dois: ou as cordas vocais vibram ou elas não vibram. Então podemos juntar várias consoantes em pares, sendo uma sonora (vibram) e outra surda (não vibram). Uma forma interessante de perceber se as cordas vocais vibram ou não é colocar as pontas dos dedos levemente pressionando contra a garganta e falando a palavra beeem deee vagaaar. Mas também prestem atenção em como a boca, os lábios e a língua estão posicionados durante a articulação das consoantes.
Um exemplo desses pares é V e F, como na palavra FAVA. Temos o F, que é uma consoante surda, e o V que é uma consoante sonora, sendo as duas fricativas (canal estreito) labiodentais (lábio e dente). Preste atenção nos dois pares de fonemas e como a estrutura bucal e a posição da língua são iguais entre V e F, a única diferença é a que em uma as cordas vocais vibram e na outra não. Um outro par muito importante para o resto da história é o par do J (consoante sonora) e o X (consoante surda), como nas palavras JÁ e CHÁ. Veja novamente que a única diferença é que uma é sonora e a outra é surda.
Outros pares de consoantes que diferem apenas no modo de fonação (sonora/surda): T e D; P e B; C e G; S e Z.
O próximo passo agora é falar de uns detalhes mais obscuros do idioma português, coisa que todos fazem mesmo sem saber que fazem, e ouvem sem achar estranho, é tudo normal, mas fonemas mudam! O fenômeno que estou falando se chama Assimilação Regressiva do Vozeamento, e o que isso quer dizer? Assimilação quer dizer que durante a fala alguns fonemas se juntam de alguma forma. Regressiva quer dizer que o fonema posterior influencia o fonema anterior. Vozeamento quer dizer que o atributo do fonema que é assimilado é o modo de fonação (uma consoante "sonora" também pode ser chamada de "vocalizada").
Os exemplos a seguir vão começar com "as", e o fonema que precisamos prestar atenção é o do S de AS. Se falarmos "as pessoas" o S vai ter som de X, até aí acho que já concordamos. Mas se falarmos "as mulheres" o S de AS vai ter som de J. E isso se dá pela influência do M (consoante sonora) no fonema "normal" do S que é o X (consoante surda) transformando em J (consoante sonora com mesmo modo e ponto de articulação que o X). Isso é a Assimilação Regressiva do Vozeamento: a consoante anterior S assimilou o modo de fonação sonoro da consoante posterior M. (Uma observação curiosa aqui para um outro tipo de assimilação regressiva é que se falarmos "as amoras" o S de AS vai ter som de Z...)

E agora com certeza estão se perguntando: o que raios que tem os fonemas com o casamento? Digo que estou chegando lá, mas ainda falta uma coisinha!

Agora vamos analisar a Assimilação Regressiva do Vozeamento usando o nome da noiva: Inês. Se falarmos "Inês foi" ou "Inês quer" o S de Inês vai ter som de X, mas se falarmos "Inês voltou" ou "Inês gosta" o S vai ter som de J. E para nós essa mudança no fonema é super normal, natural, automática, e não precisamos de esforço algum para falar ou entender, mas a mudança no fonema acontece.

Mas sabe pra quem essa mudança de fonema não é tão natural e automática? Para os ingleses! (apesar de que eles têm as próprias assimilações no idioma deles).

E é assim que o meu interesse por fonologia é relevante na minha experiência durante o casamento! Os ingleses não sabem falar o nome da Inês de forma nativa dentro de um contexto fonético complexo onde uma consoante não pode ser articulada de forma independente dentro de uma sequência. É um absurdo! Mas mais engraçado do que isso é que fica evidente que alguns optaram pela articulação do S sonoro como J e uns pela articulação surda como X, independente do fonema que vem a seguir, e deve ser baseado no momento em que eles aprenderam o nome e como o nome os foi apresentado. Já que nós falamos o nome de formas sutilmente diferentes dependendo do fonema que vem a seguir. E talvez até um pouco melhor do que isso é que os portugueses falando inglês fazem a assimilação regressiva mesmo em inglês! Então um português que fale por exemplo "Inês was", como o W é uma semivogal (ou seja, é sonora), transforma o S de Inês de X para J. Isso é fantástico! Pelo menos para mim, e novamente lembro que este é o conto do casamento visto pelos meus olhos, ouvido pelos meus ouvidos e interpretado pelo meu cérebro. Acredito que os votos de casamento tenham sido lindos, e que as memórias que os amigos compartilharam tenham sido maravilhosas, mas a assimilação regressiva do vozeamento foi a coisa que mais me marcou em todos os discursos.

Alguns chamam esse meu interesse e conhecimento por fonologia "cultura inútil", mas muito pelo contrário! E digo mais, já me foi útil até durante a faculdade de engenharia mecânica, e vou compartilhar aqui o conto que não apenas demonstra mais desse meu interesse como conta um momento engraçado da minha vida: o meu professor de mecânica dos fluidos estava um dia dando uma bronca na turma pois todos os alunos queriam apenas decorar as fórmulas físicas e resolver a prova como se fossem uma calculadora, e decorar a fórmula não é a parte mais importante, a parte importante é sabendo a fórmula entender como ela funciona, por que ela funciona, e a teoria por trás da fórmula. E para exemplificar que os alunos eram todos programados para aceitar regras e não tentar questionar ou entender o por que das regras ele deu um exemplo que todos nós (pelo menos na educação do Brasil) conhecíamos, que é a regra de "M sempre antes de P ou B" (que é uma regra que dita apenas que não se usa N antes de P ou B, e que não se usa M antes de qualquer outra consoante). O professor apenas falou que essa regra é uma regra que todos nós aceitamos e seguimos e perguntou se alguém sabia o motivo dela, as razões por trás da regra. E bem, eu só levantei a cabeça e respondi: "quando uma consoante oclusiva é precedida por uma consoante nasal elas seguem o mesmo ponto de articulação". Os alunos não só não entenderam a explicação como bem provavelmente não entenderam metade das palavras, o professor aceitou a resposta e eu recebi um bônus na nota da prova! Ou seja, conhecimento muito útil! E a explicação não é de todo um absurdo: quando uma consoante oclusiva (que obstrui completamente a passagem de ar) vem depois de uma consoante nasal (que obstrui a passagem de ar pela boca mas deixa o ar sair pelo nariz) o ponto de articulação (posição da boca, lábios e língua) é a mesma. E, na língua portuguesa o M é a nossa consoante nasal bilabial, e P e B são as nossas consoantes oclusivas bilabiais (uma surda e a outra sonora). Mas o mais interessante é que o N que usamos antes de todas as outras consoantes não é sempre o mesmo!

Por exemplo:

- na palavra "andar" o N é articulado com a língua no dente pois vem antes de um D

- na palavra "angústia" o N é articulado com a base da língua contra o palato mole pois vem antes de um G

- na palavra "antigo" em português do Rio de Janeiro ("anTCHIgo") o N é articulado ali no ponto entre o palato e os alvéolos pois vem antes de um TCH que é um X oclusivo
- na palavra "ansiedade" o N é articulado não com a ponta da língua mas com a lâmina da língua contra os alvéolos pois vem antes de um S (que não é uma consoante oclusiva, e sim sibilante, então as regras não são sempre tão claras, mas neste exemplo deveria funcionar)

Isso é tudo muito fascinante!

E é isso, agora vou parar de falar de fonética antes que eu tenha que enviar essa mensagem em três volumes de capa dura. Quando eu começo a falar disso eu me empolgo! Mais uma curiosidade sobre o seu afilhado: enquanto algumas pessoas cantam no chuveiro (que por algum motivo parece ser bem comum) eu pratico fonemas incomuns (para mim) no chuveiro. Cada maluco com sua maluquice.

Mil beijos aos tios, às filhas, e ao neto,

Do afilhado meio sumido e meio louco,

14/08/23

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Resposta do Padrinho

 

Querido Francisco,


Por muitos anos que viva não vou esquecer este seu email, e por várias razões.

A primeira é que você corajosamente admite as suas falhas em manter as comunicações ativas como reflexo dos afetos reais que o unem às pessoas. E para ser sincero, creio que 99% das pessoas sofrem do mesmo mal mas apenas 0,99% o confessam! Pois fique sabendo que, na parte que me toca, não há prazo certo para responder aos amigos. O prazo é o que as circunstâncias permitem. O conteúdo da resposta é que importa. E no que toca a conteúdo, o seu email é profusamente recheado! Sentimos claramente o seu afeto, que é sem dúvida um espelho do nosso.

A segunda razão é o destaque que você deu ao nosso aperto de mão que inaugurou a solene e profundamente emocional caminhada com a Inês, sob os arcos da catedral vegetal, para a levar ao altar onde o noivo e o seu pai nos aguardavam. É verdade, os pais das noivas não cumprimentam os convidados no trajeto solene “down the aisle”. Nem eu pretendia cumprimentar ninguém. Mas você era, fisicamente, o primeiro convidado de toda a galeria, não te via há décadas e senti uma grande alegria de te ver ali. Creio que você, afilhado distante mas querido, filho de queridíssimo compadre cuja amizade já conheceu dois séculos, dois milénios e mais de quatro décadas, simbolizou para mim a magia que se vivia naquele momento, a força do amor que constrói relações, e atravessa o tempo e o espaço, transpõe gerações e se materializa numa comunhão de seres que se querem bem. Não pensei em te cumprimentar. A minha mão procurou espontaneamente a tua e eu fui também um observador do gesto. Lembro que depois disso pensei comigo mesmo “Pai da noiva, se segura, senão vai parecer Prefeito em dia de inaguração de ponte!…”. Mas aquele cumprimento, simbolizou todos os outros que se limitaram a sorrisos, e toda a minha felicidade por ver reunidos ali os nossos amigos e os amigos dos noivos, as pessoas que nos amam, a celebrar em conjunto a alegria e a vida. Você simbolizou tudo isso e o nosso aperto de mão selou essa energia solar.
A terceira razão, foi a extraordinária lição de fonética e fonologia com que você nos brindou. Confesso que para mim foi uma verdadeira revelação, não só o seu interesse pelo tema, como as extraordinárias sutilezas da teoria, para mim quase completamente desconhecida, e ainda a abordagem multi-linguística, avançando pela articulação anglo-saxónica!... Para além de ser surpreendente e gratificante ver a sua coerência apaixonada pela matéria, é um assombroso mundo que se abre para mim...

At last but not at least, saber que profissional e financeiramente a sua vida e da Melissa, está mais segura, mais confortável, mais realizada. Quando gostamos de alguém, saber das suas vitórias é tão bom como perceber as nossas. Ficamos muito felizes por vocês. E apesar de não sermos ricos (às vezes parece diferente, mas a verdade é que, biblicamente, ganhamos o pão com o suor dos nossos rostos), queremos que você saiba que pode sempre contar connosco num momento de aperto. Mesmo. Não é demagogia. E esperamos que você nunca se acanhe de partilhar connosco não só os bons, mas também os maus momentos.

Finalmente, escreva sempre que der vontade. E apenas quando der vontade. Essas são as palavras que a gente gosta de receber. Não as de obrigação.

Abraços e beijos para vocês e que o Universo conspire a vosso favor!