quarta-feira, 5 de junho de 2024

 

FGA  e  Fga

Um diálogo

 

Comecemos por apresentar os FGA:

 

1° - Francisco Gomes de Amorim, 1827-1891

2° - F.G.A. (Jr.) filho – 1862-1949

      (Jorge de La Rocque G. A., neto – 1900-1943)

3° - F. Manuel Frick G. A., bisneto – 1931- ...

4° - F. de Almeida G.A., trineto – 1958- ...

5° - F. Dornelas Cysneiros G. A., tataraneto  – 1988- ...

Por ora não há perspectivas de continuidade de outro FGA, apesar de uma muito ténue esperança em dois netos ainda solteiros. O neto Francisco já declarou que o mundo não está em condições para cá pôr um filho !!!

 

*****

O diálogo a que vamos assistir é entre o primeiro FGA e o terceiro, aqui designado como “Fga”.

Mais um Encontro semi-etéreo entre o bisavô e o bisneto.

Quem leu o livro “Tetralogia de Encontros Etéreos” lá viu o primeiro - “Çauçúpára Carayba Goataçara Cuapará” – que entretanto deu origem a um livro editado. Ainda há alguns disponíveis!)

O local escolhido para este Encontro poderia ter sido a praia de A-Ver-O-Mar, terra do FGA, o poeta, ou em Sintra no Jardim Correnteza, em frente à casa onde ele viveu.

Optei por Sintra, aliás, Cintra, mas nessa altura era a Villa Estefânia, a “mais ou menos um kilómetro da vila de Cintra”, que ambos conhecíamos bem.

Por especial deferência de São Pedro fui autorizado, somente eu, a ver a figura etérea do meu bisavô, tipo halogênica, mas que mais ninguém poderia ver.

Parecia que eu ia ficar no banco de um jardim concorrido, sentado, “só”, a falar sozinho, mas isso não me atrapalhou.

Chegou o bisavô e sentou-se ao meu lado.

Fga – Meu querido bisavô, espero muito que goste do lugar que escolhi para nos encontrarmos. Eu sei que certamente lhe traz muitas recordações, mas começo por lhe pedir que meu deixe tratá-lo somente por avô. É mais simples. Devo dizer que o prazer de estar consigo é imenso. Muito, muito grande.

FGA – Chico, lá de cima eu tenho acompanhado a tua vida, e vejo o carinho que sempre me dedicaste. Tenho também o maior prazer em estar aqui contigo, neste lugar lindo, frente à casa que como sabes comprei, a vista para o Castelo dos Mouros e todo este ambiente que Cintra sempre teve.

Fga – Hoje aquela rua tem o seu nome. Uma pequena homenagem a um grande poeta, dramaturgo e historiador, sobretudo com as Memórias de Garrett. A bisavó Maria Luísa viveu nessa casa até que foi para o seu lado em 1929. O seu neto Jorge, meu pai, era por ela muito estimado e ela disse à minha mãe que não queria morrer sem ver um filho do Jorge. O Senhor fez-lhe a vontade. O meu irmão nasceu a 27 de Junho e a bisavó morreu em Setembro. Chamou-se Luis António, nome dos dois antepassados vivos, a bisavó Maria Luísa e o bisavô António Arroyo. Infelizmente deixou-nos muito novo.

FGA – A compra dessa casa deu uma história alegre que publiquei no meu livro “Muita Parra e Pouca Uva”, mas a verdade é que ainda passámos aqui mais de uma dezena de verões (?) que muito bem me faziam à minha saúde debilitada.

Fga – Outra curiosidade deste local foi a compra que o seu filho e meu avô fez daquela quinta ali, em baixo, ali, está a ver? Mas foi só em 1913, bem perto da mãe dele a sua Maria Luiza. Ali, eu aprendi a jogar ténis logo com dez anos e passei todos os verões da minha vida até casar e ir embora para Angola. Uma casa grande, onde cabiam os filhos todos e os netos e grande espaço de jardim e horta. É muita a ligação e saudade desta terra.

Avô conte-me como foi a sua participação na Maçonaria, de que há pouquíssima referência.

FGA – Sabes bem que quando se é jovem todos queremos revolucionar o mundo, saindo debaixo dos déspotas, tiranos, etc. Assim que regressei a Portugal, depois da estadia no Brasil, comecei a fazer alguns versos e quando passíveis de serem publicados mandei-os para o jornal onde começaram a aparecer. Dois anos depois dá-se a Revolução popular na Hungria que lutava pela sua independência e eu entusiasmei-me com a luta pela liberdade, que tanto tinha apreciado entre os índios. Comecei a escrever uns pequenos poemas sobre esse povo que a aspirava e isso atraiu a atenção de muita gente. Daí convidaram-me para fazer parte da Maçonaria, tinha eu 22 anos! Mas era tudo muito desorganizado e não demorei por lá. Era muita conversa e pouca ação!

Fga – Um dos seus escritos que sempre admirei, e divulguei, foi a carta que escreveu a seu filho quando este com 14 anos deixava a família e ia também para o Brasil, carta essa assinada por si e pela bisavó. É uma profunda lição de ética, probidade e respeito pelo Outro. Admirável.

FGA – Esse meu único filho homem, foi sempre um exemplo do Bom Filho. Foi uma grande infelicidade eu ter falecido logo seis meses depois que ele casou, lá no Brasil. Comportou-se toda a vida de acordo com as recomendações que lhe fiz e, além de me ter ajudado sempre mandando-me todos os meses parte os seus proventos, que muito me ajudaram a viver, mostrou-se sempre um homem honesto, probo e amigo, muito amigo das irmãs a quem mandou presentes valiosíssimos quando casaram.

Fga – Eu não cheguei a trabalhar com ele, mas tive ocasião de ver como era preciso, disciplinado e muito admirado por colegas e subalternos. Quando o nosso pai morreu, o seu filho tinha 80 anos e sofreu muito com isso. O meu pai era um grande colaborador dele, na empresa onde trabalhavam. Para nós, seus netos ainda pequenos foi sempre muito rígido, exigente.

Sabe porque o meu pai se chamou Jorge e não Francisco? Quando ainda no Brasil nasceu o primeiro filho homem do seu filho, logo batizado como Francisco, mas o bebé infelizmente só durou uns dias e morreu. Foi grande o desgosto como pode imaginar. Veio o segundo, novamente Francisco, e ao fim de 3 meses, doentinho, faleceu também. Um horror. A seguir uma filha que com seis meses os médicos disseram que ela tinha que sair do Pará porque não ia aguentar. E foi por isso que ele regressou a Portugal. Essa filha Albertina, nome da avó materna, morreu com mais de 100 anos. Quando veio outro homem, traumatizado, ele não quis mais usar o nome de Francisco! Eu que fui o segundo filho do seu neto Jorge, só sou Francisco porque o meu pai insistiu, uma vez que os avôs de ambos os lados eram Franciscos! Se eu não teria outro nome. E agora eu tenho um filho e um neto com o seu nome!

Mas, avô, diga-me uma coisa: não há, além desta sua casa um laço especial com Cintra?

FGA – Que laço?

Fga – Talvez a famosa cadeira que fora de Garrett.

FGA – Creio que te queres referir ao pequeno poemeto que dediquei à Condessa d’Edla, porque foi ela que pediu ao marido para me oferecer a cadeira que tinha sido do meu mestre Garrett, e que ele tinha adquirido no leilão quando o grande mestre morreu.

Fga – E mais: quando veio a Cintra ver a casa que acabou por comprar, escreveu depois que se hospedara no Hotel Vitor e que visitou a Pena onde passeou a cavalo. Nessa altura o Senhor Dom Fernando ainda estava vivo. Nessa visita esteve com o Príncipe ou com a Condessa, porque cita que o generosos príncipe franqueia a todo o viajante, nacional ou estranho, o seu castello e o parque da Pena ?

FGA – Não, não os vi, nem desejaria tê-los incomodado. Creio até que nesse dia eles estavam fora de Cintra, Mas ainda lembro do poemeto. Queres que t’o recite?

Fga – Adoraria

FGA –

Senhora: se os colossos da floresta

Aos céos enviam divinaes perfumes,

Também o agreste cheiro da giesta

Ousa humilde subir aos pés dos Numes. *

 

Se o sol, que é vida e alma do universo,

Não desdenha aquecer o ínfimo insecto,

A vós do rude bardo implora o verso

Calor e luz de generoso affecto.

 

Gota d'água levada pelo vento;

Modesto aroma d'uma flor cahida;

Nem tanto valerá meu pensamento;

Mas inspira-o uma alma agradecida.

 

Fga – Uma das características mais fortes dos seus livros, sobretudo quando trata do Brasil é a espantosa memória com que descreve cenas vividas quando muito jovem, entre 1837 e 1846, no meio da Amazónia e dos índios que só vem a escrever, com detalhes incríveis, 30 anos mais tarde. Como conseguiu isso.

FGA – Eu penso que na realidade tive uma memória privilegiada, mas quando estava com dificuldades socorria-me de alguns livros, sobretudo de botânica já existentes e cheguei até a escrever a amigos que tinha deixado no Pará e Alenquer, quando precisava de me certificar que o que lembrava estava correto.  Mas a verdade é que os meus amigos, desde Garrett, Rebelo de Sousa, Palmeirim, Júlio César Machado e outros muito elogiavam a minha memória.

Fga – E tinham mesmo que o fazer. Se eu lhe disser que tem muitos aspetos da minha vida que têm bem marcado o seu gene! O primeiro é que fui eu de todos os seus descendentes quem mais leu e apreciou a sua obra, depois fui o único que um dia começou também a escrever, quando criança fui um rebelde na escola e já no curso secundário enfrentava professores idiotas. Não atirei com manteiga na cara de ninguém, mas nunca levei desaforo para casa, e nessas ocasiões dizia para comigo mesmo: “Era assim que o bisavô poeta fazia”, o que me deixava compensado pelas asneiras!

FGA – Eu sei muito do que me estás a dizer e, mesmo que não acredites, por vezes “lá em Cima” ainda me ri!

Fga – Está a fazer-se tarde, eu quero muito continuar a conversar consigo, mas... o São Pedro está a dizer que tem que o chamar. Mas voltaremos a estar juntos. Como eu gostei de estar aqui consigo. Infelizmente não dá para o abraçar.

Antes de ir embora, deixe-me penetrar um pouco (muito!) no seu íntimo. As simpáticas jovens de Alenquer tratavam-no por “Çauçúpára” que parece significar “amante, querido”. Com esse sucesso, e com o costume de algumas tribos oferecerem mulheres para se deitarem com hóspedes, naquelas confortáveis redes que tanto elogia, não teve algumas noites passadas acompanhado?

FGA – Isso pertence ao foro mais íntimo de cada um! Não devias estar a fazer tal pergunta.

Fga – Avô, eu nesta altura tenho 92 anos, mais 28 do que a idade com que nos deixou. Não sou um moleque que queira brincar consigo. Jamais faria isso. Mas tenho pensado se isso tivesse acontecido era natural que eu tivesse lá pelo Amazonas algum parente, de que me sentiria muito feliz. Mesmo sabendo que nunca o conseguiria encontrar.

FGA – Como te disse, se aconteceu ou não, só eu sei, e nunca divulguei coisa alguma que pudesse levar a qualquer conclusão. Esquece isso, só não esqueças que todos os índios, como qualquer ser humano devem ser tratados como teus irmãos.

Fga – Obrigado, meu querido e muito estimado bisavô. Continue no seu tão merecido descanso. Qualquer outro dia voltaremos a falar. O mais provável seja com ambos já “Lá, em Cima”.

FGA – Adeus meu bisneto. Muito obrigado.

 

05/06/24

 

PS.- Ler os anexos

- Carta a seu filho https://fgamorim.blogspot.com/2009/04/mais-outro-francisco-gomes-de-amorim.html,

- História da cadeira https://fgamorim.blogspot.com/2014/07/

 

3 comentários:

  1. Helena Briosa e Mota6 de junho de 2024 às 12:13

    Preciosas memórias, preciosa informação -- para que a História se não esfume nos ventos dos tempos turbulentos. Gratíssima, Francisco. Felicitações

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  2. Meu caro amigo Amorim, esse diálogo é magnífico e faz lembrar do não menos magnífico “ Çauçúpára

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  3. Caro amigo Amorim, esse diálogo é simplesmente magnífico e me faz lembrar do não menos magnífico “Çauçúpára Carayba Goataçara Cuspará”, de tantas passagens memoráveis sobre as épicas andanças do notável FGA pelas sendas amazônicas. Cumprimentos efusivos por nos permitir o enlevo da leitura. Abraço fraterno.

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