quarta-feira, 19 de junho de 2024

 

Continuemos com o NOSSO

Francisco Gomes de Amorim

 

Quem diria que um rapazinho tão azougado e irrequieto, sem exame de instrução primária, viria a dar um escritor brilhante e tão fecundo, deixando-nos deliciosas poesias e maravilhosas descrições de pessoas e ambientes?

Que indómita força de vontade o animou da juventude à velhice, fazendo de um autodidata um apreciado e consagrado escritor!

(Boletim Cultural da Póvoa de Varzim)

Soffrendo de ataques de gota na cabeça, depois complicados com uma lesão cardíaca, Gomes de Amorim, quasi nunca sahia de casa, excepto no verão, que passava numa pequena vivenda, que tinha em Cintra, na Villa Estephania; essa casa porém, que era a sua homenagem de prisioneiro de doença, era um encanto de arte e de sentimento pelo perfume de afffeição, pela sinceridade e graça de tofdas as pessoas de família que a habitava...

(Parte do discurso do dr. José Frederico Larando no funeral de FGA)

 Estas novas informações sobre o vovovô FGA, destinam-se à família e amigos, principalmente àqueles que leram o livro Çauçúpára...

Uma retificação e alguns dados novos.

Tenho lido e escrito muita vez sobre este meu bisavô, e um dos erros cometidos ao montar o livro foi não ter lido o que, desde há anos tenho escrito, e onde estão informações interessantes, perdidas, ou mal encontradas no computador cheio, cheio de escritos e tudo já baralhado pelas várias vezes que teve que ir para conserto.

Mas eu disse que iria continuar a falar dele, e cá está.

 Na pag. 11 do livro escrevi;

“Aos 23 anos traduz do francês um Manual de Veterinário que a editora lhe pagava só 4 reis por página” ...

Informação truncada. O certo seria:

“Em 1850, foi-lhe entregue pelo Editora Rocha, da rua das Vinhas, em Lisboa (não consegui identificar onde ficava esta rua e, evidente, nem o editor) o Manuel de Santé... de François-Vincent Raspail (1794-1878 célebre químico, naturalista, médico, fisiologista, advogado e político socialista francês) para que FGA o traduzisse. Foi ele quem escreveu que a editora lhe pagava só 4 reis por página” o que ele considerava um roubo!” A edição que deve ter usada para a tradução será a de 1845, em Paris.


Para quem aos 10 anos pouco mais que soletrava, antes de fazer 23 era já um literato considerado a ponto de lhe entregarem um livro de 275 páginas altamente técnicas para traduzir do francês.

Quem achar de interesse faça cópia destas páginas (A5 ou A4) e guarde dentro do livro!

 

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Mais duas histórias

FGA, como vimos no livro, foi sempre um grande entusiasta de Camões, chegando antes dos 12 anos a ler tanta vez os Lusíadas, que no Pará, com seu irmão Manuel e seu primo José Gomes Amorim, mais velho do que ele 3 anos, faziam desafios para saber quem mais estrofes do Lusíadas sabiam de cor!

E foi o livro “Camões” de Almeida Garrett que lhe tocou e o fez poeta.

Tanto que mais tarde publicou até os Lusíadas “corrigidos de erros”.

Além disso, além dos amigos literatos, políticos e outros que recebia em sua casa havia também artistas, como Rafael Bordalo Pinheiro, Ferreira Chaves e mais.

Quando faleceu, a viúva sem meios de subsistência, teve que leiloar, entre outras coisas a biblioteca onde havia um “camoniana” impressionante, incluindo uma 1ª/2ª edição dos Lusíadas.

Esse conhecimento de Camões deve ter-se espalhado. Um dia recebe uma carta do pintor Francisco Augusto Metrass (Lisboa, 1825 - Madeira, 1861) considerado "o pintor mais romântico da sua geração", pedindo conselho sobre o quadro que ele estaria a pintar – Camões e Jaú ou Camões na Gruta de Macau – sobre com que indumentária devia pintar o grande Mestre e que cores devia usar nessa indumentária.

FGA não foi com grande simplicidade que lhe respondeu mais ou menos assim (porque não encontro já onde ele escreveu isso):

“Eu não sou pintor e ninguém sabe como Camões se vestia no seu tempo. O senhor é que tem que decidir em função do ambiente e dos seus conhecimentos artísticos que eu não possuo.”

Metrass terminou o quadro em 1853, que o rei D. Fernando II acaba por comprar e em 1921 foi readquirido pelo Estado.  Hoje está exposto no Museu do Carmo, no Chiado, em Lisboa.


Camões na gruta de Macau e seu escravo Jaú

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Mais uma pequena história para, por hoje, terminar.

Quando FGA chegou a Lisboa, no retorno do Brasil, praticamente sem dinheiro, foi alojar-se no Beco do Forno. Apesar de eu ter um Roteiro da Cidade de Lisboa de 1919 “com nomes antigos e modernos”, lá encontro três Becos do Forno e mais cinco outros Becos, a Alcântra, do Castelo, etc.

Penso que seria o antigo Beco dos Cavaleiros, ao lado do Martim Moniz, porque pouco depois mudou-se para a rua Nova da Palma, hoje rua da Palma, ali bem perto, “por cima de uma loja de chapéus, num casebre a que davam o pomposo título de 1° andar, favor devido à posse injustificável de uma janela de sacada com grades de madeira!” E fui trabalhar na loja do meu pobre amigo Miguel Butler, que Deus haja em glória, o qual teve a simplicidade de acreditar que eu podia ganhar o que comia, ajudando-o a fazer os seus chapéus! Depressa se desenganou, coitado”!

Entretanto foi por aí que FGA começou a compor alguns versos, que iam aparecendo impressos nos jrnais, e o público chamava-lhe “o poeta operário”. Pouco depois “A minha casa, como já disse, era na travessa do Forno, n° 8, atrás do Teatro D. Maria II (atrás do Largo do Regedor), num segundo andar, com janelas para a travessa. Entrando no páteo, à direita, havia fornos de padeiro; à esquerda, fábrica de amêndoas doces,; na frente, a escada, sem porta em baixo; e à direita-fundo o beco sem saída. Nas noites escuras, tudo aquilo dava medo.

... Garrett (28 anos mais velho do que o jovem que viera do Brasil) amava muito aquela vivenda, porque, dizia ele, lhe dava a mais graciosa ideia dos círculos do inferno. Denominou-a “casa dantesca”. Na noite do mais rigoroso inverno que teve o ano de 1851, chovera torrencialmente ao escurecer; os meus vizinhos do pateo, acabavam apenas de armar o passadiço de tábuas, quando o poeta assomou à porta. De um lado a rama de pinheiros ardendo, lançava enormes línguas de fogo das bocas dos fornos; do outro, baloiçava-se, pendente do teto, com outro fogaréu por baixo, o enorme tacho de arame, onde dançavam ruidosamente as amêndoas semi-torradas, mexidas sem cessar pelo meu honrado vizinho Luiz. O clarão das chamas refletia-se na água,e as tábuas gemiam e vergavam, fazendo chape-chape no charco, sob os pés do autor de D. Branca. Encantado com aquele fragmento de poema, e sem saber a qual dos quadros devia prestar maior atenção, hesitou, perdeu o equilíbrio , deslocou a ponte e caiu na poça, praguejando e dando a poesia local a todos os diabos. Teve que despir-se e meter-se na minha cama, enquanto lhe fui buscar roupa e botas, porque ficara que nem um pinto.

Dessa noite em diante, dizia que eu morava na casa dantesca subindo, à mão esquerda do inferno de Dante”.

Mas Garrett continuou a visitá-lo. FGA dividia a casa com um amigo (de quem jamais mencionou o nome) e parece que a desarrumação lá dentro era mais que evidente. Garrett, Par do Reino, deputado, visconde, sempre impecavelmente vestido deitava mão à limpeza e arrumaçãoa casa do pupilo que le tratava quase como um filho.

Naquela humilde casa, se reuniram, durante os últimos anos de vida de João Batista, muitos homens notáveis das diversas parcialidades políticas, com íntima e fraternal convivência literária.

N.- A “história” destas casas onde morou, são relatadas por FGA em “Frutos de Vário Sabor”, ed. 1876, pág. 167, e nas “Memórias Biográficas de Garrett”, Tomo III, capítulo XII, pag. 353.

 

18/06/2024

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