VIAGENS PELO INTERIOR DO
BRASIL
Francisco Gomes de
Amorim – 1827-1891
Já escrevi várias vezes sobre o meu bisavô e homónimo, Francisco Gomes de Amorim, mas pouco transcrevi das obras que ele escreveu e que se limitaram a ser publicadas em jornais ou revistas da época.
Estava
a meio de um livro de especial interesse para o Brasil, quando a sua vida se
esgotou, deixando assim, praticamente inéditas muitas páginas que agora vou
reproduzir. E isto é só parte do livro que estava a escrever.
Interesse
para os brasileiros e para todos os que se interessem por história vivida.
Serão
umas dez “postagens”. Se ninguém se interessar, pelo menos eu fico com esses
textos que, por todas as razões me interessaram, e interessam muito.
Trabalho publicado em Artes e Letras, Lisboa, 1872. p. 86-88, 107-108. 121-123.
I
“As tartarugas, seu desovamento e pesca. - Viagem nocturna pelo Xingú. - Caçada singular. - A perda da canoa. - Desanimo. - O ubá e o índio. - Um libertador forçado. -Travessia perigosa.”
Enquanto
os movimentos
ruidosos das rodas e das hélices dos barcos movidos a vapor não levaram o terror e o espanto ao seio profundo do Amazonas,
viviam ali, em quase plácido sossego, muitos milhões de tartarugas, que depois se refugiaram nos lagos numerosos e nos vastos confluentes do gigante dos rios. Era espectáculo para alegrar a vista do viajante faminto um areal do sertão, nas ocasiões do
desovamento, que principiava na lua nova de Outubro! Apesar de todos os sítios
arenosos terem suas tartarugas afreguesadas, que anualmente lá iam depor os ovos, havia um lugar mais predilecto daquele povo aquático algumas léguas acima do rio Trombetas,
nas formosas praias formadas pela embocadura do Namunda, onde, segundo a
tradição, as amazonas acometeram Orellana.
Do Pará e
de todos os pontos do sertão acudiam
ali centenares de pessoas,
algumas para negociar, outras por simples
curiosidade, e o maior número para fabricar manteiga com os ovos das tartarugas.
Improvisava-se
uma povoação com barracas de folhas de palmeira; as autoridades dividiam
o terreno em quinhões, que se
distribuíam por famílias ou indivíduos, e promulgavam um regulamento das
praias, com disposições penais severíssimas contra quem perturbasse o
desovamento. Nas proximidades da lua nova as tartarugas iam saindo, de noite pouco a pouco, do rio; subiam pelo areal, sempre à distância das cabanas; tomavam
grandes precauções para que
ninguém as sentisse; abriam
com as mãos curtíssimas uma cova,
que pela profundidade se poderia duvidar que tivesse sido feita por elas; depunham
ali de quatro até dez dúzias de ovos, redondos, moles, e tamanhos como meio ovo
de galinha; tapavam o buraco; alisavam a areia em roda, de modo que não ficassem vestígios
da sua passagem, e recolhiam-se ao elemento amigo e protector
com a consciência de que
haviam desempenhado .escrupulosamente os deveres que lhes impunha a natureza. Se uma chuva imediata ou um vento rijo vinha em seguida revolver
o chão, sumiam-se
as pegadas antes que as visse o homem; a areia e
o sol chocavam os ovos; e, passado o
tempo necessário, a ninhada rompia o invólucro, furava a dura camada,
que para outros
entes seria terrível
sepultura, e surgia radiante á luz do astro generoso, que a aquecera
no berço subterrâneo.
Por maior que fosse a distancia do rio ou do Iago, embora não se
avistasse em nenhum outro do lugar onde nasciam as jovens tartarugas, não houvesse medo que elas
hesitassem no caminho, que perdessem tempo em estudar traçados
ou que fizessem rodeios! A primeira
que saía, partia como uma seta na direção
do elemento em que ia viver; e após ela seguiam todas as suas numerosas irmãs. Um instinto sublime, uma verdadeira e maravilhosa inspiração dizia-lhes de que lado estava a água; e, apenas nascidas, corriam
para ela como se fossem velhas e experimentadas caminheiras! Nada tão gracioso e ao mesmo tempo tão digno de admiração, como ver uma dessas grandes
ninhadas atravessando vastos areais em linha recta, na direção da sua nova pátria!
Á medida que a lua nova se aproximava, as tartarugas mães iam-se tornando menos tímidas;
primeiro só saiam de noite e longe das barracas;
depois arriscavam-se de dia; e afinal
não escolhiam hora nem sítio.
Quando a lua começava, havia uma verdadeira invasão nas praias! Os pobres
animais, apertados pela natureza, apareciam
aos milhares, cobriam
literalmente o areal, não tinham quase tempo de enterrar os ovos,
esmagavam-se mutuamente, e o ruído
que faziam batendo
com as conchas (carapaças) umas nas outras, dava ideia do que devia ser o bater das armas e dos escudos numa batalha da Idade
Média. Já não
se temiam da gente que viam, nem da bulha
que em outras ocasiões as teria feito fugir para bem longe; arrastavam-se
dificilmente, umas por cima das outras; embaraçando-se e tentando subir
até onde achassem
terreno desimpedido para abrir
a cova e pôr os ovos; mas, cansadas de lutar, levando a todos os momentos encontrões das que, já livres, fugiam
a toda a força para o
rio, e apressadas pela necessidade de se aliviarem, largavam os ovos aos poucos - aqui vinte; além cinquenta; mais adiante, dez; nem
sempre acabavam de desovar, porque umas vezes lhes faltava o espaço e o tempo e outras sucumbiam ao cansaço e ao sol ardente do meio-dia,
que as assava dentro dos cascos! Esta faina durava três dias e três noites com maior fúria;
depois ia abrandando, como tinha começado, e ao fim de uma semana já não vinham
outra vez senão de noite; e assim continuavam até nova lua.
Era expressamente proibido
apanhá-las, assustá-las, ou perturbar por qualquer modo os trabalhos
da postura durante
o tempo da lua. Quem queria comer tartarugas, ou ovos delas, devia ir procurá-las fora da circunscrição marcada
pela autoridade; e não
era necessário para isso grande trabalho. Findo o tempo de desova tiravam-se os ovos, empilhavam-se na praia, onde o
sol os fazia fermentar, e fabricava-se a manteiga, que, metida em potes,
era mandada para o Para, onde cada pote se vendia por 5 a 6$000
reis em moeda fraca.(1)
Á indústria da manteiga
juntava-se uma outra, acessória, que era a
tartaruga cozida, ou moqueada (2) em pedaços, e metida também em potes, que se acabavam
de encher com manteiga. Chamava-se a este petisco (que também se fazia de peixe-boi) mexira, que traduzido, quer dizer - assadura.
Depois da desova as tartarugas espalhavam-se pelos rios e
lagos e muitas deixavam-se ir levadas pelas correntes dos grandes
rios até ao litoral do Pará. Ignoro se depois voltavam, mas parece-me
que se lhes tornaria
impossível vencer a distância de tantos centos de léguas contra a maré. O que
é certo é que vi muitas em diversos sítios do baixo Amazonas,
mas do rio Xingu para baixo
não me recordo que haja praias onde elas vão pôr ovos.
Sabem todos que a tartaruga de água doce não é o mesmo que a do mar; os cascos desta última
são os que se aproveitam no comércio.
No Amazonas
e seus confluentes há diversas
qualidades; no
Xingu a que mais abunda e a espécie tracaja
- Ernys Tracaxa, de Spix.
Constou na minha feitoria (3), que em uma das ilhas próximas costumavam sair muitas
tartarugas em noites de luar; eu e os meus tapuios só tínhamos por mantimento um pouco de peixe seco e farinha-de-pau, e por isso nos sorriu a ideia de podermos
obter carne fresca sem necessidade de perdermos horas de trabalho. Assim
que chegou o primeiro dia de lua, embarquei-me com uns quatro ou
cinco homens, levando
cada um de nós o seu sabre,
e remamos para uma ilha a que chamávamos dos Cajueiros, porque em suas belas praias abundavam
os Anacardos (Cajueiros - (Anacardium
occidentale). Esta ilha ficava a distância de uns cinco quilómetros para baixo da nossa barraca;
a maré sente-se no Xingu e faz inchar o rio, mas pouco ou quase nada influi na velocidade da corrente. Deitámos
a canoa para o largo e deixámo-la ir ao som da água. Um tapuio chamado Pedro, da
tribo dos mundurucus, levantou o remo ao alto e pôs-se a
admirar a água que dele escorria, espelhada
pelo clarão da lua,
como se fora um rolo de fitas de cristal.
Era um poeta perdido! Eu, que não sonhava
ainda com as musas, mas que me sentia
enlevado diante dos magníficos espectáculos da natureza, acendi um grande cigarro, enrolado
em casca de tauari (4)e comecei a fumar
olhando para o céu e para o rio. A noite estava
límpida e tranquila, como são quase todas as da América
do Sul: e os cheiros suavíssimos de várias plantas
e flores, perfumavam deliciosamente a atmosfera e inebriavam os sentidos. Os meus homens,
apesar da sua rude selvageria, sentiram-se também dominados pelo vago sentimento que me tinha, por assim
dizer, em religioso recolhimento, e deixaram
de conversar, acendendo
os cigarros.
Durante o tempo que vivi com os índios do Brasil, convenci-me de que eles
nem sempre olham com indiferença para as maravilhas da criação. O sol, o aspecto do céu estrelado, as noites serenas
e o luar esplendido dos trópicos,
cativam a atenção do mais bárbaro habitante do Amazonas; mas o seu maior
deleite é contemplar, fumando um cigarro
de tauari, as grandiosas massas de água que
por todos os lados o rodeiam.
(a continuar)
(1) Antes de 1844. Hoje regula
o preço de 10$000 reis até 16$000
reis. A manteiga ou azeite de tartaruga, que e liquida,
serve para luzes e para temperar a comida da gente pobre.
(2) 0 mesmo que assada.
(3) Chama-se assim a cabana dos exploradores da borracha ou goma
elástica, e conquanto feitoria tenha em
.bom português outra acepção, entendi que devia adoptar
aqui a designação consagrada pelo uso no Pará.
(4) Do entrecasco de uma árvore, que tem este nome, se faz uma espécie de papel para cigarros, ao qual se chama igualmente tauari.
Morei na Amazônia durante 4 anos. Não tive a ventura de observar os eventos da vida das tartarugas. O rico relato com que nos presenteia o nobre amigo Amorim permite quase vivenciar esse milagre da natureza. Com expectativa aguardo a continuação.
ResponderExcluirBelíssimo texto. Espero ansiosamente pelos próximos
ResponderExcluirMorei na Amazônia durante 4 anos. Não tive a ventura de observar os eventos da vida das tartarugas. O rico relato com que nos presenteia o nobre amigo Amorim permite quase vivenciar esse milagre da natureza. Com expectativa aguardo a continuação. Fraterno abraço Aléssio
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