(continuação)
Viagens pelo interior do Brasil
Dea obra de Francisco Gomes de Amorim que viveu no Amazonas entre 1837 e 1848. Trabalho publicado em Artcs e Lctras, Lisboa, 1872.
II
Os meus tapuios iam, pois, calados
como eu, enquanto a canoinha descia, impelida pela corrente do Xingú, na direção
da ilha dos Cajueiros. O silencio solene que havia em torno de nós era interrompido, de vez em quando pelos rugidos da onça ou do jaguar, pelo bramido
rouco de algum jacaré, o grito de um macaco, ou o assobio
de um pássaro nocturno. A linha escura e enorme dos arvoredos desenhava-se nas águas, da parte donde vinha o luar, e, apesar da distância a que nos achávamos de terra, viam-se grandes pirilampos, cortando em todos os sentidos as sombras densas da floresta, como se fora uma dança de estrelas. Aos lados da canoa saltavam por vezes alguns peixes, que a beleza da noite convidava a variar instantaneamente de
elemento; morcegos monstruosos, roçando
as longas asas negras na
linfa prateada, atravessavam a miúdo de uma para outra margem; a nossa canoa, vogando ao som
da água, com cinco homens
imóveis como estátuas,
dando por todo o sinal de vida os fogachos dos cigarros, que se moviam lenta e indolentemente cada vez que as mãos os tiravam ou levavam a boca, completava o quadro.
A hora, o luar, o espectáculo do céu, e das águas, tudo era propício para despertar numa alma terna e juvenil
lembranças e saudades da pátria, da mãe, dos amigos, de
quanto Deus deu ao homem para ele amar no berço e chorar de perdido.
Os meus olhos arrasaram-se de lágrimas, e o cigarro
caiu-me da boca... Um dos
tapuios ia, provavelmente, fazer-me algum reparo acerca da minha melancolia, quando sentimos um grande abalo, e a canoa recebeu um choque como se tivesse sido abalroada
e lhe houvessem saltado dentro muitos homens. Eu e os meus erguemo-nos dum salto com os sabres em punho.
No sertão daquele prodigioso país é assim a vida. No meio da maior tristeza,
olhamos para o lado e vemos um bugio fazendo-nos tantas e tais visagens que desatamos a rir ás gargalhadas; num acesso
de alegria, caímos ao rio sobre um jacaré; topamos uma onça à porta de casa, ou uma cobra dentro da rede de dormir!
Se nos entregamos a admiração ou as saudades, somos levados pela corrente contra algum madeiro, que nos faz naufragar; e muitas
vezes, quando pensamos em delícias e prazeres inocentes, vemo-nos forçados a lançar mão das armas para defender a vida contra
inimigos misteriosos!
A natureza está ali perfeitamente de acordo com estas peripécias: vemos o céu límpido,
o ar sereno, o dia
brilhante, o rio tranquilo... e
repentinamente cai um furacão, como
uma parede que desaba; rebentam as escotas; quebram-se os mastros; ou
rasgam-se em tiras as velas da embarcação - o que é uma fortuna,
porque se isto não sucede o tufão mete-nos no fundo: - as águas encapelam-se em vagas temerosas; o céu turva-se; a chuva cai
em torrentes ... - mas
tudo isto passa
com a mesma rapidez com que veio! É uma mutação de cena, verdadeiramente teatral! Reaparece a serenidade na atmosfera, o sol brilha no firmamento, e os
aromas rescendem das selvas com mais suavidade,
enquanto se tranquilizam de novo as águas dos rios e dos lagos! Em outros lugares, e em certas ocasiões, não se
interrompe a calmaria; não há névoas, nem vento, nem nuvens.
É noite; está a terra inundada de luz suave e pura; a superfície do rio, imóvel, como se houvera
sido tocada por vara magica. Ouve-se
ao longe um trovão medonho, como o rebentar de peça de artilharia; uma vaga imensa, um rolo de
muitos metros de espuma, sobe, fervendo e rugindo, pelo rio acima, levando
consigo tudo quanto encontra, despedaçando as maiores embarcações, que se não
se acautelaram a tempo, arrancando árvores seculares num ponto e cravando-as noutro com as raízes para o ar,
fazendo e desfazendo ilhas, e conduzindo pavor e a morte até as
portas das povoações! E a pororoca, fenómeno de que muitos têm
falado, e que ainda ninguém explicou satisfatoriamente. Depois da primeira onda, vêm outras duas mais pequenas, e, mal se desvanece
a última, a maré, que estava parada ou corria ainda para baixo, começa a encher com grande velocidade.
A superfície do rio alisa-se
quase instantaneamente; a atmosfera
permanece inalterável; a lua resplandece com o mesmo brilho; os ventos não se
moveram, e o Cruzeiro do Sul alumia com o mesmo fulgor o teatro de tais prodígios!...
A minha canoa tinha ido bater contra uma grande arvore,
meio submergida na ponta de uma ilha,
e por pouco se não virou! Os
ramos sem folhas, açoitando os bancos da proa, fizeram-nos supor uma invasão e
por isso pegamos nas armas. Reconhecida a causa do susto, pareceu-nos
conveniente guardar as nossas meditações para outra
vez, e remámos com força para a praia dos Cajueiros, que já
se avistava.
Ao aproximarmo-nos da terra vimos no cimo do areal refletir-se
o luar num corpo brilhante, e suspendemos o movimento dos remos:
- É uma tartaruga - disse um dos tapuios.
Eu nunca tinha vista tartarugas vivas. Achando-me na terra das maravilhas e dos sucessos
extraordinários, e ignorando
que força de resistência oferecia um daqueles animais, antes de se deixar apanhar, apertei com força o punho do meu sabre.
Os meus homens
tinham-me dito simplesmente:
- Vamos às tartarugas?
E eu, que apreciava aquela
concisão esparciata, respondi
com o mesmo laconismo:
- Vamos.
Não tinha ainda ouvido descrever a pesca, nem o
desovamento daqueles animais, e ia levado pela curiosidade, que sempre me
guiara pelos sertões.
Quando desembarcámos, arrastámos a canoa para longe da
água, sem nos lembrarmos da maré, que estava enchendo, e abaixamo-nos,
alongando a vista pela praia, para ver se descobríamos os cascos molhados onde
o luar se espelhava. Além da primeira tartaruga, que tínhamos vista, reluziam
ao longo mais seis ou oito. O principal
dos tapuios, que era o índio mundurucu, partiu a correr sem nos dizer nada, e
nós fomos todos após ele.
Dirigimos a carreira para a tartaruga mais próxima, que suspendeu a postura e quis
fugir assim que nos
sentiu os passos; mas, antes de
tratar da sua própria
segurança, o santo amor
materno lembrou-lhe que devia esconder o ninho, e nós chegávamos no momenta em que a triste alisava a areia com um zelo que lhe
foi fatal.
O índio Pedro arremessou-se sabre ela e voltou-a de peito
para o ar, não sem dificuldade, porque a infeliz resistia, pretendendo mor der ou arranhar as mãos que lhe inutilizavam as forças. Foi a primeira vez que eu vi tamanho exemplo de amor maternal. A mãe,
arriscando
a vida em defesa de seus filhos... Ó mães, que de lições
tendes dado ao egoísmo dos homens, de então para cá!...
Mas têm sido perdidas todas; perdidas
par tal forma, que até nos cansastes já de as dar, e hoje não há
talvez quem morra por seus filhos, nem mesmo entre as tartarugas!
As outras mães fizeram, provavelmente, algum sinal usado entre elas para dizer:
- «Salve-se quem puder!» -
Porque se precipitaram todas para o rio, com a maior velocidade que !hes
permitiam as suas curtas e largas patinhas. Cada um de nós correu para seu lado, e em menos de um quarto de hora tinhamos voltadas
na praia todas quantas ali estavam;
nem uma só escapou! Eu tornei-me tao dextro
no exercício, que igualava,
se é que nao excedia os próprios tapuios!
Mas que drama tão doloroso e pungente era o daquelas
pobres criaturinhas debatendo-se, tentando uma luta inutil para salvar a futura
prole! A sua vista abrimos cruelmente as covas, onde elas haviam depositado os
ovos, e lembro-me ainda dos esforços desesperados que faziam as míseras para se
arrastarem sabre as costas e impedir que violassemos no berço os segredos da
maternidade! Os meus tapuios, em quem a civilização não conseguira destruir
completamente os hábitos da vida primitiva, devorararn alguns ovos crus, ainda
tepidos do calor do ovário!
Foi a primeira lição de selvageria que eu recebi dos
homens; e ou fosse porque o meu estômago se revoltasse contra a iguaria bárbara
ou porque realmente visse, como se me afigurou. ao clarão da lua, cairem
lágrim.as em fio dos olhos das tartarugas, rejeitei os ovos que me ofereciam
para provar, dizendo-se-me que eram deliciosos.
Depois vi muitas vezes arrancar os filhos dos peitos das mães africanas, para as vender a um senhor diferente, e elas, embrutecidas pela escravidão, não choravam; vi os homens
venderem as mulheres de quem tinham tido filhos e pôr em leilão os filhos que houveram dessas escravas, sem a menor demonstração de sentimento; vi a mãe, corrompida no seio da opulência e dos esplendores da .aristocracia social, ir para o baile oferecer sorrisos e
deleites no cinismo depravado, enquanto o filho· expirava, num berço de ouro, entregue a cuidados mercenários.
Reconheci entao que os hábitos da vida anti-social me tinham deixado intacto o
sentimento do bem e do justo e a virgindade da alma; e que era menos dificil achar lágrimas nos olhos das tartarugas, do. que
coração no peito de muitas criaturas humanas. Na escola dos animais ferozes não
se aprendem as atrocidades que se praticam entre povos, que se dizem civilizados, e eu tenho momentos em que deploro sinceramente
haver deixado a sociedade dos meus tapuios do Xingú... Adiante!
Quando os homens se fartaram de ovos, trataram de ir
buscar a canoa para mais perto, a fim de se embarcarem as tartarugas. Eu corri
adiante de todos para o lugar onde a tínhamos deixado, e não a vi. Alonguei a
vista pela praia fora, abaixei-me para ver melhor!
- Foi-se a
canoa!
- Como assim?
- Que é dela?
- Roubaram-na?
- Levou-a a é
que estava enchendo, e nos nao fizemos reparo!..
- Qual
história! Furtaram-na.
- Mas quem?
Por aqui não há moradores...
-Alguém que
passou...
- E agora?
- Agora?
- Sim; que
havemos de fazer?
- Valha-me
Deus!...
- Esta só pelo
diabo!
- Um caso
assim!... E estamos numa ilha deserta!... Por aqui não passa ninguém; todas as
canoas vão ao largo, ou encostadas à outra banda!
- Mas que se
há-de fazer?
- Eu não sei.
-Nem eu!
- Nem eu!
- Isto só por
seiscentos diabos!
- Seria algum
ladrão?
- Seria a
maré?...
- Nós temos
tartarugas para comer ate que venha alguem... talvez que os cajueiros estejam
com frutos... ovos não faltam...e
então...
- Sim; mas a
canoa?!
- É verdade; e
a canoa?!
- Não temos
redes para dormir!...
- Nem
farinha!...
- Nem
tabaco!...
- Nem
pimenta!.
- E eu tenho
só um bocadinho de isca no uru (1); se esta falhar, como havemos de ter lume?
Aqui não há dos paus que servem para o acender.
- Olhem se vai
alguem roubar-nos as tartarugas!...
- É verdade!
Quem sabe se foi ladrão que levou a canoa? ...
E como se todos tivessemos a consciência de que a riqueza
mais útil que possuiamos, depois da perda da embarcação, eram as tartarugas,
corremos todos para o pé delas. Era tempo; duas ou três tinham feito tantos
movimentos e com eles se haviam por tal modo enterrado na areia, que estavam
quase a tocar-lhe com as mãos e dentro em pouco poderiam voltar-se. Anulámos os
seus esforços e começámos a correr a praia em todos os sentidos, sempre com os
olhos fitos no rio, procurando a canoa, como animais ferozes fechados numa
jaula em busca da saida. Apesar de filhos dos bosques, e todos conservando
ainda, mais ou menos, alguns hábitos da sua tribo, nenhum dos tapuios queria
resignar-se a dormir naquele areal desconhecido, sem rede e sem fogo. Eu, que os tinha visto andar
sempre sem medo por florestas virgens e rios, onde iam comigo pela primeira
vez, sentia-me, com razão, inquieto,
achando-os agora tão acovardados e sem ânimo. A causa explica-se contudo, facilmente. A canoa é a alma do índio do
Brasil, assim como a gôndola é a do veneziano, e o cavalo a do
árabe. Um índio do Amazonas
sem canoa é um corpo sem alma.
(1) Espécie de cestinho,
onde guardam o tabaco,
isca, fuzil e pederneira.
(continua)
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