O Último da Minha Criação!
Não há nem um mês que escrevi sobre um Amigo, que por um muito feliz acaso encontrei no Centro do Rio de Janeiro, em 1979.
Hoje acabo de receber a notícia que nos deixou.
Há muito doente, apático, há dias ainda reconhecendo-me numa foto antiga e até corrigindo o meu nome a quem estava a tomar conta dele.
Amigos desde data que se não sabe mais, mas da infância, e sempre mantendo viva essa amizade pela vida fora, é um golpe duro para quem, como eu está já fragilizado.
Só me resta, além de chorar, lembrar momentos alegres da nossa vida.
Passávamos as férias de verão em Sintra, onde nos encontrávamos quase todos os dias. Já garotões, eu com a minha eleita vivendo em Santo Amaro de Oeiras, era ele que me emprestava a sua bicicleta, luxo que nunca tive, para ir visitar a menina. No regresso, estradas a subir e vento pela frente lá ia eu devolver a bicicleta… estafado!
No tempo das aulas eu estudava em Évora, ele em Lisboa, formou-se em Direito, preparando-se para entrar na carreira diplomática. É chamado para fazer o serviço militar, colocam-no nos Serviços Secretos, transmissões cifradas, etc., e “esqueceram-no” lá dentro, só o libertando quase dois anos mais tarde.
O nosso pretenso futuro diplomata, tranquilo, sempre muito educado, não reclamou, mas viu os colegas passarem-lhe à frente e desistiu da diplomacia. Teria dado um grande diplomata.
Do pai herdou uma biblioteca importante e decidiu então dedicar-se a livros raros, sendo considerado o melhor livreiro de Portugal, montando um acervo espetacular, comprando e vendendo obras magníficas.
Foi um dos pouco amigos que convidei para o meu casamento, e bem mais tarde foi padrinho de casamento da nossa filha Helena.
Solteiro criou hábitos curiosos. Morava na Av. da República, saía de casa depois das 11 horas da manhã para ir ao café “Galeto” tomar o seu “matabicho”. Mesa reservada, não precisava encomendar nada porque os funcionários há anos que lhe serviam a torrada com manteira e o café com leite! Religiosamente sempre igual. Várias vezes fui ter com ele para ficarmos na conversa, e como para mim eram quase horas do almoço eu sempre comia alguma coisa… mais sólida.
Um belo dia, combinarmos ir jantar fora. Aliás uma bela noite. Já ambos de cabelo branco, o meu amigo tinha experimentado pontar a cabeleira, e aparece com ar comprometido! Ao ver a minha cara espanto, e sabendo como gosto de brincar, ainda estávamos a uns quantos metros de distância, logo ele se adianta e diz-me: Por favor; não digas nada!
Ri muito mas, bico calado, cumpri. No dia seguinte creio que foi despintar-se.
Sobre ele, nos Encontros Inusitados, há menos de um mês, escrevi isto:
Em Julho de 1979 fizemos Bodas de Prata, e a todos aqueles que tinham estado no nosso casamento, mandamos um simples convite para se juntarem a nós. A totalidade vivia em Portugal, mas foi um meio de comunicarmos com esses amigos.
Estava eu a viver em São Paulo e a trabalhar no Rio numa empresa em situação de desastre financeiro, o que me obrigava a, com frequência, dialogar com os agiotas, chamados bancos e ir empurrando com a barriga, como podia.
Uma semana o dinheiro ia todo para um imposto, na outra para o pessoal, a seguir pagar o custo social do pessoal, depois outro imposto, e não sobrava migalha. Pelo contrário. Uma canseira sem ver o fim do inferno.
Estou no Centro do Rio, rua do Ouvidor, rua cheia de bancos e cheia de pedestres, às centenas, e tinha que falar com dois dos membros da alta finança nacional e internacional. Passo por um, sigo em frente, mas pensei que seria melhor voltar atrás. Rodo 180 graus e estacado na minha frente, para não chocar comigo, um dos meus maiores amigos de toda a vida, alfacinha (lisboeta), com quem sempre estou quando vou à terrinha.
- TONI ??? Aqui?
- Cheguei ontem de Lisboa e amanhã vou para São Paulo. Tenho até aqui no bolso o teu convite das Bodas. Ia telefonar-te logo à noite.
Já não fui a banco nenhum. Entramos no primeiro boteco ou pastelaria e ali ficamos um bom tempo no papo.
Pois o Toni, António Tavares de Carvalho, tinha vindo ao Rio para negociar livros, ele talvez o mais famoso bibliófilo português, que, na nossa mocidade me emprestava a sua bicicleta (eu não tinha, nem dinheiro para isso) para ir de Sintra a Santo Amora de Oeiras ver a pretendida, que acabou por cair na minha conversa… até hoje!
Ao chegar a São Paulo havia greve de taxis! Uma simpática (très simpática) garota abordou-o ofereceu-se para o conduzir no seu carro - tipo “Uber” de hoje. A “Dildinha” - ou nome algo parecido – que viu no sujeito, todo lord, uma bela presa, não largou mais o passageiro. Creio até que o levava ao hotel, estacionava o carro, descia com ele e depois subia com ele até ao quarto, mas não vou garantir porque não sou de fofocas, nem tenho nada com isso.
Sei que o Toni, todos os dias enquanto esteve em SP, a partir de meio da tarde ia para nossa casa, jantava, e só de lá saía, à noite, quando nós nos queríamos ir deitar e o obrigávamos a telefonar à Dildinha que o ia buscar e...
Um dia, domingo, tive que ir visitar, fora de São Paulo um importante cliente (meu), rico, casarão num sítio imenso. Levei o Toni comigo e o senhor muito amável convidou-nos para almoçar.
A casa cheia, uma filhinha pré casadoira, bonitinha, e o preposto noivo, que se apresentou, mas o Toni não ouviu o nome dele e perguntou-me. Eu disse-lhe:
- Não é Dalton.
Logo o Toni:
- É Robespierre.
Era. Ficaram todos com ar de espanto sem entender como ele poderia ter adivinhado!
Meu querido Toni, possas tu ler este pequenino apanhado das nossas vidas, que tanto teriam para contar.
Não se chegou a ler.
Entretanto pintei, para o meu livro de “Retratos de Amigos”, o retrato dele, baseado numa foto de há uns 40 anos.
Agora, velhotinho, como eu, não sairá do meu coração enquanto ele teimar a continuar a bater.
06/06/22
O que custa vê-los partir...
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