Encontros Inimaginados - 4
Luanda 1967 ?
A história que se segue já a contei em “Contos Peregrinos” e não só, mas cabe uma vez mais aqui.
Nesse tempo trabalhava eu na firma J. Pinto Comercial.
Um dos clientes, Arnaldo era um homem simples, que fazia em sua casa, na cozinha, ajudado pela mulher, chapas metálicas para tipografia. Fotogravuras. Tudo muito artesanal. Um pequeno ampliador de amador, dois vidros presos com molas e fitas de borracha para as cópias, tinas de revelação remendadas, mas nada impedia que a qualidade do seu trabalho fosse bastante boa e reconhecida. Estava com muito serviço a que só com muito custo dava vazão. Precisava investir em algum equipamento. O primeiro que decidiu comprar custava naquela ocasião uns noventa contos, cerca de três mil e quinhentos dólares.
Foi à nossa loja, ar simples, modesto, pedindo um grande favor. O Cardoso, o colega que atendia clientes ao balcão, endossou-o para mim.
- Eu tenho pouco dinheiro, só posso dar de entrada tudo quanto tenho, vinte contos, e o resto, se me puderem fazer isso, pagaria em doze prestações. Não tenho outra condição e estou precisando muito dessa copiadora. Ficarei muito grato.
Conhecendo bem o que era esse tipo de trabalho, disse ao já cliente, mas de coisa pouca:
- Antes de prosseguirmos com qualquer negociação, quero ver em que condições você trabalha, o que faz, como faz, etc. Depois conversamos.
- Mas eu trabalho na minha casa. É uma casa modesta.
- Melhor. Se fosse casa de rico não tínhamos esta conversa. Vamos lá ver, se você não se incomoda que eu entre em sua casa.
- Não senhor.
Fomos. Morava perto, nas Ingombotas, um bairro antigo, a meio da encosta que leva para a parte alta da cidade e onde existiu em tempos idos uma cacimba que abastecia de água parte da cidade.
O seu trabalho era de ótima qualidade, os clientes que tinha angariado eram muito bons, estavam a dar-lhe cada vez mais serviço, e tudo levava a crer que com a aquisição de equipamento conveniente poderia multiplicar o seu movimento. Tudo visto e conversado:
- Muito bem. Vou pensar no seu caso. Como hoje já é tarde, volte amanhã à loja para conversarmos.
No dia seguinte, o Arnaldo, ar meio desconfiado, receoso que a sua proposta não tivesse sido aceite, cara de pedinte, entra na loja.
- Bom dia. Sente aí. Sabe uma coisa? Não lhe vou vender a máquina que você quer.
O homem empalidece ainda mais.
- Por quê. Acha que eu não vou pagar?
- Nada disso. Só com aquela máquina não vai longe. Só lha vendo se você comprar também a câmara vertical e a de contato.
- Mas se eu não tenho dinheiro nem para uma, como posso comprar três?
- Pode sim. Vamos fazer o negócio do seguinte modo: você dá de entrada o que propôs, isto é, os vinte contos. Depois as primeiras três prestações a seguir serão do valor de uma só máquina, como você tinha proposto, e o saldo total então dividido em oito parcelas a partir do quarto mês. Nessa altura você já estará com movimento suficiente para pagar tudo.
- Eu não vou poder pagar tudo isso. De maneira nenhuma. É muito dinheiro.
- Pelo que eu vi da qualidade do seu trabalho e conhecendo os seus clientes, vai pagar sim, e com uma perna às costas. A mim não me interessa nada afogá-lo em dívidas, como pode imaginar, nem procuro clientes que não paguem. O que eu quero é ajudar a resolver o seu problema.
- E se eu não puder pagar?
- Vai poder sim. Quer ou não?
- Bom... parece que não tenho outro remédio.
- Tem só uma condição no meio disto tudo. Só uma: eu sei que você vai ganhar muito dinheiro com o negócio, e não tarda está com os bolsos cheios, e ainda bem. Mas se algum dia entrar aqui feito calcinhas*, armado em rico, eu ponho-o fora da loja. Continue sempre como é hoje, um homem simples, trabalhador, respeitado, e não arme nunca em rico.
- Pelo amor de Deus. Eu alguma vez ia fazer uma coisa dessas!?
- Espero que não. Mas de qualquer modo não esqueça o que eu lhe digo.
Lá foram as máquinas todas para casa do nosso homem, que como previsto, não tardou a alargar muito o seu negócio. Pagou sempre com pontualidade, e sem apertos. Meia dúzia de meses depois já tinha até trocado o carro velho por um mais novo e conversível. Estava ficando ricaço!
Vinha com assiduidade à loja comprar material chamado consumível, as tais chapas, os produtos químicos, etc. O tempo foi passando. Tudo havia pago.
A sala onde eu trabalhava estava ligada à loja, sem no entanto ser visto nem avistar quem ali entrava. Um belo dia ouço alguém reclamando, voz grossa, quase agressiva, com o vendedor do balcão, o Cardoso, um homem amável, eficiente, simpático e sempre sorridente. Voz demasiado alterada e elevada, porque um produto qualquer que procurava estava em falta. O navio tinha atrasado, mas sempre havia em estoque alguma coisa que pudesse substituir o que estava em falta, de modo a que os profissionais não parassem.
O cliente, grosseiramente, perguntava se o dinheiro dele não era tão bom quanto o dos outros, porque na véspera se tinham vendido as últimas caixas do produto que ele procurava.
Chamei o Cardoso, e perguntei-lhe quem estava fazendo aquela gritaria.
- O Arnaldo.
O Arnaldo? Que maravilha! Logo este. Até parecia que eu adivinhara que um dia vinha a acontecer uma situação assim.
Levanto-me, atravesso a loja, abro o balcão e com ar de poucos amigos vou direto a ele:
-Tunda**! Ponha-se lá fora, já. TUNDA!
- Mas eu...
- Ponha-se lá fora. Aqui dentro ninguém grita. Ninguém tem melhor dinheiro do que qualquer outro. Isto é uma casa de trabalho e não uma taberna.
O homem envergonhado saiu, e eu atrás. Na rua:
- Você lembra-se qual foi a única condição que lhe pus quando lhe vendi todo aquele equipamento?
- Não. Não me lembro nada de especial. E aliás paguei tudo nas datas certas.
- Então vai já lembrar. Eu disse-lhe que você ia ganhar muito dinheiro, não foi?
- Foi.
- E disse-lhe ainda que se algum dia entrasse aqui feito calcinhas armado em rico que o punha pela porta fora! Lembra-se?
Com um ar de espanto e muito pendurado, confessa,
- Tem razão. Lembro, sim.
- Nós fazemos muito gosto em tê-lo a si, e muitos outros como nossos clientes. Mas não admitimos falta de educação a ninguém, do mesmo modo que não faltamos ao respeito a quem quer que seja. Desde o mais importante ao mais humilde. Se quiser continuar cliente desta casa, lembre-se que o seu dinheiro é igual ao de todo o mundo. E que aqui sempre o tratamos bem. Cada vez que vier com grosserias será posto fora.
O homem estava passado. Vermelho de vergonha. Pediu desculpa. Estaria nervoso, cansado, com um trabalho importante em mãos, e que o material em falta poderia impedir de o fazer, etc. Desculpas de arrependimento. O pior é que o arrependimento é próprio dos fracos!
Entrou novamente na loja e tratou com o Cardoso do que tinha a tratar como gente normal. Sempre se arranjou material substituto.
Rio de Janeiro. 1975.
Pouco depois de ter chegado ao Brasil, à procura de um carro para comprar, entro numa concessionária GM, ao fundo da Praia do Flamengo, que não existe mais porque ali hoje estão construídos uma série de prédios. No meio do salão um vendedor atende um outro cliente, barbado. Aguardo um pouco enquanto vou olhando os carros, que não apresentavam nada de novo de uma concessionária para outra, o que ainda hoje acontece, quando vejo o vendedor aproximar-se com o tal barbaças, e este, de repente:
- Olha o senhor Amorim. Que prazer em encontrá-lo aqui.
Olhei para aquela cara e disse-lhe:
- Estou a ver se reconheço alguém por detrás dessa barba, mas não vou lá!
Ele então virou-se para o vendedor da GM:
- Este homem deu-me um dia a maior lição da minha vida. Que eu nunca mais esqueci.
Era o Arnaldo. Obrigado a sair de Angola, como quase todos os angolanos de pele clara. Perdeu, como a maioria, quase tudo o que lá tinha, inclusive o tal equipamento. Como nos últimos anos conseguira juntar uns dinheiros, estava com algum respaldo para recomeçar vida nova no Brasil. Contou a história toda, passada em Luanda, quando foi posto fora da loja, que eu entretanto havia muito já nem lembrava, mas que depois daquela narração, feita pelo próprio, com um sabor real de verdade e saudade, não mais esqueci.
Demos um abraço forte, e depois disso nunca mais o voltei a ver. Era um bom profissional e de certeza não terá tido dificuldade em refazer a sua vida no novo país.
A lição que não esqueceu deve tê-lo ajudado a começar tudo de novo.
Espero bem que sim, e que esteja rico outra vez.
Sempre este caso me remete ao Cardoso que, pelas duas vezes que voltei a Angola em 1991, já não encontrei. Ótimo colega, tranquilo e eficiente. Um amigo.
******
Mais encontro e uma pequena história ligada às artes gráficas e ao meu tempo com o J. Pinto.
O
Zé Pinto, começou a sua vida em Angola com material fotográfico.
Dava-lhe para viver, mas era coisa pequena. Como tinha trabalhado
primeiro, no Porto, empregado dum amigo que eu
conhecia desde que nasci, fizemos
conhecimento e amizade, e era a
mim que
chamava para que eu testasse produtos novos, como filmes, papeis para
ampliar, máquinas fotográficas, etc. Acabei montando um estúdio em
casa… no banheiro e fiz magníficas ampliações de fotos dos
filhos, chegando a fotos com 50x60 cm. Começou em 1958!!!
Um dia recebe a proposta de ser
o agente para
Angola do segundo maior grupo
mundial de material fotográfico, a
Agfa-Gevaert, e convida-me (já eu estava com a administração da
Cuca atravessada na goela) para trabalhar com ele. Aceitei e fui
gerir toda essa nova mercadoria, ficando o “patrão” com a parte
financeira.
Só material fotográfico, mesmo que para amadores e profissionais, era um mercado pouco desafiador, e passei a interessar-me por artes gráficas, microscopia, raio x e outras especialidades, onde, para facilitar, não havia concorrentes habilitados. Passámos a ser os “chefes” incontestes dessas áreas.
Precisávamos de chapas de offset, para as gráficas, e a melhor de todas, - Ozazol - era vendida, quase por favor, pelo representante da Kodak, entretido com a marca maior da fotografia.
Decidi ir à Drupa - a maior exposição de equipamentos de impressão do mundo, realizada a cada quatro anos pela Messe Düsseldorf na Alemanha, procurar o que houvesse de melhor.
No dia em cheguei, fui, logo à Feira.
Eu a entrar e a sair um ex funcionário da Agfa, que eu havido conhecido dois anos antes, quando por lá andei a estagiar. Grande manifestação, o que faz por aqui, e lá contei que ia à procura de chapas offset.
Diz-me ele:
- Já não estou mais na Agfa. E tenho uma notícia boa: sou o gerente de exportação para África das chapas Ozazol! Mas agora tenho que sair. Amanhã de manhã venha ao nosso stand para conversarmos.
Fiquei até meio tonto. Ainda não tinha entrado na Feira e estava já com o indivíduo que mais me interessava contatar! Não precisava pesquisar mais nada. Mas entretanto fiquei o resto do dia na Feira, meti o nariz em tudo, onde sempre muito se aprende e guardei contatos para negócios futuros.
No dia seguinte tinha conseguido as melhores chapas! Um tiro na mosca!
*****
Vem a propósito de material fotográfico para utilizações muito especiais, um dos clientes, a Força Aérea. Filmes e material especial para fotografia aérea para fins cartográficos.
Visitei algumas vezes este cliente e era recebido por um funcionário, técnico, sempre mal encarado, ar de favor, mas como a nossa troca de ideias era somente técnica, acabávamos por nos entendermos.
Um dia este indivíduo, o Esdras, vai à nossa loja (J. Pinto) para falar comigo. Pensei que fosse sobre algum problema de filmes, mas ele foi direto a outro assunto.
Estava farto de trabalhar na Força Aérea, era cansativo, ele nem militar era, mas contratado, e queria sair de lá. Vinha oferecer-se para trabalhar conosco. Vendedor.
Eu fui direto:
- Esdras. Você é um sujeito rude, mal encarado, como pode conciliar esse seu feitio com o de um vendedor? Não estou a ver que se possa dar bem.
Parece ter levado um choque com a frieza com que o recebi. Digeriu a minha resposta e voltou:
- Eu posso tentar modificar-me.
Gostei da resposta. Humilde e sincera.
- Vamos fazer uma experiência. Você não se despede da F.A. Pede um mês de férias, a que tem direito e vem trabalhar esse mês conosco. Se ao fim desse tempo, você gostar e nós acharmos que está a fazer um bom trabalho, voltamos a conversar.
E assim foi. No final do mês o Esdras foi admitido.
E quando eu saí do J. Pinto e montei uma empresa para essas mesmas finalidades, o Esdras despediu-se para ir trabalhar comigo! Tínhamos nos entendido muito bem, e era um ótimo colaborador.
Entretanto em em 1971, já eu estava no banco em Luanda, e a empresa que abri com dois amigos, a REPRO, caminhava muito bem, sem termos roubado nenhuma representação ao J. Pinto, eu fui transferido para Moçambique para trabalhar na Mac-Mahon (cerveja e Coca-Cola) e não lembro mais de ter voltado a ver o meu amigo Esdras.
Onde quer que esteja um forte abraço, mesmo etéreo.
* Calcinhas – termo angolano que significa “homem modesto fazendo-se importante”
** Tunda – também termo angolano que significa “fora, sai, rua.”
Ainda faltam uns poucos Encontros.
16/05/22
De Almanaque, cada uma e todas estas suas histórias, Francisco. Verdadeiro tesouro de memórias de tempos idos que nos trazem as gentes, os cheiros, as vivências das terras onde fomos felizes. Um gosto: lê-lo, relê-lo, rir, gargalhar -- e as mais das vezes, ficar a pensar...
ResponderExcluirGrande abraço nosso. Com um reconhecido «Bem haja!»
H&Ric
Tem piada, as memórias: para mim, «tunda» era sinónimo de «tareia, tosa»:
ResponderExcluir-- Foge, meu desgraçado, antes que te dê uma valente tunda!
Tinha sim, os dois sentidos, mas mais a de "fora". Do kimbundo Kutunda = sair. Não falo kimbundo, mas tenho uma boa dose de dicionários, e esta expressão era muito usada!
ExcluirTambém nunca mais soube do Edra, a vida separou-nos e a vida mudou. Beijinho.
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