Rosa e
Jacinto
Não vamos tratar
de floricultura, nem jardinagem. Mas de uma história passada não há muitos anos
naquelas terras lindas, férteis e calorosas de Angola.
Comecemos
por descrever as personagens como se de teatro se tratasse.
- Abílio, beirão de Penalva do
Castelo, alfabetizado com a instrução primária, emigrado para Angola com 22
anos, em 1935. Deixou na terrinha a amada Beatriz.
- Beatriz,
da mesma terra, rural, também alfabetizada, espera que o seu amor cresça e vai
ter com ele em 1939.
- Joaquim
Costa, beirão dos arredores de Viseu, em África desde 1920, comerciante, e
fazendeiro de café.
- Maria
da Conceição – mulher de Joaquim Costa.
- N’Kongali,
soba de Puri, aldeia no distrito de Uige, Norte de Angola.
- Eduardo,
jovem aspirante do Posto Administrativo de Puri.
- Kieka,
filha do soba.
- Rosa,
filha de Kieka.
- Jacinto,
filho de Abílio e Beatriz.
Começa a
história com o Joaquim Costa, ex soldado em França na I Guerra Mundial,
condecorado por bravura em combate, recém chegado a Angola, um país imenso onde
tudo está por fazer. Tal como fizeram os judeus quando se instalaram no Brasil,
foi trabalhar com um patrício, em Luanda, que logo se apercebeu das qualidades
do Joaquim. Homem sério, trabalhador, disposto a vencer na vida.
Nem um ano
passado abre-lhe um crédito para ele levantar uma boa quantidade de mercadorias
e pagar-lhe à medida que fosse vendendo, recomenda-lhe que procure os bravos camionistas
que carregavam mercadorias para o interior, e de lá traziam o que encontrassem
e, ouvindo o que lhe iam dizendo, devia optar por um lugar com possibilidades para
abrir uma casa comercial.
Joaquim
correu as poucas casas da capital, procurou os camionistas, que durante a
guerra 14-18 até óleo de palma usaram para abastecer os seus carros, que lhe
iam indicando onde havia falta de comerciantes, e acabou por se decidir por uma
região, com rara ocupação de europeus mas que lhe pareceu com possibilidade de
crescer, “regularmente” visitada pelos escassos transportadores.
Neste meio
tempo, em 1921, chegam a Angola missionários portugueses para abrirem uma
missão em Sanza Pombo, no Norte, região dos Bacongos.
Joaquim
procurou esses padres e decidiu que seguiria com eles, onde abriria a sua loja.
Estaria bem acompanhado e seria também muito útil para a missão.
Partiram
juntos.
Joaquim, com
a ajuda, fundamental, do povo dali, construiu uma pequena casa, com deposito e
loja, e logo começou a vender, sobretudo trocar o que levara por produtos dos
nativos, além de ir fornecendo também os missionários.
A vida,
dura, parecia correr-lhe bem, jovem vinte e poucos anos, começou a visitar
praticamente todos os dias a missão, não só por razões financeiras, mas para
conversar, ouvir a Boa Nova, e, talvez o principal era deixar os olhos viajaram
apaixonados por uma das noviças que vieram também de Portugal para auxiliar o
serviço da missão, ainda sem votos, com quem as várias trocas de olhares iam
levando os dois para pensamentos mais para a frente.
Um dia tomou
coragem, falou com o superior da missão e confessou-lhe que estava apaixonado
pela noviça Maria da Conceição, jovem como ele. Disse que as poucas trocas de
olhares entre eles, levavam-no a pensar que ela também gostaria dele, e pensava
em casar, se pudesse.
O padre
superior ficou de falar com a noviça, ouvi-la e aconselhá-la no que lhe
parecesse melhor para ela.
Encurtando
razões, e após um rápido namoro (sempre sob o controle dos missionários!), nem quase
dois meses haviam passado e aconteceu a festa do casamento!
A vida
ia-lhes correndo financeiramente bem, mas nada de aparecer o que tanto
esperavam: filhos.
Trabalhavam
muito os dois e foram estendendo o seu comércio e investimentos.
Negociou com
o soba de Puri, a uns 50 kms para sul, comprou uma boa área onde plantou de
café e ordenou pastagens para gado.
Os anos
passavam e sentia que precisava de um auxiliar. Escreveu para parentes de
Portugal e um deles, jovem ainda, logo se entusiasmou com a visão do mundo
novo.
Abílio chega
a Angola em 1935, e não tardou que Joaquim lhe entregasse a fazenda para gerir.
Beirão
também, rijo e trabalhador, não tardou a ganhar a simpatia do soba N’Kongali e poucos
anos depois do recente aspirante do Posto Administrativo, recém criado,
Eduardo, jovem também em início de carreira, seus companheiros de cavaqueira no
final dos dias, quando possível, e em muitos fins de semana.
A casa
comercial de Joaquim expandia-se com segurança, já abrira filial também no
Puri, e o salário de Abílio melhorava. Tinha deixado o seu coração preso na
terrinha, e quando viu que o podia oferecer à dona dos seus pensamentos,
mandou-lhe dizer que embarcasse.
Em 1939
chega a Angola mais uma portuguesa, Beatriz, e novo casório acontece na missão!
O convívio
com os povos nativos naqueles tempos tinha duas versões: indivíduos grosseiros
e de má educação, que unicamente os queriam explorar, e aqueles que, de boa
índole, os tratavam com toda a educação e até amizade, sendo generosamente
retribuídos.
Foi o que
aconteceu com todos estes que já vimos, sobretudo com o aspirante Eduardo, que
desde que chegara, entre outras coisas não tirava os olhos da filha do soba,
uma jovem bonita e elegante, que não tardou a perceber que o tal aspirante, com
certeza, aspirava a conquistá-la. E estava a gostar!
Eduardo
fazia muita visita ao soba, que desconfiava de tanta amabilidade, e esperto,
ia-se apercebendo que entre a filha e o português administrativo, havia mais do
que simples olhares provocadores.
Joaquim
visitava assiduamente a fazenda, entretinha-se também com o velho amigo
N’Kongali e até com o Eduardo. Sempre era bom ter contato amigável com o
aspirante do posto que o recebia com alegria.
Nessa última
visita Eduardo decide abrir o seu coração, o seu problema com Joaquim, que ali
funcionava quase como um pai, apesar de não ser grande a diferença de idades.
- Senhor
Joaquim, sabe como sempre tratei bem o povo daqui, especialmente o seu amigo e
cliente, o soba N’Kongali, com quem passo muitas horas na conversa. Tenho aprendido
muito com ele.
- É verdade.
Eu também aprecio muito esse homem, bom caráter e trabalhador. Comigo ele tem
quanto crédito quiser. Desde que abri a loja, primeiro em Sanza Pombo e depois
aqui, nunca faltou à sua palavra.
- Sabe que
ele tem uma filha, Kieka, que desde há tempos me obriga a não poder tirar os
olhos dela.
- É bonita,
sim senhor. Também me encanto com ela. Mas faz tempo que não a tenho visto.
- É que...
(Eduardo engasga-se) acho que fui um pouco longe demais! Tanto sorri para ela
que parece ter conquistado o seu coração, e acabámos por chegar ao que não era
para acontecer!
- O que foi?
- Deu hoje à
luz uma filha... minha!
- Oh!!! Por
isso ela não aparecia. E como reagiu o pai?
- De entrada
mostrou-se muito aborrecido comigo, mas eu fui-lhe dizendo que jamais ia
desamparar a filha, e que o filho que tivesse ia ser adotado como meu filho. Aí
ele parece que aceitou. Pelo menos sossegou.
- Isso é
atitude de homem.
- Eu pensava
até ir hoje visitá-lo não só para lhe contar que nos nasceu uma criança. Decidi
que vou mesmo casar com ela! E venho convidá-lo, e à sua senhora, para serem os
padrinhos de casamento.
- É homem
valente! Acaba de subir muitos pontos na minha consideração. Aceitamos com
muito gosto sermos vossos padrinhos, e nessa situação a festa do casamento vai
ser por nossa conta.
Ambos
emocionados chega Abílio.
- Bom dia.
Gosto de os ver animados, mas com cara de caso. O que se passa?
- Mal sabes,
Abílio, o que o Eduardo nos veio contar. Grandes novidades nesta terra. Acaba
de ter uma filha e vai casar. E esta hein?
- Mas quem é
a felizarda?
- Kieka, a
filha do soba N’Kongali.
- Bom gosto,
bom gosto, Eduardo! Parabéns. E quando é casório?
- Logo que a
mãe esteja bem do parto, que aliás correu muito bem. E vamos aproveitar para batizar
a menina, que é linda e até já escolhemos o nome, Rosa. Vou agora avisar o
padre Próspero, aquele padre novo, que chegou há poucos dias. Ele é de Cabinda,
mas muito simpático.
- Como é
curioso! Eu também vinha aqui comunicar algo importante ao amigo Eduardo, e
depois iria procurar o senhor Joaquim. Também trago uma novidade importante. A
Beatriz, ontem também me presentou com um herdeiro! Olhem que coincidência.
- Parabéns,
homem. E está tudo bem?
- Graças a
Deus. O menino é forte, e já escolhemos um nome para ele, Jacinto, o nome do
meu falecido pai.
- Que
coincidência, nascerem no mesmo dia. Já vão ter com quem brincar.
Não tarda a
chegar outro conviva.
- Dá licença
seu Eduardo?
- Entre.
Entre sempre soba N’Kongali. Sabe como gostamos de o receber. O que traz por
aqui?
- Vejo que
está bem acompanhado: o senhor Joaquim e o sô Abílio. Acho que estão a preparar
alguma coisa!
- É verdade
que estamos, sim, e o meu amigo?
- Parece que
cheguei tarde para contar a novidade. Já deve saber que o nosso aspirante se
meteu com a minha filha e ela acabou de ter uma filha.
- Sabemos já
e ficámos todos contentes.
- É! Eu de
entrada fiquei muito chateado, zanguei-me com a filha e fui até reclamar com o
aspirante. Tivemos longa conversa e acabei sossegado porque ele diz que quer
casar com ela.
- Não sabe
você o melhor: quem vão ser os padrinhos do casamento sou eu e a minha mulher a
D. Maria da Conceição. E a festa será por minha conta. O Eduardo tem-se
mostrado um homem de palavra, tem futuro e vai cumprir, ser um bom marido e um
bom pai. Mais ainda sabemos todos nós como a sua filha é uma mulher bonita e
simpática.
- Só nos
resta agora dar os parabéns ao avô! Disse Abílio. E o nosso soba não
sabe ainda, mas a minha mulher também nos deu ontem um filhinho, um homem! A
sua neta e o meu filho já têm com quem brincar.
- Isto tem que se comemorar.
Vou buscar uma garrafa de vinho.
- Soba
N’Kongali, já sabe como se vai chamar a sua neta?
- Ainda.
- Rosa! Os
pais já combinaram. Linda flor, como lindas são a mãe e a menina. E o meu
filho, Jacinto, outra flor bonita. Já pensou que eles vão crescer juntos e serem
amigos?
- Então vamos ter grande
festa, soba N’Kongali? O meu marido já me contou e eu estou pronta para
colaborar em tudo.
- Muito
obrigado, senhora.
- E parabéns
duplos ao promissor administrativo, Eduardo. e ao nosso colaborador, Abílio.
Felicidades. E como sabe, eu tenho algum jeito para a costura, prometo já que
farei o vestido da noiva, modesto, mas bonito e mais, os dois vestidinhos para
as crianças que vão ser batizadas.
Reinava alegria. Abriu-se
uma garrafa de vinho do Porto, brindou-se e... secou a garrafa.
Um mês depois foi bonita a
festa não só na Missão, com o casamento e batizados, como depois no Puri, onde
o soba matou um boi para festejar com a população.
Kieka estava bonita na
nova roupa, misto de africana e europeia.
As crianças progrediam de
boa saúde e felizes. Mas a alegria não durou muito.
(A continuar)
06/10/21
Empolgante, á espera do capítulo seguinte ....
ResponderExcluirSobre a resposta de N'Kongali à pergunta, também se diz só "ainda" em Angola em vez de "ainda não" ou isso é influência de Moçambique?
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