Rosa e
Jacinto - Final
Deixámos
os jovens casais felizes com as crianças que lhes nasceram e sabemos que
cresciam em graça e princípios de sabedoria, coisa com que toda a criança nasce
para alcançar o quer e deixar os pais fazendo papel de bobos.
Cresciam
junto, como irmãos, o bom velho soba sentia-se avô das duas crianças, e Kieka
apreciava o novo viver saída da senzala, mas não abandonando as suas raízes.
Passaram
quase dois anos, Kieka sentiu-se adoecer, e como a medicina por aquelas bandas
era ou nula ou abaixo de precária (os missionários ajudavam, mas pouco),
recorreu ao médico/feiticeiro do seu sobado.
Foi
piorando, não havia antibióticos e não aguentou. Fechou os olhos, sofrida, e
deixou a filhinha entregue aos pais do Jacinto.
Eduardo,
chorou também e, como era hábito naqueles tempos, pouco demorou como aspirante
no Puri. Foi transferido para o Bailundo. Só, não tinha como levar a pequenina
filha com ele. passados mais uns anos foi promovido a Chefe de Posto, e
colocado em Xamutete, cada vez mais longe do Puri; e aqui perdemos o rasto
dele. Visitava a filha sempre que podia, fazendo longas viagens até...
As
crianças tiveram a melhor educação que se podia conseguir naquele tempo e
naquela área. Instrução primária na missão, depois num colégio no Uige (ao
tempo chamado Carmona!).
Cresciam
saudáveis, fortes, com a vida na fazenda e, desde bem pequenitos se perspectivava
que ambos seriam duas belas crianças.
Abílio
tinha já uma razoável situação financeira, os estudos da Rosa eram
compartilhados, generosamente, pelo avô N’Kongali e os também babados “avós”
Joaquim e Conceição. Quando chegou o seu tempo decidiu-se que deviam pôr as
crianças a estudar em Luanda, no Liceu Salvador Correia, seguindo com eles a
mãe Beatriz.
Ali
alugaram casa, a vida corria tranquila, ambos bons alunos, educados e
disciplinados; a amizade entre eles sempre se fortalecia.
Jacinto
teve que encarar várias lutas, algumas sangrentas, com jovens “metidos à besta”
(como se diz no Brasil) quando estes idiotas se metiam com a sua “irmã, com evidentes
traços africanos, que lhe realçava a sua beleza exótica.
Terminam
o liceu em 1957, e lá vai a mãe Beatriz com os dois, “filha” e filho, para
continuarem os seus estudos em Portugal.
Rosa
queria ser médica, porque sabia que a mãe tinha morrido por falta de
assistência, Jacinto pensou primeiro em agronomia, com vista ao futuro das
terras de Angola, mas também sabia que o desenvolvimento iria exigir novas
estradas, construções e fábricas, optou então por engenharia civil.
Joaquim,
grande comerciante e produtor de café passava já parte do ano em Portugal, e
construíra uma casa no arredores de Viseu. Tinha os negócios bem entregues ao
Abílio e a mais dois angolanos, apresentados pelo amigo N’Kongali.
Entre
Lisboa, Coimbra e Porto, os estudantes optaram por esta cidade. Estariam mais
perto dos “avós” Joaquim e Conceição, para onde iam sempre que algumas ocasião
o permitisse. O pai, visitavam-nos no verão, quando não eram os “irmãos” que
iam a Angola, já universitários, onde, na missão e no Puri eram sempre recebidos
com festa.
Chegou
1961. Em Fevereiro grande agitação em Luanda, provocada pela possibilidade de
ali chegar o general Humberto Delgado com o navio Santa Maria sob sequestro,
que propiciou o ataque do MPLA às prisões da PIDE, com um sangrento resultado e
larga divulgação mundo afora, mostrando que as províncias de Portugal não
viviam naquela paz anunciada pelo salazarismo.
Rosa e
Jacinto temeram.
Em Março,
com o imbecil apoio dos EUA, quando Kenedy acordou para a forma como a URSS se
estava a apropriar de África, os congoleses, não só de Angola, mas sobretudo do
Congo ex-Belga, invadem o norte de Angola, com milhares de homens drogados,
matando pelo caminho todos os europeus e angolanos que com eles trabalhassem,
destruindo fazendas e o comércio, chegando quase às portas de Luanda. Uma
imensa onda de terror.
Joaquim
preparava-se para regressar a Angola, quando este massacre foi conhecido. Ficou
em Portugal aguardando a evolução da situação. Não tardou a saber que Abílio e
todo o pessoal que trabalhava nas suas organizações foram vitimadas (degoladas)
assim como os missionários de Sanza Pombo e até o amigo N’Kongali.
Ao mesmo
tempo tomou ciência que perdera quase tudo que construíra durante a vida. Tinha
64 anos e um fulminante ataque de coração prostrou-o.
Deixou algumas
reservas financeiras e propriedades em Portugal que Conceição continuou a
administrar, contando agora os centavos. Sua maior preocupação era o estudo dos
“netos”, a quem faltavam ainda dois a três anos para se formarem. Seus únicos verdadeiros
membros da sua “família” e universais herdeiros.
Reduziram
todas as despesas que puderam e conseguiram pelo comportamento e boas notas
havidas até ali, que as duas faculdades lhes dessem bolsas de estudo integrais.
Tristes,
prosseguiram com ainda mais interesse os seus cursos.
Mas... há
sempre uns quantos “mas” na vida das pessoas; Rosa apesar da seu porte e
beleza, exóticos, sofria mais agora pelo que se passava em Angola, Moçambique e
em todas as colónias. Ouvia insultos e piadas porcas, a que só podia revidar quando
Jacinto estava junto. Entretanto pelos mestres da faculdade era muito estimada
face ao seu interesse e desempenho. É evidente que isto incomodava os mais
burros.
Acabados
os cursos, com a criação da nova Universidade aberta em Luanda, é para a sua
terra que vão trabalhar.
Rosa, já doutora,
completando a especialidade de clínica geral na faculdade, Jacinto numa empresa
de engenharia, cujo salário lhes dava para viverem com tranquilidade.
Era hora
de se deixarem de irmandades. Não podiam viver um sem o outro. Sempre se tendo
respeitado, era evidente que o final da meninice e adolescência era o
casamento. Chegara o momento que, lá bem no fundo de cada um, sabiam havia de
chegar. Apesar de FGA (1827-1891) ter escrito “Se é raro o amor constante, a
amizade inda é mais rara”, Rosa e Joaquim sabiam que pertenciam um ao
outro. Aquele amor estava incrustado numa amizade total.
A missão
de Sanza Pombo reabrira, e foi lá que quiseram dar o SIM, que estava previsto e
dado desde o dia em que nasceram.
Puri
tinha novo soba, irmão da Rosa, que do mesmo modo recebeu o casal com grandes
manifestações de carinho e alegria.
Fixaram
residência em Luanda, de onde ambos se deslocavam com frequência.
Angola,
como Fênix, renascia das cinzas e crescia como nunca antes. Depois de muito
trabalho conseguiram reaver a fazenda de café, os armazéns e lojas em Sanza
Pombo, Puri e Negage.
Nenhum
dos dois queria mais trabalhar no campo ou no comércio. Venderam tudo, e
juntaram um capital razoável.
Rosa
abriu uma pequena clínica no Puri, para onde se deslocava dois a três dias por
semana e atendia o povo da região sem cobrar um cêntimo.
Jacinto
visitava obras de estradas e outros projetos que iam crescendo por toda Angola.
Parecia
que estava difícil que viessem filhos, coisa que a toda a hora as duas “avós”
perguntavam de Portugal; “Quando chegam bisnetos?”
Foram
chegando. Em 1966, primeiro uma menina que teve que se chamar Kieka! Depois um
Abílio. E o terceiro, Joaquim.
Quando
tudo parecia calmo e promissor o futuro de Angola, nova e profunda reviravolta
nas suas vidas: a Revolução em Portugal que entregava de forma vergonhosa e
covarde as suas colónias aos soviéticos.
Abandono
dos quadros técnicos, estagnação e falência da economia, as saúde, da
agricultura, das obras públicas. O que fazer? Voltar para Portugal?
Nunca.
Eram angolanos, surgia-lhes a grande oportunidade da vida: darem o seu saber e
trabalho pela terra onde nasceram!
Rosa foi
chamada a lecionar na faculdade de medicina em Luanda e Jacinto nomeado para o
Ministério das Obras Públicas, ministério esse que nada fazia, a não ser
assistir, incapacitado de agir, à degradação das estruturas.
Os três
filhos, ainda pequenitos foram mandados passar um tempo com as saudosas
bisavós, até que a situação se normalizasse. Acabaram ficando em Portuga, a
crescer, estudar e receberam aquela educação saudável e carinhosa da avó e
bisavó.
Os anos
não param. Apesar de se verem com razoável frequência, os filhos que entretanto
se formaram também em Portugal, ao chegaram à idade de seguirem os seus próprios
caminhos não quiseram voltar para Angola. País despedaçado, roubado,
malbaratado, infeliz, totalmente corrompido.
Em
Portugal a situação também era de insegurança, desgoverno e incerteza. Com os
diplomas nas mãos, um bom curriculum escolar, os três unidos, os três
mosqueteiros angolanos, estudaram e muito discutiram qual seria o melhor
destino, tanto mais que a “bisavó” Conceição há muito fechara os olhos e a
Beatriz muito velhinha estava em estado deplorável, de falência eminente.
Arranjaram
um lar para esta e optaram por ir para o Canadá.
Demorou
algum tempo para conseguirem o visto, mas lá estão os três, na mesma cidade,
acompanhados pelos pais que entretanto se aposentaram.
Vidas
difíceis, a quem o bom senso e consciente determinação acabaram por encontrar um
tranquilo rumo para os ex jovens e seus idosos pais.
Parece que
por lá andam ainda, Rosa perdendo o viço, Jacinto sem as cores brilhantes da
juventude, agora avós babados a curtir as crianças, sorrindo ao ver os filhos
com as vidas asseguradas e os netos sempre lindos – como são todos os netos.
14/10/21
Muito realista e verdadeiro. Mais uma história contada de uma ex colónia portuguesa, mas com um final feliz. 😍
ResponderExcluirAinda é tipicamente angolano!
ExcluirMuito!! Vivi em Luanda 1 ano em 1999/2000 e boltei lá em 20017/18
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