Senilidade e Besouro dourado
Descendente de algum Baron ou visconde, que os houve muitos, sobretudo
no tempo do famoso Império do Brasil, arruinada pela idade e pelas finanças,
esgotadas nos faustos imperiais, sonhava com aqueles tempos de exibição e
despesas inúteis que ouvira contar aos avós.
Ainda a revolução Francesa não tinha corrido com muitos nobres ou “quase
nobres”, alguns encontravam-se, fora da França, negociando, em qualquer missão
diplomática ou vivendo de recursos próprios, naquele tempo só das terras e do
que lhes pagavam os trabalhadores rurais.
O Baron de Urban, duma velha cepa de servidores palacianos vindos do
tempos dos Luises XV e XVI, juntara alguma fortuna, que guardava, muito bem
escondida em casa, num lugar onde nem a mulher sabia, a Madame La Baronne de
Urban. Tudo quanto ganhava, e em alguns negócios escusos junto do monarca, tudo
trocava por moeda, só em ouro, e vivia, já quase com mais de 60 anos,
exibindo-se nas festas palacianas, dizendo graças às senhoras e moças, velhas graças
conhecidas, mas sempre com um sorriso e uma forma nova de contar as mesmas
coisas que obrigava as damas a corresponderem com outro sorriso, o que ele
levava para a conta de um próximo “affaire”. Vestia-se com luxo, punhos de
renda sempre cheios de goma, pavoneava-se, mas lá no fundo ia ouvindo vozes do
povo que “as coisas” não andavam bem por todo o país. Fome, impostos imensos,
etc.. O que muito o preocupava.
Madame la Baronne, com a mesma idade do marido, sonhava, respirando com
dificuldade, do tempo, quase meio século passado, quando chegou dividir o leito
com Luis xv. Fora a sua glória, mesmo tendo depois chegado aos seus ouvidos que
o Roi Soleil tinha feito saber que a noite fora como que perdida.
Assim mesmo, o Rei, generoso, presenteou-a com um pequeno besouro
dourado, feito em ouro, que a Baronne sempre exibia, orgulhosa, fazendo charme
sem contar quem lho tinha dado!
Continuava a usar roupa fantasiada, enchia o peito com algumas almofadas
e a cara de cremes e pós, muito “rouge”, sentava-se nos salões com negligência
forçada, o que lhe permitia mostrar um pouco da perna, perna velha e magra, com
que sonhava atrair um homem qualquer. O marido já não lhe interessava, nem este
por ela.
Ambos velhos, vestindo-se espalhafatosamente, moviam-se nas festas
dizendo gracejos, ele a elas e ela a eles. Como é de se esperar sucesso nos
amores jamais alcançavam e, apesar de se apresentarem sempre de forma ridícula,
davam ao ambiente alguma descontração pelos risos que provocavam.
Um dia Monsieur le Baron muito cautelosamente, como mandava o cerimonial,
pediu ao rei, Luis XVI, que o mandasse para outro país, se possível Portugal,
porque ele e a Baronne, com o frio estavam a sofrer muito do reumático. Tinha
ouvido falar no sol de Portugal, onde corriam soltas o mesmo tipo de festas
palacianas, o que significava que podia continuar com as suas tentativas
amorosas, mais ainda se tivesse uma função diplomática.
Luis XVI, alguns dias depois, saturado das figuras caricatas que o casal
fazia, e levando em conta que era a terceira geração que os Barões de Urban serviam
o palácio, consentiu e nomeou-o para um cargo fantasioso junto da Legação da
França em Lisboa.
E aí vão os dois, levando uns quantos baús com as roupas indispensáveis
para a vista que pretendiam fazer, além de um outro, muito pesado que levava o
tesouro vital.
Viagem de navio, ambos o tempo todo enjoados, não tiveram como se
exibir, nem estavam interessados em marinhagem.
Ao chegaram a Lisboa, tomam conhecimento da revolução popular em França,
e fizeram questão de logo se apresentarem ao rei, nessa altura ainda o Príncipe
Regente, mais tarde Dom João VI, que amavelmente os convidou na primeira
oportunidade para um serão no Palácio das Necessidades.
Lá vão os barões exibindo as suas mais vistosas joias e roupagens, Mr.
Le Baron na sua língua, muito cultuada pela nobreza em Portugal, ia dizendo os repetidos
gracejos, que, como novidade divertiam os convidados. Madame la Baronne, cheia
de pós, muito rouge e sempre mordendo os lábios para incrementar a corrente
sanguínea e mais avermelharem, esticando-se na cadeira para endireitar as
costas, sonhava que com todo esse esforço ainda conseguiria a atenção de algum
jovem ou não tão jovem. E o besouro em lugar de destaque.
Uns anos passados, nem um deles conseguia a caça que tão freneticamente
procuravam, a Família Real decide fugir da invasão das tropas francesas e ir
para o Brasil.
Aos barões de Urban, pareceu surgir-lhes uma oportunidade única, seguir
a realeza. E desembarcam no Rio de Janeiro onde logo se depararam com a
primeira dificuldade: onde se alojarem, onde guardarem os baús com as roupas
quentes e, não só, o famoso do tesouro.
E mais: onde encontrar serviçais? As primeiras mulheres que se
apresentaram, de pele escura, descendentes de escravos angolanos, horrorizou
não só o Baron como madame la Baronne. Gente que em Paris jamais tinham visto.
Para eles era uma visão terrífica.
Logo o Príncipe Regente estava a dar recepções e festas no palácio
adaptado, não esquecendo os franceses, que sempre se apresentavam para oferecer
os seus préstimos.
Maior foi o choque quando numa das primeiras recepções no palácio, entre
a nobreza acabada de chegar se apresentavam também alguns cariocas, de posição
elevada e muito sangue misturado.
O Baron foi perscrutando as novas variantes femininas, não esquecendo de
lhes dirigir as mesmas graças envelhecidas em Paris e em Lisboa, mas que eram
novidade no Rio de Janeiro.
Ao fim de pouco tempo já começava a fixar o seu olhar nessas novidades
estranhas, enquanto a Baronne punha as saias bem até aos pés não fosse algum
desses indivíduos mais escuros lhe descobrirem aquela pele engelhada e curtida
que revestia uns ossos finos! Havia muito militar de fardas brilhantes, e
apesar de os haver de todas as idades, a madame sorria para todos eles à espera
de um sinal que lhe parecesse corresponder aos seus anseios amorosos.
O Baron encantou-se com uma jovem, filha de um dos mais poderosos
negociantes do Rio de Janeiro, George Hilton, inglês. Catarina, lindona,
desinibida, belo porte físico, pele levemente mais tisnada do que as esquálidas
parisienses, que se divertia com os gracejos do velho francês, e com alguns mais
encontros já se demorava em conversa fiada numa das varandas do palácio, e consentido
até a deixá-lo segurar na sua mão. Catarina, achava graça a isso pensando que
seria uma oportunidade para aprender melhor a falar a língua da gente fina, o
francês, apesar de já ter o seu arranjinho com um militar, jovem como ela. O Baron
resfolgava antevendo o dia do encontro que almejava há algumas décadas,
julgando ter conquistado o coração de uma jovem e bela dama, solteira ainda,
que parecia deliciar-se com tanta patetice que o decadente conquistador lhe
contava. Ela ria, troçava, chegou a pedir-lhe para brincarem de cavalinho e
cavaleiro, sentando-se ela nas costas do velho que levava tudo aquilo à certeza
duma, em breve, relação... total.
Desesperada, sem ver que alguém retribuísse tantos olhares
“envergonhados”, madame la Baronne, esticava o que podia – quase nada – tentava
exibir o lindo broche, contava já entre algumas damas umas confidentes
descaradas, desabafou a uma delas o seu desespero, pedindo se lhe emprestava a
casa para um encontro secreto. A “parceira” logo anuiu e a Baronne tomou uma
decisão. Andava já há algum tempo sonhando com um capitão bonitoso que também
se pavoneava no palácio na sua farda elegantésima, e decidiu atacar: escreveu
um pequeno bilhete que num momento de distração introduziu num dos bolsos da
dita farda, dizendo: “Une jeune Femme est tombée amoureuse de vous”. O Capitão,
Ajudante do Estado Maior da Guarda Real, Fernando da Costa e Almeida não
conseguiu adivinhar de onde tal declaração saíra, e comentou com Catarina, a
sua jovem amante a mesma a quem o Baron contava os seus gracejos.
Estes aguardaram o desenrolar desses novos apaixonados. Quando na vez
seguinte a Baronne deslizou novo bilhete no bolso do capitão, indicando o
endereço do local do encontro, com detalhes do horário e de como devia
comparecer, este percebeu quem era a “apaixonada”, e decidiu entrar no jogo.
Disfarçadamente passeou pelo salão e foi pedir à Baronne para dançar uma polka!
A meio da dança já a Baronne, “jovem” de mais de setenta anos, resfolgava e
teve que sentar-se para não desfalecer!
Com o endereço do secreto encontro nas mãos o capitão planejou a
estratégia: Catarina deveria entregar também um bilhete ao Baron, convocando-o
para um encontro secreto, no mesmo local e num horário um pouco posterior ao da
Baronne. A porta da rua ficava fechada, mas sem chave. Devia entrar, de
mansinho, e sem alardes.
O Baron exultou.
O encontro estava previsto para daí a dois dias. Ele e ela esfuziantes,
sem contarem nada um ao outro. Chegada a ocasião ambos saíram de casa, roupas espampanantes,
seguindo cada um por seu lado.
A Baronne entrou na casa emprestada, que estava vazia. Fechou as janelas
quase todas, deixando a sala numa penumbra em que era difícil enxergar e não se
tropeçar em algum móvel, que ela teve o cuidado de afastar do caminho para não
haver acidentes, e foi refastelar-se, dengosa, cheirando mais a perfume do que
perfumaria, lábios bem pisados e rouge que simulava queimadura de churrasco, as
saias arregaçadas até perto do joelho, e o coração batendo forte!
Não tardou, ouviu a porta da rua abrir-se, paços entrarem na casa e
depois atravessarem cautelosamente a sala, onde, com dificuldade, se adivinhava
num canto uma figura feminina, amorosamente recostada, que o esperava.
Chegando perto e, ambos disfarçando as vozes para esconderem a rouquidão
da idade, rompem em troca de motes de amor.
A Baronne, excitadíssima, levanta-se, agarra no “capitão” e quando vai
para o beijar abrem-se as janelas, a sala enche-se de luz e gargalhadas.
Escondidos atrás das cortinas estavam o capitão e a sua bela amante, que
exultavam, parabenizando o idoso casal, por ao fim de tantos anos juntos ainda
trocarem juras de amor em recantos isolados.
As enrugadas faces de ambos ruborizaram-se, agradeceram os elogios e de
forma elegante, de braço dado saíram da casa.
Os relatos da época não falam mais do casal francês. Mas o caricato
episódio logo se espalhou com rapidez.
Já não estavam em condições físicas para voltarem para a sua terra e
crê-se que saíram do Rio e foram para um lugar mais tranquilo onde não houvesse
chegado a história do ridículo por que haviam passado.
Com eles foi também o Scarabée dorée, onde Madame la Baronne derramava
as suas lágrimas de amor ultrajado.
Néanmoins,
Tout est bien qui finit bien.
Conto inspirado no livro