quinta-feira, 9 de setembro de 2021

 

E foi assim


Terminada, em Lisboa, a Faculdade de Economia, e o desejo de sair do velho mundo, levaram Filipe para Angola, contratado para um cargo oficial no governo, onde a sua iniciativa e capacidade logo o tornaram conhecido e respeitado.

Em poucos anos um dos bancos locais decidiu dar-lhe uma nova oportunidade mais folgada em termos financeiros.

Com 33 anos fazia parte do grupo de diretores, quando novo desafio o levou, junto com o diretor-geral, a ir para a outra sede do mesmo banco, em Moçambique, Lourenço Marques, aqui se instalando com a família – mulher e três filhos entre os 7 e os 2 anos – quando estava a correr o ano de 1971. 

Leonor, jovem, simpática,18 anos, bonita e uma bela figura, a quem o pai faltara havia tempo, a mãe a entregara logo após ter nascido a uma velha tia, frequentava o curso Superior de Letras, também em Lisboa, quando se enamorou de um finalista do mesmo curso. O namoro foi longe demais e Leonor engravidou. Curso terminado o jovem é convocado para cumprir o serviço militar, e não tardou a ser escalado para Moçambique, em plena Guerra Colonial.

Decidem então casar e Leonor, assim que a criança nasce, vai com ela também para Moçambique na esperança de se encontrar com o marido, o que se tornou quase impossível, visto este estar em plena frente de combate no Norte da Província, e só uma ou duas vezes conseguiu licença para se deslocar à capital para estar com a mulher e filha.

Um dia recebe a última visita do marido que lhe diz que o que tinham feito era um enorme erro, ele não tinha condições nem estava preparado para sustentar uma família e decidem divorciar-se!

Leonor, sozinha numa terra onde ninguém conhecia, procura maneira de sobreviver e, com o nível de estudos que já alcançara, é admitida num banco como secretária da diretoria, com a finalidade de receber e distribuir o correio e datilografar todas as cartas dos diretores. Eficiente, educada, simpática, conquistou a aprovação de todos os chefes e colegas.

A filha, pequenina, aos cuidados de uma creche, crescia de ótima saúde, o que trazia Leonor sempre despreocupada.

*********

Chega a revolução do 25 de Abril, e as antigas colónias-províncias portuguesas se desestabilizam. A economia começa a definhar em grande rapidez, empresas a fecharem, o abandono quase total das áreas rurais e, voos ou navios lotados com destino a Portugal, com gente que queria fugir do que se adivinhava, começando por aqueles que tinham ficado sem trabalho.

Os bancos congelados nas suas normais operações financeiras, limitavam a atividade a pouco mais do que gerir os depósitos dos clientes que os sacavam para transferir o dinheiro para algo que tivesse valor. Vários membros da direção deixaram também seus cargos a caminho de algum outro futuro, o mesmo acontecendo com a maioria dos funcionários, exceção para aqueles que, nascidos naquela terra, apostavam em continuar.

Não tardou a que no banco ficassem só dois diretores e uma única secretária, a Leonor, apavorada porque não só não tinha mais família, como nem dinheiro para ir embora.

Filipe, prudente, mandara também a família para Portugal, além de estar em boas condições financeiras ainda tinha lá na terrinha os pais que logo receberam a nora e os netos com o maior carinho. 

Filipe nunca lhe havia tocado com um dedo nem demonstrado intimidade com a secretária que não fosse estritamente profissional, respeitava-a e não deixava de a admirar ainda mais pela sua postura, simpatia e até beleza.

Um dia ela entra no seu gabinete, via-se que tinha estado a chorar, e confessou o seu desespero, por não ter para onde ir nem dinheiro para isso, com uma filhinha de pouco mais de três anos.

Filipe não conhecia o seu histórico familiar, porque sobre isso ela jamais havia contado a quem quer que fosse. Só se sabia que se divorciara pouco depois de casar e que tinha uma filha.

Filipe ficou uns instantes mudo, com vontade de a abraçar, mesmo que fraternalmente, o que não seria postura apropriada, mas conseguiu dizer-lhe que não se preocupasse com isso. A viagem dela e da filha para Portugal ele a pagaria com o maior gosto e ainda escreveria para alguns amigos que lá lhe pudessem dar uma ajuda, apesar da situação estar toda arruinada, em ambos os lados.

Leonor chorou mais ainda, mas o choro era da emoção de ver grande parte do seu problema resolvido.

No fim do expediente, que era pouco, ou muito pouco, Filipe chamou-a e disse-lhe que a levava a casa. As ruas começavam a estar tumultuadas, a insegurança fazia com que todos, moçambicanos ou portugueses vivessem com medo, sem exatamente saberem que medo era.

No caminho para casa, foram buscar a filhotinha à creche e ao chegarem a casa ela convidou-o para entrar um pouco, tomarem um café e discutirem sobre a oferta que ele lhe fizera.

Era fácil. Chegando a Portugal procuraria dois ou três amigos que certamente de alguma ajuda lhe serviriam.

Filipe queria convidá-la para jantar. Mas e a criança? Ao lado da Leonor morava um casal de moçambicanos, meia idade, muito simpáticos que já por diversas vezes se tinham oferecido para tomar conta da criança, que os encantava como se fosse sua neta. E foi isso que fizeram. Deixaram a pequenita em boas mãos e saíram para jantar, num lugar tranquilo.

Filipe estava já enamorado! Conhecia-a há alguns anos, mas nunca manifestara tal sentimento.

Agarrou na mão de Leonor e disse-lhe o quanto tempo guardava essa oportunidade.

- “Mas o senhor é casado, dr. Filipe!”

- “Para começar deixe de me tratar por dr. E sobre o meu casamento, há muito que estou à espera que acabe. Como sabe, logo a seguir ao 25 de Abril mandei a família para Portugal porque o ambiente já não estava bom, e eu não queria brigar, porque amo muito os meus filhos. A solução foi separar-me um pouco e ver se as coisas se podiam arrumar, o que eu sei que jamais vai acontecer.”

Entretanto pegou na mão de Leonor, que não retirou, e disse-lhe que sentia algo de novo e muito importante na sua vida.

Pouco mais falaram. No fim do jantar foram dar uma volta de carro e aí tudo começou a acontecer. Filipe parou o carro num lugar sossegado, abraçou a Leonor e um longo beijo deu início ao que ambos, pelos vistos, há muito esperavam.

- “Isto está tudo a acabar. Daqui a dois meses é a Independência, e eu tenho que esperar até depois para entregar o banco a quem o novo governo mandar. Depois vou embora, mesmo que me convidem para ficar, direi que tenho que ir a Portugal ver a família. Uns dias antes vou transferir algum dinheiro para uma conta, sua, em Lisboa. Quando lá chegares, levanta o dinheiro todo e troca por qualquer outra moeda porque o Escudo vai desvalorizar-se depressa e muito.”

- “Mas de onde vem esse dinheiro?”

- “Não te preocupes. É assunto que eu resolvo. E fazes mais: para que nos possamos encontrar escreves uma carta para esta morada – dos meus pais – dizendo mais ou menos assim: Caro dr. Filipe. Preciso muito de falar com o senhor. Por favor, logo que possa ligue para o telefone... Cumprimentos Daniel Gomes (ex-tesoureiro do banco...)”

A troca de beijos, dentro do carro, não podia acabar tão rápido. Ao voltar para casa, Leonor, foi buscar a filhinha aos vizinhos, que dormia como os anjos, e disse a Filipe para entrar. Acabaram na mesma cama, amaram-se como se tivessem esperado por isso durante anos.

A partir daí Filipe deixou o apart-hotel onde tinha estado e ficou, SEMPRE, em casa da Leonor. Pouco tempo, porque não tardou a chegar a hora dela se ir embora.

A Portugal, terra de inveja e bisbilhotice não tardou a saber-se do novo romance e sempre há quem goste de se imiscuir na vida dos outros. Foram contar à mulher do Filipe, que após confirmar que havia romance novo, logo pediu o divórcio e abandonou os filhos em casa dos sogros, o que é evidente deixou o terreno livre ao marido!

Ao chegar a Portugal Leonor foi recebida como refugiada, e alojada num hotel. Depois sabendo que tinha já dois anos completos da faculdade providenciaram para que continuasse os estudos com as ajudas de custo do governo.

Filipe na véspera da entrega do banco fez uma magnífica habilidade: transferiu para um banco na Holanda umas centenas de milhares de dólares... Chegou a ocasião, entregou o banco e nesse mesmo dia pegou o avião e saiu de Moçambique.

Várias alegrias o esperavam: o encontro com os filhos e os pais, uma carta do Daniel e o processo de divórcio da mulher. Sentiu-se um homem livre, quase, porque a esquerda que governava o país não gostava de diretores de banco nenhum, nem de quem tinha trabalhado para o governo colonial, e ele não tardou a sentir que os revolucionários o queriam pegar.

Tinha dinheiro de sobra, os pais estavam financeiramente bem, e refugiou-se de imediato no Brasil.

Antes porém, foi à procura do Daniel. Tinha saído daquele hotel e ninguém sabia para onde fora. Falou com os amigos a quem recomendara Leonor e nem um sabia dela. Ficou à espera que outra carta chegasse em casa dos pais, e foi para São Paulo, triste, só, e sem saber do seu novo amor.

Não lhe foi difícil arranjar trabalho. O seu CV bancário era muito bom e logo estava numa posição elevada.

Visitava os filhos duas a três vezes por ano, mas não se dispunha a levá-los para o Brasil onde uma mãe ou uma avó fariam a maior falta.

Notícias da Leonor... tinha perdido. Os pais disseram-lhe que tinham chegado duas cartas para ele, de um tal Daniel e que as tinham enviado para São Paulo. Filipe mudara também de casa e nunca recebeu nada.

O tempo corria. Cinco anos se passaram.

Um dia em Lisboa, no Marquês de Pombal, sempre meio desligado, vê dentro de um “autocarro” que lhe passou ao lado... a Leonor!. Louco, consegue logo um taxi e mandou: “Siga aquele autocarro, mas não o ultrapasse. Preciso falar com alguém que lá está dentro. Guarde já o pagamento da corrida porque assim que o ónibus parar eu salto do taxi.” E deu uma nota alta ao motorista.

Nos Restauradores o ónibus parou, Filipe corre e vê Leonor a sair!

Gritou por ela. Uma, duas vezes. Leonor parou e vê um vulto correr para ela. Quando percebeu quem era deixou cair o que tinha nas mãos e foi longo, longo, o abraço e o beijo!

Sentaram-se num café, ela contou que tinha terminado o curso superior e estava professora num liceu! A filhotinha, linda, já com oito anos, muito bem.

Filipe só disse que os seus filhos estavam também crescidos, lindos.

Quando Leonor quis falar nas cartas, porque não tinha tido resposta, Filipe disse que por razões diversas se tinham perdido no Brasil, mas que sabia que ela lhe tinha escrito.

A conversa, rápida, as mãos dadas, o corações de ambos disparado, Filipe pouco mais disse do que

“QUERO CASAR HOJE CONTIGO!”

 

08/09/21

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