E foi assim
Terminada, em Lisboa, a Faculdade de Economia, e o desejo de sair do
velho mundo, levaram Filipe para Angola, contratado para um cargo oficial no
governo, onde a sua iniciativa e capacidade logo o tornaram conhecido e
respeitado.
Em poucos anos um dos bancos locais decidiu dar-lhe uma nova
oportunidade mais folgada em termos financeiros.
Com 33 anos fazia parte do grupo de diretores, quando novo desafio o
levou, junto com o diretor-geral, a ir para a outra sede do mesmo banco, em Moçambique,
Lourenço Marques, aqui se instalando com a família – mulher e três filhos entre
os 7 e os 2 anos – quando estava a correr o ano de 1971.
Leonor, jovem, simpática,18 anos, bonita e uma bela figura, a quem o pai
faltara havia tempo, a mãe a entregara logo após ter nascido a uma velha tia, frequentava
o curso Superior de Letras, também em Lisboa, quando se enamorou de um
finalista do mesmo curso. O namoro foi longe demais e Leonor engravidou. Curso
terminado o jovem é convocado para cumprir o serviço militar, e não tardou a
ser escalado para Moçambique, em plena Guerra Colonial.
Decidem então casar e Leonor, assim que a criança nasce, vai com ela
também para Moçambique na esperança de se encontrar com o marido, o que se
tornou quase impossível, visto este estar em plena frente de combate no Norte
da Província, e só uma ou duas vezes conseguiu licença para se deslocar à
capital para estar com a mulher e filha.
Um dia recebe a última visita do marido que lhe diz que o que tinham
feito era um enorme erro, ele não tinha condições nem estava preparado para
sustentar uma família e decidem divorciar-se!
Leonor, sozinha numa terra onde ninguém conhecia, procura maneira de
sobreviver e, com o nível de estudos que já alcançara, é admitida num banco
como secretária da diretoria, com a finalidade de receber e distribuir o
correio e datilografar todas as cartas dos diretores. Eficiente, educada,
simpática, conquistou a aprovação de todos os chefes e colegas.
A filha, pequenina, aos cuidados de uma creche, crescia de ótima saúde,
o que trazia Leonor sempre despreocupada.
*********
Chega a
revolução do 25 de Abril, e as antigas colónias-províncias portuguesas se
desestabilizam. A economia começa a definhar em grande rapidez, empresas a
fecharem, o abandono quase total das áreas rurais e, voos ou navios lotados com
destino a Portugal, com gente que queria fugir do que se adivinhava, começando
por aqueles que tinham ficado sem trabalho.
Os bancos
congelados nas suas normais operações financeiras, limitavam a atividade a
pouco mais do que gerir os depósitos dos clientes que os sacavam para
transferir o dinheiro para algo que tivesse valor. Vários membros da direção deixaram
também seus cargos a caminho de algum outro futuro, o mesmo acontecendo com a
maioria dos funcionários, exceção para aqueles que, nascidos naquela terra,
apostavam em continuar.
Não tardou a
que no banco ficassem só dois diretores e uma única secretária, a Leonor,
apavorada porque não só não tinha mais família, como nem dinheiro para ir embora.
Filipe,
prudente, mandara também a família para Portugal, além de estar em boas
condições financeiras ainda tinha lá na terrinha os pais que logo
receberam a nora e os netos com o maior carinho.
Filipe nunca
lhe havia tocado com um dedo nem demonstrado intimidade com a secretária que
não fosse estritamente profissional, respeitava-a e não deixava de a admirar
ainda mais pela sua postura, simpatia e até beleza.
Um dia ela
entra no seu gabinete, via-se que tinha estado a chorar, e confessou o seu
desespero, por não ter para onde ir nem dinheiro para isso, com uma filhinha de
pouco mais de três anos.
Filipe não
conhecia o seu histórico familiar, porque sobre isso ela jamais havia contado a
quem quer que fosse. Só se sabia que se divorciara pouco depois de casar e que
tinha uma filha.
Filipe ficou
uns instantes mudo, com vontade de a abraçar, mesmo que fraternalmente, o que
não seria postura apropriada, mas conseguiu dizer-lhe que não se preocupasse
com isso. A viagem dela e da filha para Portugal ele a pagaria com o maior
gosto e ainda escreveria para alguns amigos que lá lhe pudessem dar uma ajuda,
apesar da situação estar toda arruinada, em ambos os lados.
Leonor
chorou mais ainda, mas o choro era da emoção de ver grande parte do seu
problema resolvido.
No fim do
expediente, que era pouco, ou muito pouco, Filipe chamou-a e disse-lhe que a
levava a casa. As ruas começavam a estar tumultuadas, a insegurança fazia com
que todos, moçambicanos ou portugueses vivessem com medo, sem exatamente
saberem que medo era.
No caminho
para casa, foram buscar a filhotinha à creche e ao chegarem a casa ela convidou-o
para entrar um pouco, tomarem um café e discutirem sobre a oferta que ele lhe
fizera.
Era fácil.
Chegando a Portugal procuraria dois ou três amigos que certamente de alguma
ajuda lhe serviriam.
Filipe
queria convidá-la para jantar. Mas e a criança? Ao lado da Leonor morava um
casal de moçambicanos, meia idade, muito simpáticos que já por diversas vezes
se tinham oferecido para tomar conta da criança, que os encantava como se fosse
sua neta. E foi isso que fizeram. Deixaram a pequenita em boas mãos e saíram
para jantar, num lugar tranquilo.
Filipe
estava já enamorado! Conhecia-a há alguns anos, mas nunca manifestara tal
sentimento.
Agarrou na
mão de Leonor e disse-lhe o quanto tempo guardava essa oportunidade.
- “Mas o
senhor é casado, dr. Filipe!”
- “Para
começar deixe de me tratar por dr. E sobre o meu casamento, há muito que estou
à espera que acabe. Como sabe, logo a seguir ao 25 de Abril mandei a família
para Portugal porque o ambiente já não estava bom, e eu não queria brigar,
porque amo muito os meus filhos. A solução foi separar-me um pouco e ver se as
coisas se podiam arrumar, o que eu sei que jamais vai acontecer.”
Entretanto pegou
na mão de Leonor, que não retirou, e disse-lhe que sentia algo de novo e muito
importante na sua vida.
Pouco mais
falaram. No fim do jantar foram dar uma volta de carro e aí tudo começou a
acontecer. Filipe parou o carro num lugar sossegado, abraçou a Leonor e um
longo beijo deu início ao que ambos, pelos vistos, há muito esperavam.
- “Isto
está tudo a acabar. Daqui a dois meses é a Independência, e eu tenho que
esperar até depois para entregar o banco a quem o novo governo mandar. Depois
vou embora, mesmo que me convidem para ficar, direi que tenho que ir a Portugal
ver a família. Uns dias antes vou transferir algum dinheiro para uma conta,
sua, em Lisboa. Quando lá chegares, levanta o dinheiro todo e troca por
qualquer outra moeda porque o Escudo vai desvalorizar-se depressa e muito.”
- “Mas de
onde vem esse dinheiro?”
- “Não te
preocupes. É assunto que eu resolvo. E fazes mais: para que nos possamos
encontrar escreves uma carta para esta morada – dos meus pais – dizendo mais ou
menos assim: Caro dr. Filipe. Preciso muito de falar com o senhor. Por favor,
logo que possa ligue para o telefone... Cumprimentos Daniel Gomes
(ex-tesoureiro do banco...)”
A troca de
beijos, dentro do carro, não podia acabar tão rápido. Ao voltar para casa,
Leonor, foi buscar a filhinha aos vizinhos, que dormia como os anjos, e disse a
Filipe para entrar. Acabaram na mesma cama, amaram-se como se tivessem esperado
por isso durante anos.
A partir daí
Filipe deixou o apart-hotel onde tinha estado e ficou, SEMPRE, em casa da
Leonor. Pouco tempo, porque não tardou a chegar a hora dela se ir embora.
A Portugal,
terra de inveja e bisbilhotice não tardou a saber-se do novo romance e sempre
há quem goste de se imiscuir na vida dos outros. Foram contar à mulher do
Filipe, que após confirmar que havia romance novo, logo pediu o divórcio e
abandonou os filhos em casa dos sogros, o que é evidente deixou o terreno livre
ao marido!
Ao chegar a
Portugal Leonor foi recebida como refugiada, e alojada num hotel. Depois
sabendo que tinha já dois anos completos da faculdade providenciaram para que
continuasse os estudos com as ajudas de custo do governo.
Filipe na
véspera da entrega do banco fez uma magnífica habilidade: transferiu para um
banco na Holanda umas centenas de milhares de dólares... Chegou a ocasião,
entregou o banco e nesse mesmo dia pegou o avião e saiu de Moçambique.
Várias
alegrias o esperavam: o encontro com os filhos e os pais, uma carta do Daniel
e o processo de divórcio da mulher. Sentiu-se um homem livre, quase, porque a
esquerda que governava o país não gostava de diretores de banco nenhum, nem de
quem tinha trabalhado para o governo colonial, e ele não tardou a sentir que os
revolucionários o queriam pegar.
Tinha
dinheiro de sobra, os pais estavam financeiramente bem, e refugiou-se de
imediato no Brasil.
Antes porém,
foi à procura do Daniel. Tinha saído daquele hotel e ninguém sabia para
onde fora. Falou com os amigos a quem recomendara Leonor e nem um sabia dela.
Ficou à espera que outra carta chegasse em casa dos pais, e foi para São Paulo,
triste, só, e sem saber do seu novo amor.
Não lhe foi
difícil arranjar trabalho. O seu CV bancário era muito bom e logo estava numa
posição elevada.
Visitava os
filhos duas a três vezes por ano, mas não se dispunha a levá-los para o Brasil
onde uma mãe ou uma avó fariam a maior falta.
Notícias da
Leonor... tinha perdido. Os pais disseram-lhe que tinham chegado duas cartas
para ele, de um tal Daniel e que as tinham enviado para São Paulo. Filipe
mudara também de casa e nunca recebeu nada.
O tempo corria.
Cinco anos se passaram.
Um dia em
Lisboa, no Marquês de Pombal, sempre meio desligado, vê dentro de um
“autocarro” que lhe passou ao lado... a Leonor!. Louco, consegue logo um taxi e
mandou: “Siga aquele autocarro, mas não o ultrapasse. Preciso falar com
alguém que lá está dentro. Guarde já o pagamento da corrida porque assim que o
ónibus parar eu salto do taxi.” E deu uma nota alta ao motorista.
Nos
Restauradores o ónibus parou, Filipe corre e vê Leonor a sair!
Gritou por
ela. Uma, duas vezes. Leonor parou e vê um vulto correr para ela. Quando percebeu
quem era deixou cair o que tinha nas mãos e foi longo, longo, o abraço e o
beijo!
Sentaram-se
num café, ela contou que tinha terminado o curso superior e estava professora
num liceu! A filhotinha, linda, já com oito anos, muito bem.
Filipe só
disse que os seus filhos estavam também crescidos, lindos.
Quando
Leonor quis falar nas cartas, porque não tinha tido resposta, Filipe disse que
por razões diversas se tinham perdido no Brasil, mas que sabia que ela lhe
tinha escrito.
A conversa,
rápida, as mãos dadas, o corações de ambos disparado, Filipe pouco mais disse
do que
“QUERO
CASAR HOJE CONTIGO!”
08/09/21
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