quarta-feira, 15 de setembro de 2021

 

Às voltas com Voltaire


 Apesar de ter sido o mais influente filósofo francês do século XVIII, haverá muita gente que já tenha ouvido o nome de Voltaire, mas muitos não sabem se é algum jogador de futebol e outros ainda que se dedicam a estudar a sua obra, a sua filosofia, a sua herança; mas a imensa maioria não tem a mínima ideia de quem se trata.

Hoje vou só escrever umas anedoctes e remarques da vida do grande mestre que mostram as caturrices que normalmente ajudam a definir a personalidade desse tipo de pessoas, e o seu espírito crítico. Como todos os génios, tinha também as suas fraquezas e não se acanhava em as mostrar.

Voltaire viveu desde 1760 no seu chateau em Ferney, quase junto à fronteira com a Suíça, onde, nas obras que mandou fazer quando comprou a propriedade, incluiu um teatro privado. Ali recebia os seus admiradores e, um dos seus grandes prazeres era ele mesmo representar, peças dele ou de outros e disso se ocupava com imenso ardor e minúcia.

Sempre queria que a roupa a usar na representação estivesse pronta no mínimo com oito dias de antecedência, e dava um trabalho insano aos costureiros para que atendessem aos mais ínfimos detalhes.

Um dia decidiu representar Cícero nas Catilinárias, quando este em 63 a.C. no Senado de Roma pronunciou um celebre discurso contra a conspiração pretendida pelo senador Catilina,[que logo de início começa:

“Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? Não vês que tua conspiração foi dominada pelos que a conhecem?”

 

Cícero “arrasando” Catilina no Senado Romano (pintura do sec. XIX)

Desde a manhã da representação, Voltaire já se vestira como um senador romano e foi andar pelo jardim recitando o seu papel, que interrompia para pôr algumas questões ao seu jardineiro. Este, espantado pela indumentária do mestre não conteve uma gargalhada.

Voltaire não achou a menor graça: “O que você acha de extraordinário na minha veste? Cícero andava assim vestido como eu pela sua horta antes de ir para o senado, e eu vou-o representar esta noite. Você acha que eu devia fazer duas toilettes?

Voltou para dentro de casa de mau humor e durante muito tempo não conseguia perdoar ao jardineiro ter dado uma gargalhada no “nariz” de Cícero.

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Voltaire gostava muito dum filhote de águia que tinha preso com uma corrente no pátio do seu castelo. Um dia a aguiazinha lutou contra dois galos e ficou gravemente ferida.

Desolado, mandou um emissário expressamente a Genève com ordem de trazer um homem reconhecido como hábil médico de animais.

Impaciente, ficou correndo do ninho da águia para a janela do seu quarto de onde descortinava a grande estrada que deveria trazer o médico. Enfim lá vê o seu mensageiro trazendo atrás o Esculápio tão desejado. Dá um grito de alegria, corre para o receber, acolhe-o da maneira mais distinta, pródigo em pedidos e promessas para o interessar em favor do seu doente.

O camponês maravilhado por tal recepção, a que não estava acostumado, examina as feridas do bichinho.

Voltaire inquieto, procurava ler nos olhos do médico os seus temores ou as suas esperanças. O médico declara então, com ar de competência, que não podia se pronunciar senão após que o doente se levantasse, promete voltar no dia seguinte e retirou-se depois de ser generosamente pago.

Até ao dia seguinte Voltaire andou nervosíssimo; a questão era que o doente não apresentava qualquer melhora.

A primeira questão que Voltaire, todas as manhãs, punha a uma servente, chamada Madeleine, encarregada de o servir logo desde o seu despertar, era:

- “Como está a minha pequena águia?

– Bem docemente meu Senhor, bem docemente.”

Um dia responde-lhe, a rir:

- “Ah! Meu Senhor, o vosso filhote de águia já não está doente.

– Ele curou-se! Que felicidade!

– Não, ele morreu.

 – Morto o meu filhote de águia! E você me anuncia esta notícia a rir-se?

– Pela minha fé meu Senhor, ele estava tão magro! Mais valeu que tivesse morrido.

– “Como magro?” Grita Voltaire, furioso. “Bela razão! Você tem que me matar também porque eu sou magro. Olha a debochada! Rir da morte do meu pobre pássaro porque ele estava magro! Como você tem o cu gordo pensa que não há gente da sua espécie que tenha direito à vida? Sai, sai daqui!”

Madame Denis, sua sobrinha, acorreu aos gritos do tio e perguntou pela razão da sua cólera. Voltaire contou-lhe, sempre murmurando “Magro! Magro! ... É preciso também que me matem...” E exige que Madeleine seja despedida.

A sobrinha, complacente, finge obedecer, e manda a pobre garota que se esconda dentro do palácio.

Passados dois meses Voltaire perguntou como ela estava.

- “Está muito infeliz – diz-lhe Madame Denis – não conseguiu arranjar trabalho em Genève desde que se soube que ela tinha sido despedida do palácio de Ferney.”

 – “ É culpa dela. Porquê rir-se da morte da minha pequena águia? No entanto não é preciso que ela morra de fome; mande-a voltar; mas que ela jamais se apresente na minha frente, entendeu?

– Oh! Meu tio, ela terá esse cuidado.

Madeleine sai do esconderijo, evitando com todo o cuidado não se encontrar com o Mestre. Mas um dia, Voltaire ao sair da mesa encontra-se cara a cara com ela. Madeleine, proibida de um tal encontro, cora muito, baixa os olhos e pretende balbuciar alguma desculpa.

“Não falemos mais nisso - diz-lhe Voltaire – mas pelo menos lembre-se que não é preciso matar tudo que seja magro.”

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Em 1778 Voltaire foi a Paris e hospedou-se em casa do Marquis de Villette. Todo o Paris queria ver esse grande homem que tanto ilustrara o seu século como o seu país. Um dia várias damas da corte foram a casa do Marquês para terem o prazer de o verem. Voltaire estava num acesso de mau humor e recusou-se a aparecer no salão, mas forçado a ceder às instâncias de madame de Villette que lhe implorava como um favor que ele se mostrasse mesmo num pequeno instante. Ele então desceu, abriu a porta do salão deu duas ou três voltas, e disse:

- “Aqui tendes, mesdames, eis o urso, contentai o vosso desejo, aqui está. Olhem bem!”

E bruscamente voltou para o seu quarto!

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Num outro dia, apesar dos pedidos do Marquês, decidiu ir a pé até à Academia. Ao passar em frente ao Louvre uma mulher reconheceu-o e lança-se aos seus pés gritando: “Meus amigos, é o vingador dos infortunados Calas *, prostremo-nos na sua frente.” Esta cena atraiu uma multidão desejosa de o admirar e abençoar. A emoção que Voltaire sentiu forçou-o a voltar para trás. Confessou que nunca tinha sentido uma emoção tão desagradável e tão deliciosa!

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Comentários e pensamentos:

- O cardeal Lecamus * (1632-1707) dizia um dia a um cornudo: “Monsieur, vale mais ser Cornelius Tacitus do que Publius Cornelius, e à duquesa de Lesdiquières – que vendia o seu leito – quando os trabalhadores vendem as suas ferramentas, é porque o negócio não vai bem.”

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- “Turco, tu acreditas em Deus através de Maomé, indiano por Fohi *, japonês por Xaca *, etc. Oh! Miseráveis! Por que não acreditais em Deus por ti mesmo?”

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- Não é a superioridade do génio que faz um grande ministro; é o caráter e o temperamento; é um corpo infatigável, e coragem de espírito. A maioria dos homens vê bem o que deve ser feito, mas é a intrepidez da alma que determina a fazer o que é mais raro e difícil. Mentira, enganação, vingança, falsos discursos, o desprezo por tudo que diz respeito aos homens, eis o caráter. Clareza, ciência, invenções, transparência, eloquência, eis o espírito. A alma tem um toque sobre a qual trabalham cinco martelos, cada um trabalhando em seu diferente lugar. Não há nenhum ponto matemático para que a alma seja estendida, e por isso é material. Devo espoliar um ser de todas as suas propriedades que incomodam os meus sentidos, por que a essência desse ser me é desconhecida? Pode ser que nos tornemos qualquer coisa depois da nossa morte. Uma lagarta também duvida que venha a tornar-se uma borboleta?

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- Tullius Hostillius *, era um camponês. Tarquínio o velho *, comerciante, Servius Tullius *, escravo. Dos sete reis antigos de Roma, eis aqui três plebeus. A nobreza é uma quimera insultuosa para o género humano; ela supõe que há homens formados por um sangue melhor do que outros.

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- Augusto II, rei da Polónia era um homem forte, e quando foi a Viena visitar o rei Leopoldo, apareceu-lhe o seu confessor. Augusto atirou-o pela janela.

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- Uma madame dizia: reverendo padre, para ter filhos, a que santo aconselha dirigir-me? – Madame, eu nunca peço a outros o que posso fazer por mim mesmo!

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Os homens não nascem maus, todas as crianças são inocentes, os jovens confiantes e pródigos nas suas amizades, os casados amam os seus filhos, a piedade está em todos os corações, somente os tiranos corromperam o mundo. Depois inventaram os padres para se oporem aos tiranos; os padres foram piores. O que resta aos homens? A filosofia.

Notas:

Tudo isto foi recolhido num pequeno livro “PENSÉES, REMARQUES ET OBSERVATIONS DE VOLTAIRE”, impresso em Paris, An X – 1802. “Obra inédita, após a morte de Voltaire, esta recolha de aspetos da sua vida ficou em mãos de M. de Villevieille, e ninguém queria publicar para não comprometer a glória deste grande homem, que seria como apresentar Voltaire em negligé! Mas isso seria um crime de lesa-literatura privar o público nem que fosse de uma única linha de quem foi justamente célebre.” E assim se publicou 24 anos após a sua morte.

Este pequeno livro de 200 páginas era de um dos meus bisavôs. Estava muito estragado e hoje, depois de um caseiro restauro, está para durar mais uns séculos. Inteirão!

 

* Quem se interessar em saber quem foram os cidadãos ou divindades citadas... procure na Internet. Tem muita coisa.

 

12/09/21

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