domingo, 27 de junho de 2021

 

O  DNA

 

Desde muito jovem Gil se interessava por “brincar” de químico. O seu pai, engenheiro químico conceituado, que falecera quando ele tinha só oito anos, um dia deu-lhe de presente uma caixa, cheia de tubos de ensaio, placas e alguns pós e reagentes inofensivos para que uma criança pudesse começar a brincar de “analista”!

Dois anos depois, a família, agora só a mãe, Gil com dez e uma irmã de oito anos, Manuela, tinha suficientes recursos, mas com a falta do dono da casa, mudou-se para um andar mais simples, em Lisboa, onde nunca faltou, pelo menos, uma empregada, que pudesse fazer quase tudo.

Fizeram saber pelas terras das suas origens, na Beira Alta, que precisavam de empregada e não tardou a que se apresentasse uma jovem, simpática, filha de gente humilde, a Conceição, nos seus saudáveis e rijos vinte anos.

Gil entrara no liceu, aluno responsável, sempre interessado em seguir as pisadas do pai, crescia em “físico e sabedoria”, pesquisava cada vez mais o mundo quase ilimitado das químicas, fazia experiências na cozinha de casa, sem descuidar de exercícios físicos que lhe davam saúde, como futebol e outros jogos em que tinha sempre lugar garantido, até porque tudo levava a sério..

Ao fim de alguns anos, poucos, a mãe da família, vendo o bom comportamento, simplicidade e bons modos da empregada, decidiu, de acordo com os filhos, que não estava cero que ela não compartilhasse com eles as refeições, à mesa. De entrada Conceição sentiu-se constrangida, mas também não tardou a sentir-se integrada naquela família.

Gil foi crescendo. Aos dezesseis, um rapagão, boa pinta, pleno inverno, frio, acabou cansado e suado de um jogo duro e, como sempre voltou a pé para casa. Apanha uma grande chuvada, entrou em casa tiritando de frio e com o nariz a mostrar que, no mínimo se teria constipado.

Jantou bem, agasalhou-se e foi direto para a cama. De manhã estava com um pouco de febre, o tempo não melhorara e deixou-se ficar em casa. Tomou um qualquer analgésico que lhe deu para disfarçar a febre, mas quando chegou ao fim do dia parecia que a constipação se transformara numa gripe e forte. A febre subiu bem e dispôs-se a no dia seguinte ir ao hospital.

A Conceição atenta ao estado do “menino”, levava-lhe ao quarto um chá quente, com mel, obrigava-o a tirar a temperatura, e via-se que estava preocupada, assim com todos naquela casa.

A meio da noite, já todos a dormir, levantou-se para ver como estava o doentinho. Muito quente.

Conceição tinha visto um filme em que um cowboy chega a uma propriedade lá nos cafundós do Far-Oeste americano, cheio de febre, quase a cair do cavalo, e deram-lhe guarida. Durante a noite, a filha dos fazendeiros “apiedou-se” do doente e para o “ajudar” meteu-se na cama com ele para o aquecer. De manhã o cowboy estava quase novo! E o namoro com a bonitona (creio que era a famosa CC) começou aí.

Conceição assegurou-se que a Manuela e mãe estavam bem nos braços de Morfeu, despiu o roupão e só de camisola (a camisa de noite) de tecido fino meteu-se na cama do gripado para o aquecer.

Gil acordou, sentiu aquele corpo quente a abraçá-lo e começou logo a perceber que algo de novo estava acontecendo com ele! Ambos foram se ajeitando até que o, há meia hora, impensável, acontecesse, sem que algum dissesse uma única palavra! E assim estiveram até de madrugada, quando Conceição se retirou, meio envergonhada, antes que a “patroa’ e a filha acordassem. Antes de se afastar um longo beijo selou aquele encontro.

Gil ficou na cama, adormeceu sorrindo e só acordou por volta do meio-dia... sem febre. Passou a noite a sonhar com algo que lhe parecia o paraíso de Alá e esqueceu até a química dos tubos de ensaio. A química com que agora se estreava era muito mais interessante do que reagentes, ácidos ou alcalinos, e ficou a pensar que aquele “laboratório” era mais do que desejável. Tudo o que se passara e mais aquele beijo deixou-os ligados, mas ultrapassar essa situação era difícil para ambos.

Nesse dia, à cautela, Gil ainda não saiu, deixou-se andar pela casa sempre com um olho revirado para o lado mais interessante. Conceição um pouco cabisbaixa não queria encará-lo. Tinha sido loucura. Mas loucura que desejava também repetir.

Gil deitou-se cedo. Pediu à Conceição que, quando pudesse lhe levasse um chá bem quente.

O chá só chegou quase à meia noite. Ninguém o bebeu. Havia outros ensaios daquela “química” da véspera que tinham que se aprimorar. E foram.

Não podia ser todos os dias, mas a festa foi-se prolongando, com intervalos mais ou menos regulares, durante uns quatro anos. Sem o dizerem, sabiam que se amavam.

Conceição, apesar de mandar algum dinheiro aos pais, a verdade é que tantos anos sem gastar, tinha conseguido juntar um razoável pecúlio. Foi visitar os pais lá à terra onde encontrou um antigo colega da escola primária, Sebastião, agora responsável pela manutenção do equipamento duma grande adega. Quando do encontrou, viu-se que o seu coração havia disparado! Ela percebeu, e sentiu ali um futuro sossegado. Sebastião partiu à procura e encontrou trabalho, com boa remuneração, em Lisboa. Não tardou o namoro e logo casaram.  

Gil já na Universidade, engenharia, ofereceu-se para padrinho do casamento. Ele e a irmã bancaram o custo da modesta festa. Dez anos de uma pessoa dedicada (e como!), quase da família, merecia. 

Conceição, vestida de noiva, ia bonita, elegante. Uma bela noiva.

Pouco antes de cerimónia, um ou dois dias... a comovente e enérgica despedida do “padrinho e afilhada”, com a certeza que novos encontros nunca mais iam acontecer. Gil jurou que jamais a perturbaria.

Cerca de um ano passado Conceição foi visitar a família amiga, e mostrar o filhote acabado de nascer! Mais uma vez o quase senhor engenheiro se ofereceu para apadrinhar a criança. E prometeu que o havia de amparar até ele entrar numa universidade, o que foi grande alegria para todos.

Pretendentes a ocupar o lado vago da cama do engenheiro, surgiam com frequência, mas só algumas experimentavam aquele colchão, porque a maioria delas não passava dos primeiros testes de conversa.

Gil mantinha-se solteiro, estava bem assim, apesar de não esquecer a “sua” Conceição, foi sendo promovido até alcançar o lugar de engenheiro chefe.

Não esquecia o afilhado. Ia muitas vezes buscá-lo a casa dos pais, passeava com ele, mostrava-lhe a fábrica, o que encantava o pequeno, e incutindo naquela jovem cabecinha que a engenharia química era um bom projeto de vida.

Tal como seu pai lhe tinha feito, logo que viu que podiam ter interesse, ia dando uns brinquedos temáticos, e brincavam os dois juntos.

Era grande a afeição; o pequeno João, foi crescendo, o padrinho, como afirmara, subsidiava todas as despesas de estudos, até que viu o garoto entrar também na universidade.

Tão juntos andaram sempre desde que ele era bem pequenino que as pessoas pensavam que seria seu sobrinho ou até filho. Havia até quem os achasse parecidos!

João, engenheiro, foi trabalhar na mesma empresa que o padrinho. Um dia Gil convenceu-o de que era bom fazer um check-up de saúde. Melhor prevenir do que remediar. Quando foram fazer as análises, sem que o afilhado notasse, mandou também fazer o exame de DNA dos dois.

Poucos dias depois vem o resultado. De saúde o jovem engenheiro estava em perfeitas condições. Jovem, forte, boa presença, perfeito.

E o DNA? Gil desconfiava do resultado! E ali estava. João era seu filho! Agora, o que fazer? NADA.

Ficou chocado. Não queria que tivesse sido assim. Não podia dizer a ninguém, nem aos seus, nem aos pais do João. Ia estragar a felicidade em que vivia o casal. Muito menos ao seu “filho”.

Gil, com cinquenta anos, principal sócio da empresa onde começara a sua vida profissional, já tinha como coadjutor o novo engenheiro, e carregava na consciência o peso de que não sabia como livrar-se.

Um dia uma notícia triste: Sebastião, nas suas deslocações pelo interior, dando assistência técnica a diversas empresas, sofreu um terrível acidente. Um caminhão descontrolado, numa curva, embateu violentamente de frente no seu carro. Sebastião teve morte quase imediata.

Gil e a família fizeram o que foi possível para ampararem a Conceição e o filho. Mas na cabeça de Gil um novo tormento ocupava. Visitava assiduamente a viúva! Deixou passar algum tempo e quando viu que não era mal recebida, fez a proposta:

- Conceição. Nós nos amámos. Na altura eu não tinha meios de criar uma família e creio que seria um choque social, tanto para o meu quanto para o teu lado. Mas eu jamais te esqueci. Fiquei feliz quando encontraste um homem bom que te deu uma família. Agora, que somos ambos livres venho propor-te algo muito sério. Quero casar contigo. Não me preocupa que haja uma diferença de idade entre nós. Estamos suficientemente maduros para podermos tomar uma decisão sem nos precipitarmos. Nunca casei, apesar de não faltarem pretendentes. Mas era em ti que eu pensava. E se com saúde teremos ainda muito tempo pela frente.

Conceição ficou como que paralisada. A verdade é que ela também não o esquecera apesar de ter sido sempre esposa e mãe exemplar. Pediu um tempo para pensar. E teria que ouvir o filho.

Quando, por fim se decidiu, e disse o tão esperado “sim”, Gil chamou o afilhado, para na sua frente “oficializar” o pedido de casamento. João disse à mãe que o padrinho toda a vida se comportara como pai dele, que achava bem, mas que era assunto que só a ela cabia decidir.

Reunidos, havia agora que abrir o jogo todo!

E contou o conhecimento que tivera com o resultado do exame de sangue:

- João, tenho pela tua mãe a maior consideração e saudade. Guardei, até hoje, por muitos anos o que só agora vos posso dizer. Nunca o disse a ninguém. Nem a ela. O exame de DNA, que sem tu saberes fizemos os dois, quando te disse que devias fazer um check-up, mostrou que tu eras meu filho. Não penses, NUNCA, mal da tua mãe. Ela, na sua modéstia, foi sempre uma senhora. Depois que casou nunca lhe faltei ao respeito. Nem antes. Só que quando ela trabalhou em minha casa, ambos jovens... aconteceu., e sei que nos amávamos. Por isso nunca casei. Apadrinhei, por retribuição do tanto tempo que ela esteve conosco, o seu casamento e quando nasceste, sem suspeitar de nada, também quis ser teu padrinho porque sabia que teria condições de te dar toda a educação possível.

Tu Conceição, talvez suspeitasses, mas sempre te portaste com grande dignidade. Grande senhora.

Ela devia saber, ou desconfiar, sem nunca o ter denunciado, quem era o pai daquele filho querido.

- Peço-vos que me perdoeis se vos magoo. Talvez tivesse sido preferível que este segredo fosse comigo para a terra. Ao mesmo tempo também pensei que a verdade, mesmo quando dói deve ser posta na mesa.

Mas agora que a tua mãe aceitou em se unir a mim, a nossa família está completa. Recordo, com saudade e amizade o Sebastião, que sempre muito considerei. Tenho a certeza que ele teve uma vida de família tranquila. Mas a vida continua, e o pedido que fiz não envolve a mínima hipótese desrespeito.

Sei que com tudo o que se tem passado podemos ainda ser felizes, mais agora com a vantagem dos netos, os teus novos filhos, João, de quem tanto gosto. Vou poder sentar os netos no colo e acarinhá-los sem vergonha.

Andei tão preocupado que cheguei um dia a pensar ir embora. Não sabia para onde. Desaparecer. O peso que carreguei sozinho tantos anos foi difícil muito pesado.

João ouviu tudo com imenso espanto. Não sabia que mais dizer, mas atreveu-se a fazer uma pergunta:

- Se eu não sou filho do Sebastião, deveria trocar de nome!?

- Não João. Deixa o teu pai descansar em paz. Não vejo vantagem nenhuma nisso. Podes, se assim o entenderes acrescentar o meu sobrenome aos teus filhos. Um dia, talvez, te perguntem porquê. Talvez.

A seguir disse que, logo que casassem, ia fazer um a dois meses de férias. Viajar, para lugares tranquilos, estarem juntos, muito juntos, depois de mais trinta anos separados. No regresso iriam curtir e ajudar a cuidar dos netos e, se Deus quiser, esperar bisnetos! João sabia como assumir o trabalho e a administração da empresa.

E mais, já tinha feito, há um bom tempo, em cartório, a transmissão das suas cotas para o seu filho João. Agora só faltava reconhecê-lo igualmente como filho e herdeiro.

No casamento, que não demorou, pouca gente presente. A irmã Manuela, segredou ao ouvido do irmão:

- Eu sempre desconfiei que entre vós havia algo muito sério! Era difícil disfarçar! Penso até que a nossa mãe também o deve ter percebido, mas como a Conceição fazia parte da família, nunca disse uma só palavra.

 

Quem espera sempre alcança!

 

22/06/21

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