SAMUEL E GERTRUDES
Esta história tem o leit-motif baseado num acontecimento verídico, de que creio já ter
escrito sobre isso (já nem sei), e enquadrado na época em que aconteceu, serve
para lembrar o que muitos já esqueceram e a maioria nem conheceu.
Estamos aí nos anos 40 do século XX. Portugal não
tinha televisão e a rádio era quem imperava.
Em todos os cantos havia um rádio desde os que
captavam só um ou dois comprimentos de onda, a outros com o velho OM e diversos
comprimentos de OC, onde se tinha a possibilidade de se captar a BBC e até as
emissões da Rússia para os comunas, em português, mesmo cheios de ruídos pelo
meio.
Havia coisa simples e luxuosos, bonitos, com gira discos, e a rádio era o grande veículo
de publicidade da época.
Samuel, vindo das serranias transmontanas nos seus
quinze anos, arranjou trabalho numa quinta em Cantanhede. Trabalhador,
decidido, foi-se destacando entre todos que lá trabalhavam, melhorando os seus
conhecimentos, gostava de ler, e os proprietários ajudaram-no a progredir. Era
já uma espécie de “faz-tudo” e os patrões fizeram com que acabasse até
por tirar a carta de condução.
A filha única da casa casou com um médico
alentejano, de muito antiga família, não tardou a herdar a quinta porque cedo
os pais faleceram, e o Samuel continuou a fazer parte daquela casa.
Pouco tempo passado, o médico, também com bons
meios de fortuna que incluía um magnífico carro, conduzido orgulhosamente pelo
Samuel, que estava a aproximar-se, em alta velocidade, dos trinta e alguns,
solteirão, mas sempre de olho e suspiros ao lado de todas as criadas, não só as
da casa como das vizinhas.
Vivia sonhando com uma daquelas belezas, num desassossego, a ver os anos
a passarem e ele a dormir sempre com os pés frios!
Para casa dos patrões entrou um dia nova
empregada, minhota, corpo são, boa postura, uns vinte e poucos anos, sorriso
franco, mas... nada de brincadeiras!
Samuel, transmontano arretado (como diriam
os brasileiros), quando viu chegar aquela maravilha,
estremeceu, e o seu pensamento não desgrudou mais da Gertrudes, que começou a
sentir-se acuada. Não que o galã fosse atrevido, mas sentia que aquele olhar
dele a incomodava.
Foi contar à patroa, que lhe assegurou que nada se
iria passar, e achou por bem chamar o chauffeur
a quem pôs abertamente o assunto.
Samuel, corado, confessou que estava apaixonado
pela nova garota, mas não sabia como lhe dizer e tinha até receio que ela se
magoasse e fosse embora.
Dona Fernanda tranquilizou-o, dizendo que ia
conversar com a Gertrudes.
Encurtando razões, e não perdermos mais tempo em
considerandos, a jovem mostrou-se disposta a encarar a situação, desde que
houvesse respeito. Evidente!
O namoro começa e, não tardou a ambos irem expor a
situação aos patrões, dizendo que queriam casar, mas sem deixarem de trabalhar
naquela casa que os tratava muito bem.
Proposição aceite marcaram o casório, convidaram
os patrões para padrinhos, que até lhes emprestaram o carro, o tal, magnífico,
para passearem uns dias pelos arredores da quinta que possuíam um pouco acima
de Coimbra.
Samuel estava louco para ter aquela Afrodite nas
mãos! Ela mais comedida.
Saíram da igreja, um rápido beberete em casa dos
patrões e logo que puderam instalaram-se no carro, de luxo, e seguiram viagem.
Samuel conduzia com as ventas bem abertas por onde
entravam eflúvios de fêmea, perfumada, que seguia elegantíssima a seu lado, e
até lhe perturbavam a visão.
Estava tão excitado que não aguentou. Saiu da
estrada principal, entrou numa de terra e parou junto a um bosque onde imaginou
que ficariam escondidos.
Como um tigre faminto salta em cima da, já,
esposa, para, ali mesmo consumar o ato para que Deus os criou e se
reproduzissem.
Ela reclamou que estavam na estrada, mas Samuel só
ouvia o seu coração a palpitar ferozmente e... zás. Aconteceu.
Azar o deles. Passou alguém que estranhou ver um
carro de alto luxo ali parado naquele caminho, e foi chamar a polícia a pensar
que alguém o tinha roubado. A polícia, ao chegar, dá com um casal em plena
farra conjugal!!!
Samuel tenta ajeitar as calças, a Gertrudes baixa
as saias já todas exovalhadas, rompe num choro convulsivo, envergonhada, e a polícia
levou-os, mais o carro, para a próxima esquadra (delegacia).
Um casal sem posses, num carro caríssimo,
concluíram que tinha sido roubado?!?! Telefonam ao proprietário, conhecido na
região, dizendo que encontraram o seu carro, parecia ter sido roubado por um
sujeito que se chama Samuel, e ele responde que o carro fora emprestado. Não
havia nada de mal.
O polícia conta então o que o casal estava a
fazer... atentado ao pudor, etc., e o patrão, médico psiquiatra, muito
conhecido, foi até lá resolver a maka.
Gertrudes, chorava, escondia a cara e dizia que
não queria mais ver aquele homem com quem acabara de casar.
Samuel, então, nem abria a boca.
Levados para casa, envergonhados, estiveram, os
noivos um tempo sem se falarem. O bom psiquiatra, com muito trabalho, acabou
por resolver o problema e dizer, várias vezes, ao motorista que “fosse com
calma, carinho, enfim maneirasse”.
Salvou-se o casamento, e eles ficaram a viver numa
pequena casa anexa à principal da quinta. Socegados!
Samuel, vivendo com a esposa, com quem já se
entendia muito bem, logo que pôde comprou para a bem-amada um rádio que, se a
conversa não fluísse, era ligado e quebrava o gelo que às vezes se formava.
Ouviam música, novelas radiofónicas que a Gertrudes fazia por não perder, e ao
domingo o futebol. E todos os anúncios, que não faltavan.
Um dia Samuel aparece, ao fim do dia, cheio de
frio e febre, mas como tinham ouvido uma porção de vezes no “assistente
radiofónico” uma cantiguinha:
O senhor
está constipado
e ficou mal de repente
porque não teve cuidado
porque foi imprevidente.
Para o mal
cujo motivo
está na chuva, frio ou sol
qual o melhor preventivo?
Formitrol, Formitrol, Formitrol!
Foram perguntar ao médico se deviam tomar aquilo.-
Pode tomar, sim, mas agasalhe-se bem e
beba também uns copos!
O médio trabalhava em Lisboa, onde tinha outra
bela casa, para onde ia a semana toda, sempre acompanhado da esposa e o casal
motorista – empregada.
Samuel tudo quanto podia fazer para agradar à sua amada,
fazia. Um dia ouviu novo anúncio no rádio:
Sapataria
Vinte e Oito
Eis a melhor
da capital,
Cujo calçado
é um primor
E sem favor
não tem rival
Informou-se onde ficava a sapataria, e para lá correu para comprar o mais bonito par se sapatos que encontrasse para a sua Gertrudes, a quem a barriga ia crescendo, que os recebeu com largo e amoroso sorriso!
Para nada
pedirem de extra aos patrões, andavam há tempos a dar uma arrumação na casa
“deles”, na quinta, até porque se a pusessem bonita poderiam, um dia, convidar
o doutor José e dona Fernanda para um jantarzinho. Seria simpático.
E entra o rádio a aguçar-lhes a ideia: Que tal um candeeiro por cima da mesa? Ficaria muito bem.
Candeeiros
bem bonitos
Modernos,
originais,
Compre-os na Rádio Vitória,
Não se preocupe mais.
Lá na rua da
vitória
Quatro seis e quatro oito
Satisfaz-se plenamente
O cliente mais afoito
Porque na
Rádio Vitória
Embaixada do bom gosto
Quem lá vai é bem servido
E sai sempre bem disposto,
Candeeiros
bem bonitos
Cheios de
luz e de brilho
Lá na Rua da
Vitória
No Duarte,
Pai & Filho
Lá foi Gertrudes comprar algo que não abusasse dos seus parcos recursos, encontrou o que a encantou e sabia que ia valorizar o modesto canto da casa onde viviam.
Samuel, uma espécie de faz-tudo, logo instalou aquela maravilha que deu ares de salão à modéstia do ambiente.
Um dia
atreveram-se, contam à senhora o que tinham feito e pediram que aceitassem um
convite para um jantar com eles. Convite logo aceite, é evidente.
Ela preparou
algumas tradicionais receitas minhotas e Samuel comprou numa mercearia próxima
duas boas garrafas de vinho.
Ficaram
felizes e orgulhosos com a presença dos patrões.
O tempo corria, nasceu-lhes um filho, e o rádio continuava a despejar “instruções” alimentares, como o melhor leite para as crianças e até uma mistureba para substituir o café, mais barato, era
Cevada,
chicória e centeio é a sua composição
Brasa é a bebida que aquece o coração.
Perdi esta
gente de vista há muitos anos. Juntei à história, autêntica, do desastrado
começo da lua de mel, contada pelo patrão, médico, que conheci bem, e romanciei
um pouco a vida radiofónica.
Espero que
ninguém me leve a mal por isso.
E saiba o
Samuel, Gertrudes e filhos que, se ainda estiverem a pisar esta terra, lhes
desejo longa vida... maneirando!
Delicioso
ResponderExcluirQue história gira
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