segunda-feira, 28 de setembro de 2020

 

Saudade das Gentes de África

 

Não conheço alguém que tenha passado por Angola ou Moçambique e que essa passagem lhe tenha sido indiferente.
Até as dezenas de milhares de militares que, infelizmente, tiveram que enfrentar uma estúpida guerra colonial recordam esse tempo com algum aperto no coração. Parece um absurdo, mas essas duas terras, estes hoje dois países, eram um absurdo de contradições, sobretudo quando se tenta comparar a vida que lá se levava com a das colónias dos outros países.
O colonialismo, comandado por uma Metrópole pobre e gananciosa, levou à única solução possível, a Guerra Colonial. Tão absurda era s situação que os nativos não queriam lutar contra os portugueses que ali trabalhavam, mas acabar com o colonialismo explorador, e a prova é que muitos portugueses, face à injustiça da situação, pegaram em armas contra os seus, também irmãos.
Neste pequeno apontamento vou tentar mostrar alguns momentos vividos nos muitos anos que lá passei, não só com africanos, com filhos de famílias de portugueses, algumas das quais ali estavam há quatro e bem mais gerações e com os que chegaram poucos anos antes do desastre que foi a independência, porque se ofereceram aqueles países aos comunistas.
Muitas destas histórias já as contei, mas estão sempre presentes na minha memória, guardadas e recordadas com muito carinho.
O meu primeiro contato com um angolano, por incrível que pareça foi em Portugal, teria eu pouco mais de meia dúzia de anos. O meu avô materno, que vivia com folga financeira (e acabou com quase nada!) um dia foi a Angola para caçar. Isto aí por 1934. Boa vida, tinha lá amigos influentes, quando regressou levou um angolano para seu motorista!  Mas a grana do vovô, que esbanjou em maus negócios e mulheres boas, ficou curta e teve que dispensar o motorista que entretanto criara família em Lisboa.
Uns anos mais tarde, já homem dos cinquenta ou sessenta anos, que tinha arranjado muito modesto trabalho noutro lugar, decidiu ir a nossa casa visitar a minha mãe e ver os meninos, que seríamos já uns cinco ou seis. Lembro que era um homem grande, maior o sorriso na sua cara, e fez questão de apertar a mão a todos nós.
Quando apertou a minha eu fiquei muito espantado porque não tinha ficado escura! Mão escura, naquele tempo era só dos limpa chaminés, que quando apertavam a mão a alguém ela ficava preta! Todos viram a minha cara estranhando o “fenómeno”, e o pobre e simpático ex-motorista e a minha mãe riram bem. Depois disso nunca mais o vi.
O segundo contato foi à chegada a Luanda, de navio, que assim que atracou, uma quantidade de carregadores o invadiu oferecendo o seu serviço para carregar malas, caixotes, o que fosse. O que me contatou simplesmente me mostrou um crachá da alfandega com um número que tinha na camisa. Pegou mas minhas coisas e sumiu naquela confusão de gente a desembarcar e mais os que estavam no cais aguardando alguém. É evidente que um minuto depois eu já tinha esquecido o número do carregador e fui à procura dele. Tinha vista a cara dele, e naquele momento para mim todos os pretos (por que não usar este termo?) eram todos iguais! Não consegui distinguir nenhum e como não lembrava do número de identificação, pensei que estava “ferrado”! Não tardou a que o “meu” carregador me aparecesse, aquele sorriso que parecia dar a entender qual era o meu problema, a chamar-me para onde estava a minha bagagem. Pouco falei com ele. Fiz-lhe algumas perguntas sobre o seu trabalho e logo percebi que, se estavam ali uns cinquenta ou cem carregadores, todos eles eram diferentes. Esta foi a minha primeira lição africana que muito me marcou. Todos diferentes uns dos outros e todos, durante muitos anos altamente confiáveis.
Depois tive a sorte de ir viver em Benguela. Uma cidade de características únicas no Mundo. Ali não havia nem brancos, nem pretos nem mestiços. Eram todos gente. Àqueles bares, quiosques, ao ar livre, ao fim da tarde e até à noite, chegava um, depois outro, um pouco depois tinham que se juntar duas ou mais mesas, bebíamos umas cervejas, conversávamos, ríamos, e ninguém no fim saberia dizer qual a cor da pele de quem ali esteve. Festas, a sério, era nos quintalões, nas casas de angolanos, onde só se ia convidado. Fui duas vezes a essas festas. Os donos, todos pele escura ou levemente mais clara, mas uma cortesia, simpatia e educação que sem me conhecerem faziam questão de porem à vontade. Vou esquecer? Jamais.
Foi ali que conheci uma das mais interessantes, e divertidas, personagens de Angola: o filósofo, profundo, e poeta Ernesto Lara. Os seus pais, portugueses, tinham um comércio onde eu me abastecia. Pagar? Só no fim do mês.
O encarregado do depósito de máquinas do meu departamento, um português mais anti-salazar do que qualquer “centrista” ou “socialista” ou dono de órgão de informação de hoje em dia, lamentava-se que o seu sonho era ir para a Rússia. Propus pagar-lhe a passagem, só de ida, desde que ele me garantisse que me escreveria a contar como era a vida lá. A verdade. Foi sempre falando mal do governo, mas... nunca aceitou o repto. Era um sujeito simples, simpático, de quem acabei amigo.
Maior figura de legenda, o auxiliar que ajudava no armazém e fazia a limpeza do stand onde se expunham máquinas, tratores, etc. e onde eu tinha a minha mesa. O Joaquim. Já falei muito dele.
Enquanto a minha mulher não chegou de Portugal, eu estive mais de dois meses sozinho. O Joaquim foi “nomeado” meu assistente particular, a quem dava um dinheirinho para nas horas vagas – ao fim do dia – me ajudar a arrumar a casa, e sempre que eu viajava para o interior, dormir lá em casa. Impecável.
Quando no fim do dia, já noite, terminávamos o arrumo da casa, eu levava-o para o bairro onde ele morava, sentado no quadro da minha bicicleta! Quem me via passar – poucos – com um servente levado na bicicleta só ria. Era caso inédito!
Casal jovem fomos uma espécie de atração e novidade naquela terra! Não conhecíamos mais do que os colegas de trabalho, e isso só eu. Mas um dia, uma senhora que tinha os dois filhos em Portugal recebeu destes a informação de que estava ali um casal jovem. Nesse mesmo dia procurou-nos e convidou-nos para jantar. Foi pedindo desculpa porque o marido não fazia cerimónia com ninguém, ia logo deitar-se, etc. Receberam-nos como filhos, e o marido, para grande surpresa, ficou a conversar comigo até à meia noite! Passaram a ser a nossa primeira família de Angola!
Na empresa onde trabalhei tinha um colega que jogava ténis. Maravilha. Eu também. Ele conhecia um outro, funcionário de Fazenda, que era o único que até ali se sabia que jogava. A partir daí todos os sábados lá íamos nós, vestidos de branco, como era regra, jogar e deitar conversa fora.
Fomos depois morar em Luanda. Aí encontrámos uma boa quantidade de amigos de infância e até primos que já lá viviam, e a família angolana foi-se alargando. E alargou muito.
Eu ia muito à Europa e países vizinhos em trabalho, e os amigos, aliás as amigas, reclamavam que eu nunca levava a minha mulher! Um dia combinaram que levariam os nossos filhos todos para suas casas – na altura ainda eram só seis - onde tinham os seus amiguinhos, e nós os dois passámos quase um mês na Europa.
Em Portugal, nós com bastante família  genética, não teríamos conseguido isso!
Anos depois fui um dia com uns colegas e amigos da Cuca, em Nova Lisboa, já sol posto, fazer um churrasco numa sanzala, aldeia indígena, a uns tantos quilómetros da cidade (não lembro quantos) onde chegámos com toda aquela gente já a dormir nas suas modestas casas. Tínhamos comprado um monte de frangos e levado uma tantas caixas de cervejas. Quando os carros chegaram ao alto do morro onde eles moravam, o barulho dos motores e os faróis levaram uns quantos a abrir as portas e indagar o que se estava a passar. Perceberam que era para fazer festa e em poucos minutos não sobrava ninguém a dormir! A minha especialidade não era a dança. Isso é com africanos, que ninguém supera, nem Nijinsky!
Fiquei toda a noite até o dia começar a clarear, sentado ao lado do soba. Conversámos muito, gozei a quietude mesmo com aquela música e tudo o mais, um céu feito para encantar, e uma sensação de que naqueles momentos Deus está lá, a sorrir para nós. Não sabemos quem é esse Deus, Mas estava lá, sim, no meio de gente simples e alegre.
Numa ida a Portugal comprei um Morris Minor de 1932! Um brinquedo que levei para Luanda, dei-lhe uma “garibada” e fazia um sucesso imenso. Era brinquedo que não dava para passear com a família porque só cabiam dois e... bem juntinhos.
Mas era raro ser eu a andar no carro. Começaram a chegar de Portugal amigos de infância, militarizados, porque a guerra colonial tinha começado. É evidente que não levavam meio de transporte privado! Então o nosso valente Minor era cedido com uma única condição: como leva devolve. Se avaria nas vossas mão... o problema é vosso! Nunca avariou. E foram oficiais do exército e da marinha, capelães, alguns sargentos, que aproveitavam férias ou alguma folga para se deslocarem em Luanda. Era assim. Família.
Um dos amigos, muito amigos, que me honraram com a sua amizade, na altura cónego, natural de Cabinda, pele muito escura e batina impecavelmente branca, que sempre olhara para os brancos com olhos de pouca amizade, até ao dia em que passou a ver nos portugueses pessoas que não eram responsáveis pelo desastre que sempre fora o colonialismo/Metrópole. Estávamos ali a trabalhar e a ajudar a desenvolver o país.
Quando o conheci logo reconheci naquele ser, calado, baixinho, uma pessoa rara. Inteligente, perspicaz, educado. Atrevi-me a perguntar-lhe se ele nos daria o prazer de um dia almoçar em nossa casa. Disse imediatamente que sim.
Os nossos filhos receberam-no com imensa alegria e passaram a tratá-lo por “tio Muaca”! Criámos um vínculo de amizade muito forte. Dom Eduardo Muaca, depois Arcebispo de Luanda. Uma personalidade que admirei, e ainda hoje admiro muito, e sinto muito a sua falta.
Sempre houve, e vai continuar a haver gente boa e gente, não direi má, mas perdida. A estadia dos portugueses em África, Angola e Moçambique, não parece que tenha ainda sido estudada por alguém isento, sociólogo ou filósofo, mas tem histórias que contadas muita gente teima em não acreditar.
Em Luanda havia um hospital, grande hospital militar, onde mercê da guerra, quase todos os dias chegavam doentes ou estropiados daquela maldita guerra. Eu tive lá alguns amigos médicos, e um dia fui visitar o hospital. O diretor, amável,  mostrou-me, creio que tudo, mas o que mais me impressionou foram as enfermarias. Numa delas, com umas oito camas, tinha um soldado à porta, armado. Por quê? Numa das camas estava um combatente angolano, (inimigo-terrorista!), que tinha sido ferido num combate. Foi levado para o hospital, e tratado como qualquer outro, na mesma enfermaria, ao lado de soldados portugueses, alguns deles bem estropiados.. E o diretor ainda acrescentou:
- “Este já é a segunda vez que ele é ferido e volta para ser tratado aqui!”
- “E depois o que lhe fazem?”
- “Nada. Damos-lhe alta quando estiver bom, e ele vai à sua vida! Quem sabe se ainda o voltaremos a ver!”
- “E os soldados portugueses não reclamam por o terem mesmo ao lado?”
- “Não. Até conversam!”
Alguém sabe de situação igual com os ingleses, por exemplo?
Quando cheguei a Angola, tive que percorrer grande parte daquela terra. Fui a Nova Lisboa, hoje Huambo. Terra pequena, lá encontrei uma ou duas pessoas conhecidas e logo tinha uma porção de amigos. Um deles, uma meia dúzia de anos mais velho, que eu não conhecia, tinha recebido de Portugal uma carta que o informava que eu para lá ia e que ele, no que pudesse, me ajudasse.
Felizmente não precisei de ajuda, mas criámos uma amizade tão forte, que muitos anos mais tarde, estava eu já no Rio de Janeiro, ele em Portugal, muito doente, sabia que pouco tempo tinha de vida. Veio ao Brasil para se despedir de nós! Cada vez que penso nele...
Só África para estas amizades.
Em Moçambique, onde passei quase seis meses dando o meu tempo para a Casa do Gaiato, tinha o visto de estadia a caducar e precisava de mais uns dias para não ter problemas na saída. O muito querido AMIGO, padre Zé Maria, conhecia um moçambicano que seria, talvez, o chefe dos serviços de informação. Posto importante no governo, mas um homem simples, simpático. Mandou dois funcionários de carro buscarem-me à Casa do Gaiato (45 kms de Maputo) e levarem-me a Mbabane, na Suazilândia, para que lá me dessem novo visto de entrada. Fomos em muito animada conversa, na ida e na volta. O Consul de Moçambique pegou no meu passaporte, chamou um funcionário e mandou pôr o visto. Uns minutos depois devolveu-me e quando lhe perguntei quando devia pagar, olhou para mim e disse:
- “Aqui os amigos não pagam!”
A poucos dias de ir embora recebo um telefonema de um dos que me acompanharam a Mbabane. A convidar-me para almoçar em sua casa em Maputo, porque queria que a sua família me conhecesse! Lá fui. Estavam lá os dois e mais uma porção de casais amigos. Recebido com um carinho e atenções que nem pessoa importante. As senhoras pareciam estar num concurso de culinária. Cada uma fez um petisco melhor do que outro, e todas faziam questão que eu comesse de tudo! Impossível. A meio do almoço tive que capitular e pedir que me desculpassem. Não podia comer mais.
Fizeram 90 kms para me irem buscar e outro tanto para me levarem de volta.
Vou esquecer ou guardar bem aqui dentro?
No meu livro “Mussulo - Um Abraço À Vela” falei da minha “paixão” pelo mar, por velejar, que começou quando eu teria uns 10 anos. Só consegui concretizar esse sonho (parte dele) quando, quase trinta anos mais tarde, consegui comprar o primeiro (e quase único) barco, veleiro famoso o “Argus”. O barco ficava fundeado quase na ponta da Ilha de Luanda, perto de casas de pescadores. Um deles, um cara forte, atlético, que “herdei” com o barco, o Agostinho, era quem tomava conta do barco, o limpava e preparava para nos fins de semana sair a gozar aquele mar. O Agostinho era impecável e muito me ensinou. Tinha um ou dois filhotes pequenos e estes uns amiguinhos, claro, que faziam uns brinquedos para “velejarem” (os brinquedos!) na praia. Lembrei-me um dia de chamar essa criançada toda e propor-lhes fazer uma “regata” com os barquitos feitos por eles, com muita habilidade infantil (tinha barcos de uma e até de três velas). Montaram uns cinco ou seis no meu barco, saímos e a uns 100 metros da praia puseram os barcos na água. O entusiasmo deles foi uma maravilha. Logo os devolvi à praia. Esperámos pela chegada da regata e houve premiação! Já não lembro bem o que lhes dei, mas foi outra festa para todos.
Nunca fomos domos, nem sócios de restaurantes, mas às quartas feiras, durante alguns anos, tínhamos a nossa casa aberta para os almoços das quartas feiras, a que demos o nome dos “almoços dos solteiros”! Quem estivesse em Luanda só, sem a família que estaria em férias em qualquer outro lugar, podia aparecer. Não precisava avisar, nem nós nunca sabíamos quantos convivas iam aparecer. Normalmente entre um ou dois e às vezes meia dúzia.
Não havia cerimónia. Havia muito boa disposição, muita amizade que, naqueles que ainda por aqui andam permanece firme como rocha.
Como disse um amigo meu, militar, brasileiro, que esteve com as forças da ONU em Moçambique:
- África é um mundo diferente de tudo a que estamos acostumados a ver, ouvir e principalmente sentir.
Só quem por lá andou, e ainda hoje, sabe como é ser “recebido à angolana”. Só por ter feito a travessia do Atlântico, no “Mussulo” ganhei mais umas dezenas de amigos. Amigos de verdade
Por hoje fico-me por aqui. Mas tem mais para contar. Muito mais.
 

24/09/2020


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 

De Volta aos Primeiros Passos - 4 . final -

 

Gabriel chega a Portugal com 45 anos, de onde tinha saído 28 anos antes. Lá na terra quem por lá estaria ainda? Enquanto em Angola trocou alguma correspondência com Maria Rita, que se formara, era professora no liceu em Lamego, o mais que conseguiu saber foi do falecimento da sua mãe, e ainda que Maria Rita tinha casado com um colega da faculdade que pouco depois fora chamado para cumprir o serviço militar na Guiné e onde, dias antes do regresso à Metrópole, teve um acidente quando o jeep em que seguia pisou uma mina. Ficou todo estropiado e acabara por falecer no hospital em Bissau.
Maria Rita não voltou a casar.
Assim que chegou foi direto para Lamego, instalou-se num pequeno hotel que ficava a pouco mais de vinte quilómetros da sua terra, da sua velha casa. No dia seguinte foi a um banco, abriu conta, alugou um cofre onde depositou a sua esperança, as garrafinhas, pegou um taxi e foi ver a sua casa.
Muito abandonada, mas que permitiria um bom restauro, o terreno na mesma, invadido por mato, mas pela primeira vez na vida Gabriel foi invadido pela beleza da vista que se alcançava lá do alto, coisa que em criança nunca dera importância.
Sentou-se num penhasco e chorou a saudade dos pais e da sua querida Catxi. Como ela deveria apreciar estar ali com ele.
Na descida foi a casa da Maria Rita. A mãe dela ainda estava viva e de muito boa saúde. De entrada não reconheceu o antigo vizinho, mas logo se lançou ao seu pescoço, beijou-o de saudades “daquele menino tão amigo da nossa Rita.”
Uma boa hora ou mais de conversa, ela disse-lhe que Maria Rita estava em Lamego, professora no liceu, deu-lhe o telefone dela, e que ela sempre aparecia nos fins de semana. Como ele podia ver, a casa fora aumentada, deixara de ser uma casa pobre para ser uma casa modesta, mas muito acolhedora.
Outro abraço, uma ou outra lágrima de saudades, “qualquer dia volto aqui, até porque também vou fazer obras na minha casa”, e logo regressou a Lamego.
A primeira coisa que fez foi telefonar a Maria Rita, que quase largou um grito quando percebeu com quem estava a falar, e mais, que ele estava ali, ao lado. Combinaram jantar juntos. Foi outro encontro emocionante.
- Gabriel, tantos anos! E eu, mesmo tendo casado, sempre pensava em ti.
- Também eu. E o mais engraçado, se é que tem alguma graça é que tendo casado com uma mulher negra, que me surgiu quase como caída do céu, uma mulher simples do interior, apaixonei-me por ela, pela sua humildade, uma vida dedicada à casa, ao marido e aos dois filhos magníficos que nos deu, que como angolanos que são, ficaram por lá.
Contou-lhe a tragédia da sua vida, mas tinha que seguir em frente. E falaram, falaram, falaram, contando coisas da vida de cada um desde que se separaram, e relembrando passagens de quando estavam juntos.
Só saíram do restaurante quando o dono lhes veio dizer que tinha que fechar as luzes e a porta!
- Maria Rita, eu tenho que ir à Bélgica fazer lá um negócio. Só vou na próxima semana, porque preciso primeiro de tirar o passaporte, mas amanhã podemos voltar a nos encontrarmos. Que tal ao almoço?
- Para mim o almoço não dá por causa das aulas. Mas jantar sim.
- Combinado.
Gabriel deixa-a à porta de casa dão um forte abraço... e um beijo.
Logo pela manhã começou por tratar do passaporte, procurar um mestre de obras e até um arquiteto para estudarem a recuperação da casa, que queria que começasse imediatamente, e alguém que lhe aconselhasse o que fazer em todo o terreno, que, mesmo no meio dos penedos ainda tinha um tamanho razoável.
Sugeriram-lhe até que naquele lugar uma pousada daria dinheiro. “Não quero nada disso. Por enquanto quero descansar, o físico e a cabeça. Trabalhei muito durante quase trinta anos, e um hotel é preocupação maior que não estou disposto a enfrentar. Para já vamos fazer dali uma casa, modesta mas com o conforto possível.”
Novo jantar com Maria Rita. Escolheram o melhor restaurante, sobretudo o mais sossegado e discreto. Maria Rita vinha mais elegante, mais bonita, ou... seriam os olhos dele que começavam a ver melhor? Os dois praticamente da mesma idade, ambos bem conservados, sem jamais terem esquecido aquela primeira e única aventura amorosa, sentiam, ainda sentiam, atração um pelo outro. Via-se nos olhos deles, e mesmo que estivessem ainda chocados com os seus desastres pessoais, a companhia da velha amiga e uma espécie de namorada da adolescência, ia-lhe anuviando a visão e a sentir o magnetismo que parecia adormecido.
- Maria Rita. Nós já fomos uma espécie de namorados.
- Ah! Criancices.
- Eram, mas não podes negar que estávamos os dois a gostar cada vez mais um do outro. E essas coisas, importantes, da juventude, não se esquecem.
- Eu também não esqueci nada, e a tua companhia, agora, parece que me faz andar anos para trás!
- Eu perdi a mulher há muito poucos dias ainda, o choque foi brutal, mas a tua presença ameniza a minha dor e, o que é mais importante está a fazer despertar aquilo que nós calámos tantos anos. Eu vou querer casar contigo!
- Gabriel! Não falas sério!
- Nunca falei tão sério na minha vida. Não casamos já amanhã. Deixa-me arrumar a minha vida, ir à Bélgica, entretanto pensamos nisto – eu já pensei tudo – e decidimos.
- Estás a deixar-me confusa. Nem sei o que pensar.
- Pronto. Já disseste tudo. Se não sabes o que pensar é porque sabes o que não pensar!
Riram, continuaram a conversa que nunca tinha fim, e marcaram novo encontro para o dia seguinte.
Maria Rita estava um pouco baralhada, já habituada à sua solidão. Não esperava aquele tão rápido desfecho, mas no fundo acolheu a proposta com entusiasmo que fazia o possível por não mostrar.
- Amanhã jantamos em minha casa. Eu preparo um jantarzinho.
Sabendo a que horas Rita chegava a casa mandou-lhe um imenso e lindo ramo de flores, e quando chegou para jantar levava várias garrafas de vinho. À escolha!
Um ambiente muito acolhedor, mais conversa que não acaba, o café na pequena sala, ambos sentados no sofá.
Enquanto ela serve o café ele está nervoso, pensa em abraçá-la, mas hesita.
Quando ela se vira, olhos nos olhos, o que antes lhes tinha parecido uma longa espera, ele avança para a abraçar e trocam um longo beijo há mais de 28 anos esperado!
- Como eu afinal continuo apaixonado por ti, Maria Rita!
- Mas não vamos dormir juntos. Esquece. Eu também te tenho no meu coração, mas agora somos suficientemente maduros para não fazer nada com precipitação.
- Também não era minha intenção dormir aqui! Vamos casar brevemente e, se Deus quiser, teremos muitos anos pela frente. Mas não vou deixar de te abraçar ainda muitas vezes antes da cerimónia!
Com o passaporte pronto foi à Bélgica, com a mala “especial”, o comprador estava avisado da sua visita que Carlos providenciara, a negociação demorou algumas horas porque tudo precisava ser muito bem analisado e por fim quando o comprador lhe diz quanto pode pagar por tudo – era muito mais do que imaginava – quase teve uma síncope! Estava milionário e não sabia!
Fechou negócio, depositou o dinheiro numa conta que abriu em Anvers, e regressou a casa rico, riquíssimo! A primeira coisa que fez, assim que chegou a Lamego foi mandar um telegrama aos filhos: “NEGÓCIO FECHADO MAGNIFICO STOP POR TELEFONE VOS CONTO STOP ABRAÇOS BEIJOS PAI.”
As obras da casa estavam a andar bem, ia ficar muito bonita e confortável, sem esquecer as necessárias licenças. Pediu instalação eléctrica, e ainda telefone, para o que teve que pagar os postes serra acima. Calculava que tudo estaria pronto em menos de dois meses. Três trabalhadores rurais vieram limpar o mato e com a sua experiência aconselhar o que plantar ali; sobretudo cerejeiras.
Com Maria Rita estava acertado o casamento. Teve que ser nas primeiras férias para poderem ter uma lua de mel. Poucos convidados, só a família, alguns amigos dela, e uns raros de quem Gabriel mal se lembrava da infância. 
Entretanto já havia comprado um carro magnífico que naquela altura, com o desastre da política em Portugal, se vendiam por metade ou a quarta parte do preço normal.
E foi assim que saíram de Lamego para Espanha, para passarem a primeira noite na pequena e linda vila de Puebla de Sanabria.
Os dois estavam ansiosos para se encontrarem, para se amarem, para repetirem o que haviam deixado por tantos anos.
Em vez de jantar, um pequeno lanche, correr para o quarto e se amarem.
Começaram, sem vergonha, por se examinarem bem quando acabaram de se despir. Eram um casal maduro, mas mantinham no corpo um belo vigor, e em poucos instantes caíam na cama já abraçados e sufocando-se com beijos.
Pareciam os mesmos adolescentes, porque se amavam com a mesma vontade, cada um pensando ter-se encontrado num céu novo, muito desejado.
As mãos não paravam de percorrer todo o espaço oferecido, procuravam não se precipitarem para poderem gozar o máximo que os anos não lhes haviam permitido.
Já não tinham vinte anos, mas a noite foi passada quase sem descanso, a imagem de Catxi aparecendo a sorrir, como a dizer-lhe que continuasse, até que por fim, sempre abraçados adormeceram.
Levantaram-se tarde, passearam pela rica povoação de mãos dadas, e à tarde seguiram para norte até um hotel em frente às praias do mar das Astúrias onde ficaram alguns dias.
Passeavam de dia e amavam-se, muito, à noite.
Apesar de ambos terem sofrido desaires, graves, na vida, pareciam agora felizes, seguros, sensatos.
- Rita, logo que a minha casa fique pronta mudamo-nos para lá. Entretanto ficamos no teu apartamento.
- Mas não é cómodo percorrer todos os dias aquela estrada. Com os meus horários no liceu parece-me melhor manter, por enquanto o apartamento.
Gabriel estava com dinheiro e não tinha idade para ficar em casa. Procurou informar-se onde aplicar algum capital, e decidiu-se por comprar uma parte, majoritária, numa exploração vinícola. Precisava da experiência dos primeiros donos, por isso não comprou tudo. Com a sua capacidade financeira e experiência de trabalho, em breve a produção aumentava e o mercado, apesar da economia em Portugal estar em decadência, alargava-se para a exportação.
Como seria de imaginar o primeiro mercado extra foi para Angola!
Rita conservava o seu professorado e ele, diariamente se dirigia um pouco para norte da Régua, desenvolver o seu negócio com os vinhos do Porto e do Douro.
Dos filhos tinham regularmente boas notícias pessoais: António já era professor da faculdade e Carlos chefe do gabinete do ministro da indústria. Angola é que estava mal com a guerra, e os filhos queixavam-se, dissimuladamente, da corrupção que grassava.
Ao fim do dia quando se voltavam a encontrar parecia que não se viam há muito tempo e corriam para se amarem.
Catxi e Angola já estavam muito longe, mas... durante a noite, no sono mais profundo, Catxi continuava a sorrir para ele.
A vida continuou, um quarto de século passado, com algumas idas a Angola, sempre que podiam.
Uma noite Maria Rita sentiu-se mal. De urgência para o hospital, um ataque de coração levou-a em poucos dias.
Gabriel, com pouco mais de setenta anos, sentiu-se perdido.
A paz chegara a Angola, onde já cresciam quatro netos, e quase bisnetos a caminho.
Para lá foi.
Os filhos que tomassem conta do que ele tinha deixado em Portugal. Não queria para lá voltar sozinho.
Avisou-os que queria ir a Xá Muteba. Que não se preocupassem; iria sozinho, de combóio até Malange e lá arranjaria um taxi. Queria ver se ainda encontrava algum dos sobas que tinha conhecido. Sobretudo deixar algumas flores na campa da sua Catxi.
Se ao chegar a Malange o seu espanto foi grande, Xá Muteba então parecia um sonho. Como tudo estava diferente, sobretudo a escola e a sede do novo munícipio! Continuava a ser um município modesto, mas tudo estava arrumado. Mas praticamente não aumentara de população. Pouco trabalho, os que atingiam idade iam embora para a capital.
A primeira parada foi junto à igreja, à procura do túmulo de Catxi. Sabia exatamente onde o tinha feito. Cansado e emocionado acabou por encontrar uma pequena área, com um resíduo do que talvez tenha sido uma cruz em madeira. Ajoelhou e chorou!
Depois foi falar com o administrador do município. Contou-lhe que ali tinha vivido quase vinte e oito anos, que lá tinha deixado alguns amigos, sobretudo entre os sobas cujos nomes ainda lembrava. O administrador não conhecia ninguém desse tempo; chamou um velho funcionário que, para seu grande espanto, se lança nos braços do Sr. Gabriel e deixa correr duas lágrimas. Tinha sido um dos seus trabalhadores!
Gabriel mal podia falar. Pergunta-lhe pelos outros colegas, pelas famílias e sobretudo queria notícias dos sobas seus amigos. Um só parecia estar ainda vivo, mas muito velhinho.
- Podemos encontrá-lo?
- Creio que sim.
O administrador dispensou o velho funcionário e, no mesmo taxi foram à procura do velho soba, o kota mais respeitado na região.
O encontro foi emocionante. Reconheceram-se e ficaram abraçados um longo tempo. Não conseguiam dizer nada.
Por fim Gabriel disse-lhe que tinha um pedido a fazer. Queria acabar os seus dias em Xá-Muteba e proporcionar um túmulo decente para Catxi, no cemitério. Sabia que isso era complicado, e caro, mas dinheiro continuava a sobrar-lhe, e se houvesse impedimentos burocráticos pediria ajuda aos filhos.
Propôs ao seu amigo construir-lhe uma casa maior, com um cómodo para ele.
Foi complicada a papelada para não só procurar os restos mortais de Catxi, como transferi-los para o cemitério. Nada que o dinheiro não pudesse comprar. E logo mandou fazer um pequeno jazigo para que ele, em breve, viesse a ficar junto da sua companheira querida.
O tempo estava contado.
Pronta a casa do soba que entretanto arranjou guarida para o seu amigo, e resolvido o problema funerário, com poucos dias de diferença, ambos, finalmente descansaram.
 

02/06/2014

 

 


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

 

(continuação)

De Volta aos Primeiros Passos - 3 -

  

Os anos iam passando e os dois filhos que entretanto tiveram, António, o nome do avô paterno e Carlos, o mais “perto” que encontraram para se parecer com o da mãe, estudavam já na escola que entretanto se construíra na povoação.

O negócio crescera bem, as viagens mais frequentes eram a N’Dalatando visitar os tios e prestar contas da sociedade que estava bem sólida financeiramente, e também para darem a conhecer ao pai de Catxi a sua nova família. Esta visita foi uma festa em casa do kota e sua nga, que estavam felizes por verem a filha bem casada, com dois lindos netos e um genro, mesmo português, que os respeitava.

Não tardou também que numa dessas visitas Gabriel convidasse os tios, quase solenemente, para serem seus padrinhos de casamento. Já tinham tudo combinado com o Padre de Xá Muteba.

Casariam naquela pequena igreja, e fariam a festa na casa nova que tinham construído.

Os dois serventes iniciais, com o tempo e muita dedicação eram agora empregados a quem se podia entregar a loja quando se ausentava, e duas ou três vezes, toda a semana, Gabriel saía na carrinha para visitar áreas mais afastadas, entregar algumas encomendas mais pesadas, como tambores de 200 litros de petróleo, muito usado na iluminação, ver como corriam as plantações, sobretudo algodão e mandioca, visitando os sobas e mantendo esse entendimento e bom relacionamento com todos.

Nessas viagens não conseguia segurar-se e o alargar mais os seus horizontes para os lados femininos passaram também a ser um pretexto. E começou a experimentar outras delícias. Chegava a casa mais à noite, por vezes cansado, quando encontrava uma parceira mais bonita e mais fogosa, mas nunca nenhum destes “encontros” se fazia a menos de 30 ou 40 quilómetros de casa! Todas eram excelentes parceiras para os exercícios sexuais mas, perder Catxi, isso estava fora de cogitação.

Xá Muteba também tinha crescido, Posto Administrativo com o respetivo chefe de posto, uma espécie de presidente da câmara, telégrafo, telefone, enfim um progresso que, em 1949, quando Gabriel ali chegou era quase impensável.

A sua casa comercial continuava a ser a maior e mais importante, aquela que os sobas visitavam com alguma frequência e onde eram recebidos como amigos, nunca indo embora sem terem bebido uns copos de vinho e comido uns bolinhos que Catxi, mestra na cozinha, preparava.

Em muitos fins de semana Gabriel levava a família para caçar. Barraca de campanha e todos os apetrechos para passarem uma boa noite no “mato”, onde sempre lhes aprecia um pisteiro que os levava a abater alguns animais, a maioria dos quais ficava com a população. Para eles chegavam uns lombos e duas pernas, que consideravam comida dos deuses.

Desde muito pequeno o grande entusiasta pela caça era sobretudo Carlos; aos nove anos, com a carabina do pai já tinha abatido um sengue, antílope aí com uns noventa quilos, que fez questão de mandar embalsamar a cabeça e guardar no seu quarto!

Gabriel que percorria constantemente a região vinha sentindo um mal estar geral entre as populações, devido principalmente ao escandaloso preço porque obrigavam os agricultores a vender o seu algodão. Percebia que esse mal estar preparava algo que poderia ser grave, mas com a confiança que ganhara em tantos anos, não temia por ele nem pelos seus, mas pelo negócio que, de um dia para o outro poderia acabar.

1961. Os filhos, nove e onze anos, Catxi continuava a mesma mulher simpática, sempre sorrindo, muito carinhosa com a família e com todos, uma tarde dois sobas vieram falar com Gabriel. Conversa confidencial.

Avisaram-no que o pessoal decidira fazer greve e não entregar o algodão, já colhido, a menos que o preço fosse aumentado de forma considerável, e que isso poderia trazer consequências graves porque “pairava no ar” que algum tipo de levantamento estava a preparar-se.

Em toda a região sabia-se que a sua casa comercial tinha sido o seu apoio durante muitos anos, e por isso era respeitada, e nada faria prever que alguém se atrevesse a prejudicá-la, antes pelo contrário queriam protegê-la, e manter as ligações respeitosas que sempre prevaleceram. Mas... aconselhavam-no a mandar a família passar uns dias com os tios-avós até que o problema estivesse resolvido.

Depois de ter ouvido tudo quanto os sobas lhe contaram, mais preocupado ficou, sabendo que nada podia fazer. O preço do algodão eram os poderosos da Metrópole que fixavam. Ele estava ali, como sabiam, há quase treze anos, e praticamente não tinha ganho nada em milhares de toneladas que mandara para Luanda. Os sobas sabiam disso, mais uma razão para o considerarem um amigo e uma pessoa a respeitar sempre. O problema é quando as multidões se enfurecem!

À saída, baixinho, disseram ao seu amigo:

- O senhor Gabriel tem sido sempre um amigo do nosso povo. Nós estamos-lhe muito agradecidos. Guarde estas duas garrafinhas em lugar bem escondido. Nós aqui não precisamos disso. Talvez no futuro o possam ajudar a viver. Tudo por aqui está muito confuso.

As duas “garrafinhas”, embrulhadas em velhos papeis de jornal eram duas garrafas grandes de cerveja, 0,6 L, da velha Cuca, cheias. Cheias... de diamantes!

O diamante! Um monopólio oligárquico, poderosíssimo, controlava o contrabando dessas pedras de forma violenta. Aquele “presentinho” que os sobas lhe tinham dado valia uma fortuna, e não era qualquer um que podia sair por aí e encontrar comprador. Era, sim, um magnífico seguro de vida, só que para o negociar teria que ir à Bélgica ou Holanda.

Sem que alguém visse, guardou tudo no mais escondido buraco que encontrou em casa e jamais falou sobre o assunto com alguém.

No dia seguinte foi a Malange levar a mulher e os filhos que seguiram no combóio para casa dos tios.

A agitação crescia e os chefes dos postos administrativos, chamaram o exército, diminuto e inexperiente exército para tão grande país, com a ideia de segurar alguma possível sublevação.

O encontro entre a tropa e o povo foi de total desentendimento. Os feiticeiros queriam que os sobas dessem ordem para atacar com as armas que tivessem: canhangulos, catanas, paus e foices, e completamente drogados procuravam convencer o povo que as balas dos portugueses eram água e não feriam ninguém.

Tentaram os oficiais que comandavam a tropa dialogar, mas não foi possível. O povo gritava, ninguém se entendia e de repente começa o tiroteio.

Ninguém sabe ao certo quanta gente morreu. Soldados portugueses poucos, porque eram os que tinham as armas. Da parte do povo falava-se em centenas e até em milhares. Um desastre completo. E o desmonte da última réstea de confiança que poderia existir.

Poucos dias depois, Gabriel, acompanhado de alguns sobas, corajosamente, foi visitar as áreas da chacina. Era um dos raros portugueses que mantinham amizade junto daquela gente, mas o que viu deixou-o extremamente abalado, determinado a continuar com a sua casa e tentar melhorar a situação da região.

Passado esse susto, esse perigo, Catxi e os filhos regressaram a casa. O mais velho já estudava no liceu em Malange. Carlos deveria para lá seguir também em Outubro, e Catxi tinha que dividir entre acompanhar os filhos e o marido, sabendo que se o deixasse sozinho, novo, ainda o mesmo aspeto de rapagão forte e bonito, o seu lugar na cama corria o risco de ser ocupado por outra!

Gabriel entendeu que a melhor solução seria comprar um andar em Malange para não ter que entregar os filhos aos cuidados de outras pessoas e Catxi para lá se mudou. Raro era o fim de semana que não passava com a família. Ou dormia em Malange, quase sempre aproveitando para dar uma volta à caça, ou quando podia chegava sexta à tarde para os levar para Xá Muteba, onde logo Catxi desconfiou que naquela cama, na sua cama, várias deviam andar a passar. Como sempre, não disse nada. Só uma vez, com ar meio distraído, é que perguntou ao marido se ele não sentia frio de noite, dormindo sozinho! Entendeu o recado! Respondeu que os cobertores eram quentes. A verdade é que já experimentara, aproveitara, algumas boas ofertas que umas mais atrevidas lhe tinham feito. Mas nunca levara nem uma para a sua cama. Arranjava outros meios de realizar os encontros com as oferecidas, muitas das vezes com manobras e desempenhos violentos e prolongados, em quaisquer lugares.

O tempo corria, a luta colonial espalhava-se por Angola, e Gabriel tinha dificuldade em gerir a sua posição face a ambos os contendores. De um lado a população da região que o conhecia tratava-o com a mesma atenção, avisando-o até de possíveis situações de maior perigo. Do outro lado o exército português desconfiava que ele tivesse ligações com os “terroristas” pelo simples fato de ter sido sempre um comerciante honesto e amigo do povo.

Na verdade ele conhecia muitos dos combatentes, há anos seus clientes e muitos até amigos, mas com quem não falava do problema político militar.

Começava a ver a sua situação difícil, e sobretudo calculava que o futuro certamente não lhe reservaria a tranquilidade que qualquer um almeja na vida.

Numa conversa com o tio percebeu que a situação lá na zona dos Dembos, ao lado de N’Dalatando, não era melhor. Pelo contrário, o perigo era constante. Já tinha até começado a transferir para a metrópole todo o dinheiro que pudesse, reduzindo o movimento da loja, sem o entusiasmo que pouco anos antes o movia.

Os filhos tinha-os mandado para Portugal, um a estudar no Porto outro em Coimbra, ambos na universidade e em riscos de serem chamados para o serviço militar e voltar para Angola, para uma guerra que não aceitavam. Já tinham posto o problema ao pai de se ausentarem para França, mas a questão financeira, de os manter lá dificultava a decisão. Só eles a podiam tomar.

Achou a decisão do tio muita sensata, prudente e começou também a trocar o dinheiro de que podia dispor, não por escudos de Portugal mas por dólares. Parecia-lhe mais seguro.

Em pouco tempo, a Angola, finalmente, tinha chegado a universidade. António desde criança dizia que queria ser médico, e se tudo corresse bem em Outubro estaria já em Luanda. Carlos, sempre mais vivo e despachado, ainda tinha tempo para pensar entre engenharia ou... logo veria.

Com dificuldade venderam a casa de Malange e alugaram um andar na capital, sempre com Catxi acompanhando os filhos. Só que agora as visitas de fim de semana se tornaram muito mais raras, porque, mesmo com a estrada em bom estado, alcatroada, mais de 750 quilómetros para cada lado, além do tempo e custo da deslocação, já se corria perigo de ser atacado no caminho. O melhor meio era o avião, que de qualquer forma tinha que apanhar em Malange com horários que não lhe davam grande possibilidade de aproveitar bem o fim de semana.

Aos pais esta separação era difícil, mas necessária. Só nas férias é que se juntavam todos em Xá Muteba, região bastante patrulhada pelo exército português, com grande influência do MPLA sobre toda a região. No entanto os combates naquela zona eram mais raros por haver muitas áreas abertas que não permitiam emboscadas e nem os angolanos estavam preparados para um enfrentamento aberto.

Como é evidente toda a família tinha muitos conhecidos e os filhos até muitos amigos nas fileiras dos combatentes angolanos, que de vez em quando até se atreviam a aparecer, um ou outro, em casa deles, sempre disfarçados de agricultores. A maioria das vezes vinham pedir ajuda para algum doente ou ferido, o que constituía um perigo para os hospedeiros.

António avançava na medicina e sugeria ao pai abrir um posto médico para ajudar a população; Carlos estava em engenharia civil e, em férias, não perdoava as caçadas. Com o conhecimento que tinha da região e de muitos bons pisteiros, tornara-se um grande caçador. Era isto que ele queria, muito mais do que a tal engenharia.

Terminado o curso, António ingressa logo no serviço militar, sem sair de Angola segue com um batalhão para o interior, responsável pelo serviço de saúde. Carlos foi também chamado para o serviço militar, mas entretanto a guerra acabara!

Grande euforia nas populações com o anúncio da independência que Portugal proclamara, Gabriel fez uma festa convidando os chefes indígenas para comemorarem.

Não durou muito a alegria. Os movimentos revolucionários que lutavam contra o colonialismo dividiam-se pelo país: o norte com a influência do Congo e o FNLA que queria absorver essa parte de Angola, a metade sul com o povo umbundo apoiando a Unita e o centro-norte nas mãos dos quimbundos, o MPLA, aquele que melhores elites tinha e que, sobretudo, estavam apoiados nos sovietes.

Até à data da independência, um ano e pouco depois do desastre português, os três movimentos estavam completamente desentendidos, como estiveram sempre durante a guerra colonial, e agora pegavam em armas, entre eles, no que foi uma horrorosa guerra civil que durou vinte anos.

Os portugueses fugiam, abandonavam tudo, e o abastecimento de todos os bens começava a tornar-se raridade; o pouco que havia, muito especulado.

O pecúlio em moeda posto nos Estados Unidos tinha já um volume razoável e jamais esquecia daquelas duas garrafinhas que lhe tinham sido oferecidas, que nem filhos nem a mulher sabiam da existência. Foi visitar um dos sobas que lhe dera esse presente e pediu-lhe para lhe arranjar mais um “pouco”. Ele lhe pagaria. Não foi necessário. Poucos dias depois recebia mais duas garrafinhas, que ele sabia terem um valor muito grande, mas sem noção do quanto.

A loja a ficar com inúmeras faltas de mercadorias essenciais, Gabriel disse a Catxi que iria na sua camionete a Luanda comprar tudo quanto pudesse. Claro sempre aproveitando para ver os filhos que já estavam integrados nos quadros do MPLA, e que lhe facilitavam os contatos para comprar alguma coisa.

Dois dias depois estava de volta a Xá Muteba. Ao aproximar-se da terra sentiu alguma coisa errada. Muito fumo. Algum incêndio, mas onde? O seu coração bateu forte e quando entrou na povoação viu o desastre que o deixou estarrecido: Xá Muteba tinha sofrido um ataque de grupos do Congo, saquearam tudo quanto puderam e quem se lhes opôs foi barbaramente morto. A sua loja e a casa estavam ainda a arder. Com dificuldade entrou, procurou por Catxi. Acabou por encontrá-la estendida no chão, assassinada, pescoço cortado, possivelmente teria sido estuprada.

Abaixou-se e chorou convulsivamente agarrado ao cadáver mutilado. A custo embrulhou-a num lençol e num cobertor e carregou-a nos braços para fora. Correu a pedir ajuda aos seus amigos algumas tábuas que improvisassem um caixão e para abrir uma cova ao lado da igreja, tão profunda quanto pudesse ser para aí depositar aquela que, durante vinte e seis anos, tinha sido a mulher da sua vida.

Desesperado procurou só alguns detalhes pessoais, como fotografias e as tais garrafinhas especiais. Depois, mais uma vez foi visitar os sobas, um dos quais tinha também sido assassinado, para lhes agradecer e despedir-se deles, dizendo que deixava de vez tudo o que lhe sobrava, incluindo a carga que levava na camionete e que ficava para eles. Sem custo. Pediu-lhes só que cuidassem do túmulo da sua querida esposa.

A sua idéia era ir embora de Angola, mesmo sabendo que os filhos ficariam, certamente em condições razoáveis, porque estavam ambos com estudos superiores e integrados no movimento a quem estava a ser entregue o país.

Voltou a Luanda, chamou os filhos, contou-lhes todo o desastre, e que ia embora. Quando as “coisas” estiverem mais calmas voltarei para estar com vocês. Agora estou abalado demais vou para Portugal, aproveito para regularizar a casita e o terreno que eram de meus pais, e vou dando notícias.

Tinha um segredo para eles: as garrafinhas, que levaria o mais escondidas que pudesse.

Também lhes disse que a conta em dólares estava bem fornecida, o que eles sabiam, e que se precisassem de alguma coisa lhe telefonassem. Quando chegasse a Portugal mandaria um telegrama a dizer onde ficava. Carlos garantiu que no dia seguinte lhe indicaria como, onde e a quem vender o famoso conteúdo das garrafinhas! Ele sabia quem, em Angola, estava totalmente por dentro desse assunto. Não podia vender a qualquer um; tinha que ir direto ao melhor comprador.

No dia seguinte à noite, com a interferência dos filhos e seus amigos que, não tardaria, alguns seriam importantes membros do governo, não teve dificuldade em arranjar lugar no avião e levar as malas sem que alguém lhes tocasse.

 

(continua)

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

 

(continuação)

De Volta aos Primeiros Passos - 2 -

Gabriel e as novas tentações

 

Na primeira oportunidade que teve de ficar sozinho na loja, além dos dois serventes empregados, o tio tinha ido a Luanda com a mulher e filhos, quase no fim do dia entrou uma dessas “irresistíveis”. Gabriel disse-lhe que a ia atender, mas como já passava da hora precisava fechar as portas, o que não a preocupou.

Dispensou os serventes. Uma vez sós, perguntou-lhe o que ela queria, ambos do mesmo lado do balcão. Chegou-se mais perto, atreveu-se a passar-lhe a mão no braço nu, sentiu aquela pele sedosa, a que a jovem simplesmente reagiu murmurando aquele: “Hãh! Hãh!” a sorrir para ele.

Avançou um pouco mais, agarrou-a com delicadeza pelos dois braços, foi-a levando para trás do balcão sem sentir qualquer resistência.

- Como te chamas?

- Catxi.

- Bonito nome. Tu és mais bonita que o teu nome.

- Brigato!

Sempre sem a largar foram andando para o armazém. Lugar mais escondido onde se guardava algo como cobertores que lhes serviria para se deitarem. Não foi difícil. Catxi devia ter ido à loja mesmo com a finalidade de conquistar o garotão do puto, que todas as raparigas da terra comentavam porque o achavam bonito. Ela foi quem deu o primeiro passo.

Num instante estavam deitados, ela, com carinho, era a mestra naquele transe o que fazia o jovem e fogoso português delirar.

Um corpo forte, uma pele maravilhosa, os seios duros, um sorriso lindo e um tremendo cuidado com o homem que a ia possuir, sem perigo de visitas inesperadas - os tios só voltariam no dia seguinte - deixaram-se ficar em jogos de amor durante largas e boas horas. Ótimas.

Queria lembrar-se como tinha sido com a Maria Rita, mas Catxi superava em tudo o que ele pudesse imaginar e a visão da amiga de infância, a noiva que devia esperar só mais uns três anos, agora talvez mais cinco, começava a desaparecer da sua mente. Angola estava a enterrar o Portugal... velhinho!

Inexperiente não sabia se devia beijar Catxi. Afinal ela era uma jovem, e isso não estava a parecer-lhe certo. Era a primeira vez que tinha relações com uma mulher negra, e não podia ser levado de rompante. Mas o desejo superou qualquer complexo e começou a cobri-la de beijos. Uma vez mais descobriu que os beijos de Catxi eram imensamente mais gostosos do que os da Maria Rita. Os lábios bonitos, sensuais, eram outra coisa, mais uma maravilha com que Angola o presenteava. Ela também o beijava com extrema doçura. E o afagava enquanto os jogos de amor se desenrolavam.

Só a deixou ir embora noite avançada, abrindo a porta com cuidado para que ninguém a visse sair, sem deixar de lhe pedir que não contasse a ninguém. Que aparecesse no dia seguinte. Queria dar-lhe um pano bonito, mas fingindo que ela o tinha lá ido comprar.

De manhã, entre outros clientes lá estava Catxi, sorrindo para ele, parecia ainda mais bonita, o que fez o coração de Gabriel dar um pequeno pulo. Depois que todos os outros saíram, chamou-a para escolher o pano que quisesse. Humilde, escolheu um muito colorido que Gabriel embrulhou e lho ofereceu.

- Depois eu volta, tá?

- Catxi. Vem sempre que puderes. Eu gosto muito.

Pelo meio dia chegou o tio e família. Voltavam de carrinha nova, linda, uma valente Ford V8, 1949, verde escuro, modelo que acabava de chegar a Angola.

- Correu tudo bem, por aqui?

- Sem novidade, tio.

- Sabes, estive a pensar abrir outra loja. Eu e a tia e mais os dois empregados tomamos bem conta desta, e tu já estás capaz de ir tomar conta de outra. O que te parece?

- É muita bondade sua, tio.

- E não vais como empregado, mas sócio, claro. Até com uma carrinha, porque sem transporte aqui não se vive! A que levei ontem para Luanda está lá à espera que a vás buscar. Como sabes está ainda muito boa, mesmo com seis anos andando por estes caminhos.

- E onde o tio pensa abrir essa loja?

- Olha. É um bocado longe daqui, mas disseram-me que lá quase não tem comércio. O único que fazia algum negócio adoeceu, regressou à Metrópole, de modo que o campo está pronto para receber quem queira trabalhar. Em Xá Muteba, 180 quilómetros para lá de Malange. Daqui lá são uns 360.

- Se é preciso, estou pronto a arregaçar as mangas ainda mais para cima! Quando começamos?

- Neste fim de semana vamos lá os dois ver aquilo, se tem algum prédio que possa ser aproveitado, como o do comerciante que foi embora, e em face da situação resolvemos. Para encher a casa de mercadoria temos todo o crédito que for necessário, e lá ainda tem muito negócio na época da colheita do algodão. Isso dá um bom dinheiro. É o principal negócio da região.

O primeiro pensamento de Gabriel foi para Catxi. Tinha que a levar com ele. Não a queria perder. Como? Havia de arranjar um modo.

- E sabes uma coisa? É lá que está enterrado o famoso Zé do Telhado!

Todos os dias Catxi aparecia na loja, o tio Manuel, que não era bobo, apercebia-se do interesse do sobrinho pela rapariga. Que ele, aliás, também achou bonita, mas nada disse.

Sábado bem cedo, deixaram a loja entregue à tia e foram a caminho de Xá Muteba. Uma estrada de terra, muito buraco, poeira que formava nuvens imensas, ao fim de quase oito horas chegam à povoação, uma dúzia de casas de alvenaria, a casa de comércio abandonada, mas em estado de recuperação fácil e rápida, e uma área circundante com as casas “de pau a pique” dos trabalhadores rurais.

A visita mais detalhada foi à antiga casa de comércio, que deviam comprar, para avaliar da necessidade de obras. Falaram com o soba da região que lhes disse que um bom comércio ali era fundamental, e que ele apoiaria e arranjaria gente para trabalhar na recuperação do prédio. O povo estava com dificuldade de abastecimento, e tinha pouca confiança nos outros pequenos comerciantes locais. Até lhes indicou com quem deviam negociar a compra do imóvel, que no estado em que se encontrava e falta de interesse de compradores não valia quase nada.

O tio encontrou em Luanda um procurador que concertou o negócio com o antigo proprietário, por um preço simbólico, depois do que Gabriel, carrinha carregada de cimento e madeiras para portas e janelas, segue para Xá Muteba.

Conforme prometido o soba pôs à sua disposição o número de homens necessários para as obras, homens simples, mas que tinham que ser robustos, a quem se pagava corretamente. Durou uma semana o restauro. Só ficava faltando uma pintura para mostrar ao povo que a casa estava de cara nova.

Deixou o imóvel aos cuidados do soba que logo arranjou dois guardas e regressou a N’Dalatando. A primeira coisa a ser feita foi a escritura da nova sociedade, que rápido ficou pronta. Agora já era sócio do tio, mesmo que as suas cotas fossem, em parte, a realizar. Depois, fazer a lista das mercadorias com que encher a loja, ir a Luanda encomendá-las e esperar o aviso da saída do caminhão que levaria tudo. Até um pequeno conjunto de mobílias para a casa do “gerente”. Gerente e sócio!

Na semana seguinte chegou o aviso com a data em que caminhão sairia de Luanda. Ia direto a N’Dalatando, e daí seguiriam juntos para Xá Muteba.

Catxi, quase diariamente aparecia na loja, mas com o tio e família presentes nada mais podia fazer do que uma rápida troca de palavras, o suficiente para se entenderem sobre um local de encontro à noite! Ele conhecia bem toda a povoação, a iluminação em quase todo o lugar era muito fraca ou inexistente, mas não era possível encontrarem-se escondidos no mato. Perigoso e completamente escuro, seria loucura.

“Lá no fundo da rua tem um canto, ainda com um resto de luz, sem mato alto, e protegido por um muro, o lugar ideal.”

Passou a ser diário o encontro. Um namoro que sempre envolvia a relação completa. A verdade é que Gabriel estava, mesmo, enamorado por aquela garota. Disse-lhe que ia viver para Xá Muteba e que queria levá-la com ele.

- Tem que falar com meu pai.

- Eu falo.

- Não. Ele pode não gostar. Eu falo. Mesmo que que ele não goste muito eu vou.

Avisada da data da partida, marcou-se um lugar na estrada onde ia passar. Ela que esperasse lá por ele. “Não precisa levar muita coisa.”

No dia previsto, chega o caminhão, grande, bem carregado. Para enfrentar os restantes 360 quilómetros preferiram dormir ainda essa noite em N’Dalatando e sair de manhã, bem cedo, antes do nascer do sol. Carregaram a carrinha com mercadoria que havia em excesso no armazém, e as miudezas mais frágeis como os Petromax, velas, louças, roupas de casa e pessoais, mavunga, cobertores, porque vão para cerca de mil metros de altitude e as noites lá são frias, mantimentos frescos para os primeiros dias, como batatas, feijão, e outros, alguns enlatados, enfim tudo quanto pudessem para passar bem até estarem definitivamente instalados, incluindo umas braçadas de lenha. Até um presente especial da tia: um bacalhau!

África era assim. Quem vai pró mato... avia-se bem, em terra!

Uma última saída à noite. Só para avisar Catxi. E um beijo.

Despedida dos tios e dos pequenitos. O tio entrega-lhe um envelope com o dinheiro suficiente para os primeiros tempos e diz-lhe que quando precisasse de alguma coisa lhe escrevesse e se fosse urgente se deslocasse a Malange, ao telégrafo.

Um ou dois quilômetros depois de saírem da cidade, o dia a querer romper, sempre com medo que Catxi não aparecesse, ao longe, os faróis avistam um vulto. Era ela.

Parou a carrinha, ela entrou e ele sentiu que estava a começar uma vida duplamente nova: no comércio e em “lua de mel”. Seguiam os dois mostrando como estavam felizes!

Catxi, sempre com o mesmo sorriso simples, carregava com ela um pequeno embrulho de pano, com meia dúzia de roupas. Era tudo quanto possuía. Levava ainda umas mudas de mandioca que a mãe lhe dera para começar a sua nova vida de mulher casada. Mesmo sem haver casamento oficial, desnecessário para viver longe de tudo e todos.

Pararam em Malange para uma refeição rápida num lugar onde a presença da Catxi não causasse problema, e com o sol a pôr-se chegam a Xá Muteba.

Guardam os carros no pátio e só descarregam o que lhes pareceu indispensável para passar a primeira noite, a que não faltou a cama!

Mais mesa, umas cadeiras, dois Petromax, louças, um pouco de lenha para preparar um jantar, roupas e praticamente tudo que carregaram na carrinha.

De manhã chamariam alguns homens para ajudarem a descarregar o caminhão, sempre ouvindo o conselho do soba que acabava ficando responsável pelo bom comportamento dos que indicava, dois dos quais logo contratados para servirem na loja e armazém e mais um terceiro para guarda de noite, a quem foi entregue um evunga para se agasalhar.

Catxi estava encantada. Não queria acreditar que ia viver dentro de uma casa, boa, numa cama, larga, bonita, com lençóis e, o principal, o rapaz que também já amava.

Foi ela que acendeu o fogo e com a ajuda de Gabriel preparou um jantar para os dois e mais os dois homens do caminhão, que lhes restituiu as forças.

Ele estava louco para se deitar com a Catxi. Na sua casa, no seu quarto e numa bela cama!

Jantaram a correr, também estavam cansados da longa viagem com tanta poeira e buracos, lavaram-se o melhor que puderam, arrumaram a cama, e para ele iria ser uma grande noite, feliz também porque a sua nova vida, independente, ia começar!

Catxi também se lavou bem, ficou mais linda e fresca foi ter com o seu homem.

Ninguém conseguiria descrever o que foi a noite deles. Não pararam. Acariciavam-se, abraçavam-se e por mais de uma vez tiveram que sair da cama e voltarem a lavar-se, porque o frio da noite não conseguia penetrar no calor que fazia entre os dois, o que os deixava a suar.

Só pararam quando o dia começou a despertar. Cansados, dois jovens que mostravam na cara o quanto estavam felizes.

O motorista do caminhão:

- Grande noitada, hein? senhor Gabriel!

- Estou em lua de mel!

- !?!?!?! Casou com essa negra?

- Negra? Essa agora. É a minha mulher. Dibanga, sabe o que é? Você já viu alguma mulher nua?

- Muitas.

- Que diferença encontrou entre uma que você chama negra, com ar de desprezo, e outra que talvez lhe chame branca? Não são iguais? Não têm duas pernas, dois braços, uma cabeça e tudo o mais que uma tem, não tem a outra? Oh! Senhor António. Parece que o senhor ainda não chegou a Angola.

- Desculpe, eu não quis ofender.

- Não ofendeu nada, mas aconselho-o a que vá a um médico dos olhos e depois me diga qual a diferença que encontrou.

O camionista assentiu com a cabeça e riu-se. Gabriel acabara de lhe dar uma boa lição.

Loja pronta, armazém arrumado, os clientes não tardaram a aparecer. No dia da inauguração Gabriel e Catxi convidaram o soba e seus conselheiros, abriram um garrafão de vinho, conquistaram a confiança da população. A balança para compra era a mesma para venda, o que em muitos lugares não se fazia, para roubar um pouco de cada lado!

Chegou a época da colheita do algodão e não tinham mãos a medir. Prevendo isso Gabriel comprara já uma balança maior e quase diariamente chegava um caminhão que, depois de bem carregado, ia dali direto a Malange de onde seguia pelo Caminho de Ferro para Luanda.

O preço era fixado pelos grandes oligarcas da Metrópole, donos de fiações e tecelagens e que só com preços esmagados conseguiam sobreviver no mercado nacional e internacional, ganhando ao mesmo tempo muito dinheiro, espremendo o quanto podiam os agricultores que viviam descontentes. Quando Gabriel pensava obter uma boa margem em cima da sua comercialização, sentiu que tinha que a reduzir quase a zero para continuar a merecer a confiança da população daquela grande região. Pouco ou nada ganhava no algodão, mas mantinha o comércio cada vez mais fiel.

Ao fim do dia sentava-se com a sua Catxi, que continuava a mantê-lo com os olhos só para ela, apesar da quantidade de outras que diariamente entravam na loja, algumas delas fazendo para ele aquele sorrisinho desafiante, mas que não o abalavam, e começou a ensiná-la a ler. A fazer contas foi bem mais simples. Entretanto já se notava que a sua barriga crescia e que estava próxima a chegada dum novo luso-angolano!

(continua)

sábado, 5 de setembro de 2020

 

Um pequeno conto escrito em 2013 – vai ser postado em 4 fases por ser um pouco grande

 

História Luso-Angolana

De Volta aos Primeiros Passos – 1 –

 

Lá! Nas serranias, no alto da Serra do Leomil, onde só na primavera e princípio do verão o mato cresce verdejante, no restante do ano alguns paus secos emergem em fragas onde se escondem coelhos, alguns caminhos onde mal passa uma carroça, uniam, quando a neve não escondia tudo, umas poucas casas de pastores à povoação na base da serra.

Povoado com igreja, igreja pequena, uma capela, onde o padre só aprecia a cada duas semanas, escola primária, mais uma ou duas dúzias de casas, um café com comércio, tudo modesto.

Era na escola que se juntava o povo da aldeia para as festas, que sempre se faziam sobretudo nos Santos populares, mais os alunos que quase todos os dias desciam e subiam a serra, para crescerem em conhecimento.

Gabriel, filho único, temporão, de um casal de idade avançada, era o sempre o primeiro a sair e o último a chegar a casa, o que mais andava porque morava mais longe. À saída da escola eram uns oito que empreendiam essa jornada serra acima, iam uns ficando pelo caminho às portas das suas casas, sendo os últimos Gabriel e Maria Rita, que o tempo os foi fazendo cada vez mais amigos.

No tempo frio subiam agarrados um ao outro para se defenderem do vento gelado, e quanto o tempo estava ameno brincavam pelo caminho, apanhando bichinhos, uma ou outra flor, coisas de criança que à medida que crescem vão mudando de gosto nas brincadeiras. 

Acabado o ciclo primário foram para mais longe começar o segundo ciclo. Um carro do município recolhia as crianças das aldeias dos arredores e à tarde, sempre cedo, porque alguns demoravam a chegar a casa, levava-os de volta às aldeias.

Ele fizera-se um rapagão, forte, estava com quatorze anos, vencia quase todos os colegas mais velhos em lutas ao desafio, ao mesmo tempo mantinha um bom ritmo escolar, era apreciado pelos professores e muito disputado por algumas colegas mais “assanhadas”!

Mas desde criança os olhos dele eram todos para Maria Rita, já uma garota bonita, a fazer-se mulher que não tinha problema nenhum em mostrar má cara quando outra se animava com ele. Também desde cedo ela o considerava seu, e o ciúme começava a roer-lhe o pensamento.

Todos os dias lá desciam e subiam a serra, como o faziam há bem mais de meia dúzia de anos!

O tempo agora era bom, primavera, sol agradável, quando o amor começa a despontar!

Um dia na escola, Maria Rita fez má cara e virou as costas quando uma colega, também atraente, espevitada, toda se fazia graciosa aos olhos do galã!

À tarde, a caminho de casa procurava afastar-se do companheiro e amigo. Já não eram oito os que subiam a serra. Agora eram só quatro, alguns tinham ficado só com a instrução primária e dois deles pouco andavam porque a sua casa era logo na base da subida.

Lá seguiam Maria Rita e Gabriel sozinhos encosta acima.

Gabriel acelerou o passo, pára na frente de Maria Rita que não o queria encarar e:

- Rita! O que é isso? Tás chateada por que a Encarnação se meteu comigo?

- Não. Deixa-me.

- Para que essa fita toda? Tu sabes que fomos feitos um para o outro. Eu não tenho é como impedir que elas se queiram mostrar.  Mas não lhes ligo nenhuma!

- Deixa-me.

- Não vou deixar-te nunca!

Aproximou-se para a abraçar. Maria Rita ainda tentou reagir, mas logo estavam os dois num longo e apertado abraço.

Era a primeira vez que se encontravam nessa situação e Gabriel experimentou uma sensação quase nova, estranha, muito forte, que o despertou e excitou. Não segurou a tentação e deu um longo beijo na Rita, que rápida se afastou, corada.

Gabriel ficou a segurar-lhe as mãos que ela não soltou. Devagar foi-a puxando novamente para si e voltaram a agarrar-se. Deram beijos um no outro e pela primeira vez também saíram as palavras mágicas que cada um tinha caladas dentro de si: “eu te amo muito”.

O tempo estava bom. Ali perto, fora do caminho, umas rochas no meio do verde que crescia e estava alto, parecia o lugar ideal para se sentarem um pouco e, se conseguissem, conversar sobre... sobre o que?

Sentados, não disseram uma palavra. Os beijos tinham despertado nos dois todo um frenesi que não queriam que acabasse. Mas os beijos só não os satisfazia, nem o abraço podia ser estático. Logo as mãos afagavam as costas, a cara, a cabeça, seguravam-se com força até descobrirem que o melhor beijo eram quando as bocas se encontravam.

Sentados naquelas pedras não aproveitavam tudo quanto desejavam, deixaram-se cair para se deitarem naquele manto verde que tinha ainda a vantagem de os esconder de qualquer olhar de quem passasse no caminho.

Estavam a descobrir os primeiros passos do amor.

Deitados, as saias da Rita subiram deixando as belas pernas destapadas e Gabriel não tardou a afagá-las. Foi subindo a mão, sem encontrar resistência. Estava louco. A Rita já sentia que alguma coisa estava a acontecer porque, deitada por baixo, no encosto, apertado, entre as suas pernas sentia um volume que lhe era desconhecido.

- Gabriel, isto é um disparate. Ainda acaba mal. Eu sei como se faz porque a minha casa é pequena e eu vejo quando os meus pais se animam na cama!

- Rita, eu não sei como parar, estou a ficar louco. Vamos experimentar só um pouco.

Num instante tira as calças, sobe mais as saias da Rita, que tira a calcinha e com pouco tempo leva a encontrar o caminho! Quando por fim o encontra e segue em frente, Rita dá um pequeno grito, mas não larga o abraço apertado em que estavam.

Gabriel voou pelos céus e todas as serras do mundo e Maria Rita, com lágrimas nos olhos, beijava-o muito. Um pequeno fio de sangue corria nas suas pernas.

Deixaram-se ficar um pouco mais naquela situação e quando se puderam levantar:

- Gabriel! Olha isto. E se eu engravidar?

- Que horror. Nem pensa nisso. Fala com a tua mãe para saber como ela faz. Agora temos que ir embora para que não desconfiem.

Mais um longo beijo e o resto do caminho a percorrer.

Em casa Rita mostrava-se confusa e a mãe percebeu que algo se passava. Rita só respondia, que “nada”, “coisas lá da escola”, “as outras meninas a meterem-se com o Gabriel”, mas tudo sem convicção suficiente.

A mãe, mãe de mais cinco filhos, achou que era hora de falar com a filha sobre namoros, homens, etc. Sentaram-se fora de casa e tiveram uma longa conversa, de mulheres.

- Toma cuidado, minha filha. Os homens são todos uns ingratos. Não confies em ninguém e guarda-te para o dia em que fores, mesmo, casar. E só casa com o homem que te pareça que te merece confiança.

Maria Rita a tudo assentia com a cabeça, sem se atrever a contar à mãe o que se passara, apavorada, sobretudo, com a possibilidade de ter engravidado.

No dia seguinte, de manhã, ao descer a serra, Gabriel não a largava, querendo ir sempre abraçado, o que ela rejeitou.

- Gabriel. Estou com muito medo de ter engravidado. Não sei como isso acontece, mas o que fizemos ontem é o que os meus pais fazem e já somos seis irmãos. Se eu aparecer grávida os meus pais nem sei o que farão comigo, além de ficar marcada perante toda a gente. Vê, estuda o que pode ser feito. Por favor.

Gabriel também se assustou. Inexperiente e muito jovem não sabia o que fazer, nem a quem se dirigir para se aconselhar.

Na escola disse ao professor que não estava a sentir-se bem, com tonturas, etc., foi encaminhado ao posto de saúde. Insistiu que queria ser atendido por um médico porque era coisa de “homem”.

O médico, experiente, cabelo encanecido:

- Então, meu rapaz, qual é o problema de “homem”?

- Senhor doutor, o senhor jura que não conta nada do que eu aqui disser?

- Claro. Nós também temos segredo de profissão. Conta lá. O que posso fazer por ti?

A medo, gaguejando, contou toda a história, sem mencionar quem era a parceira.

- E agora, senhor doutor, o que devo fazer?

- Pouco ou nada. Mas vou dar-te uns comprimidos e dizes à tua amiguinha que tome um por dia durante sete dias. Talvez resolva o problema dela. Mas tu vais ter que esquecer essas brincadeiras, porque isso é muito sério. É claro que há métodos que evitam engravidar, mas nem sempre. É um problema que tem que ser explicado, por um médico, às mulheres, para elas controlarem o seu ciclo. Tu, a única coisa que podes fazer é... nada!

O médico deu-lhe, disfarçadamente, os comprimidos e mandou-o de volta, pedindo-lhe para lhe dar notícias daí a um ou dois meses!

De regresso a casa, explicou tudo a Maria Rita, pedindo-lhe que escondesse os medicamentos para que a mãe não os visse, e não deixasse de o avisar quando viesse a próxima menstruação.

Até lá, muitos abraços, muitos beijos, mas nada de se despirem e voltarem ao mesmo, o que deixava Gabriel enlouquecido.

Pouco tempo depois, António, o pai de Gabriel morre, a família fica sem quase nada e um tio, o mais novo irmão do pai, bem mais novo do que este, que há anos estava em África, chama para lá o sobrinho. Que embarcasse assim que terminasse o ano letivo. Já tinha na companhia de navegação ordem para lhe fornecerem a passagem para Angola.

Para ele e sua mãe, que ficaria só lá na casinha da serra com as poucas ovelhas, era a única forma de sobrevivência. Mas... e quanto a Maria Rita? Como deixá-la? E se estivesse grávida?

Não conseguia descansar a cabeça, nem sabia como dizer isto à “sua” Maria Rita. Na escola não conseguia mais concentrar-se, e nas longas caminhadas serra abaixo e acima, o nervoso era tanto que lhe custava falar. Mas teve que ser.

- Rita. Vou embora para África. Aqui não tenho mais como sobreviver depois que meu pai faleceu. O meu tio Manuel já me comprou a passagem e daqui a um mês embarco.

- Que horror. Como é que eu fico?

- Tens aqui este papel com a morada para onde eu vou. Toda a semana manda-me uma carta a dizeres como estás, e se surgir algum problema eu farei o impossível para que possas ir ter comigo. Se tudo correr bem, quer dizer, se não estiveres grávida, vamos esperar um pouco que logo casaremos, e logo vais correndo, para nos juntarmos.

- Quanto tempo, meu Deus?

- Penso que até fazeres dezenove anos. Antes disso ninguém nos vai dar autorização. Vamos fazer um sacrifício grande, mas o nosso amor tem muito mais anos do que isso, e basta nós queremos, muito, tudo há-de correr bem.

Maria Rita abraça-o e chora copiosamente. Ambos choram, e prometem-se “juras de amor eterno”.

A mãe, sem se refazer da morte do marido, chorava, certa de que não tornava a ver o filho.

Gabriel cruza mares, chega a Luanda onde o aguardava o tio, comerciante com vida financeira folgada, mas não rico, uma boa casa comercial em N’Dalatando a cerca de 250 kms da capital, com um clima que sempre refrescava durante as noites, por estar, não só rodeado de floresta, como se situar a 700 metros de altitude.

As saudades de Maria Rita faziam-no sofrer, mais ainda sabendo que era agora à volta dela que os colegas e outros urubus haviam de rondar para lha roubarem! Antes de seguirem para o interior pediu ao tio para mandar um telegrama a avisar a mãe e a Maria Rita que tinha chegado bem.

As tarefas que lhe foram entregues na casa comercial do tio não lhe deixavam muito tempo para lamúrias. Assim mesmo todos os dias escrevia um pouco e toda a semana ia ao correio ver se tinha correspondência dela e mandar a carta “lá p’rá serra”.

Finalmente chegou carta da Maria Rita. Um tanto lacônica. Chorava de saudades, custava-lhe muito a fazer aquela caminhada sozinha, tinha até medo que algo lhe acontecesse, e não via o tempo passar para ir ter com ele, como tanto pedia a Santo António. Na carta seguinte veio a melhor notícia: não engravidara!

Gabriel não deixava de lhe escrever toda a semana, mas já começava a demorar um pouco mais a entender algumas jovens angolanas que apareciam na loja, o que não passava desapercebido ao tio, muito menos a elas que se riam e comentavam entre elas, em quimbundo, o que o obrigou a ter que arranjar um mestre para lhe ensinar a língua da região.

O tempo passava, os dezessete anos apertavam com ele, as cartas entre Maria Rita e N’Dalatando seguiam em ritmo normal, sem nuca dar ideia de que estava a apreciar, e muito, as vistas de algumas garotas angolanas! Isso nunca iria dizer! Só disse que estava a aprender quimbundo, a língua local, porque muito nativos tinham dificuldade em falar português e, sobretudo ele, sem os compreender quando falavam entre si. Era uma língua curiosa e até divertida!

A casa do tio, numa das entradas da cidade, dividia-se em dois corpos distintos. Um, a residência, sobrado, onde viviam, ele, o tio e a mulher com dois filhos pequenos de seis e oito anos, com quem se dava muito bem. Outro, a loja, com o armazém e um pátio grande onde duas belas árvores seguravam um pouco o calor do dia, em geral forte.

Quase todas as noites, quando uma leve brisa de frescura, vinda das matas, aliviava o peso do dia e do trabalho, depois da loja fechada e o jantar comido com a família, Gabriel saía, dava uma volta pela terra, passeava, conhecia todos os cantos, cumprimentava um ou outro que estivesse fazendo o mesmo, incluindo alguns nativos, conquistando, devagar, mas com segurança a simpatia de todos. Gostava de sentir aquele fresco que vinha da mata, seus cheiros tropicais, e mais ainda quando tinha oportunidade de ir contemplar o pôr do sol. Tudo isso estava a fazê-lo criar profundas raízes com aquela África em que ele jamais sonhara.

Fotografava tudo que lhe parecia interessante e aos poucos mandava para Maria Rita, que só queria ver a cara dele, se estava bem. Conseguiu perceber que estava mais alto e forte. Um homem.

Esse homem já não desgrudava os olhos das clientes jovens que todos os dias entravam na loja. Sempre alegres, sorridentes, peles escuras que começavam a parecer cada dia mais atraentes. Ora compravam panos, farinha, óleo, petróleo, ou vinham vender uma parte das suas produções agrícolas.

Se de entrada os negócios se faziam em poucos minutos, agora ele demorava mais tempo a discutir com elas. Qualquer argumento lhe servia: valor, qualidade, quantidade; o que lhe interessava era ficar o mais próximo delas e sentir-lhes o cheiro de fêmeas, a fazer crescer a tentação. Os dias passavam, meses, dois anos, Gabriel já as achava todas, ou quase todas, bonitas, lindas, sobretudo apetecidas, mais ainda quando elas lhe abriam aquele sorriso simples, mas caloroso.

A correspondência com Maria Rita tinha abrandado. Ela mandara dizer-lhe que tinha acabado o curso do liceu com tão boa classificação que lhe deram uma bolsa de estudos, completa. Estava feliz, com muita saudade dele, mas não ia perder a oportunidade de ingressar na faculdade e ser uma doutora.  No próximo Outubro ia para o Porto, estudar letras. E assim que se formasse queria ser professora do liceu.

Eram pelo menos mais quatro ou cinco anos de espera, e Gabriel começou a desacreditar que Maria Rita, uma doutora, quisesse ir viver com ele naquelas terras de África onde o ensino estava muito rudimentar. Não era vida para ela.

Lembrou muito o tempo da juventude, como se amavam e amaram, mas alguma coisa lhe dizia que aquela notícia era o fim do sonho de ambos que tanto tempo durara.

Se ao menos pudesse ir passar um mês de férias lá no “puto”, podia ser que as coisas se arranjassem. Mas era despesa que não estava ao seu alcance.

Os olhos, quer ele quisesse ou não, abriram-se mais e mais para as garotas da terra. Ali, à mão, rindo para ele, ar feliz, sem doutoramentos a atrapalhar... Maria Rita era para ficar na memória dos bons tempos de criança e adolescente.

Na primeira oportunidade que teve de ficar sozinho na loja, além dos dois serventes empregados, o tio tinha ido a Luanda com a mulher e filhos, quase no fim do dia entrou uma dessas “irresistíveis”. Gabriel disse-lhe que a ia atender, mas como já passava da hora precisava fechar as portas, o que não a preocupou.

Dispensou os serventes. Uma vez sós, perguntou-lhe o que ela queria, ambos do mesmo lado do balcão. Chegou-se mais perto, atreveu-se a passar-lhe a mão no braço nu, sentiu aquela pele sedosa, a que a jovem simplesmente reagiu murmurando aquele: “Hãh! Hãh!” a sorrir para ele.

 

(continua)