quinta-feira, 21 de maio de 2020


Que tal darmos um passeio por terras “pouco navegadas” trazendo à memória os tempos em que se podia sair de casa!
O “menu” de hoje será Cabo Verde e Guiné-Bissau. Desejo que apreciem o passeio.

CABO VERDE

Quando estive a trabalhar para a GEIPEX e responsável por eventuais projetos de engenharia para as ex-colónias portuguesas, este foi um dos países que visitei, em 1991.
Cabo Verde é um país pobre, sobretudo as ilhas de Barlavento, entre as quais Sal, a que permitiu a construção dum aeroporto internacional e Santiago onde está a capital, cidade da Praia.
Terra de gente de todas as cores, de olhos azuis a pretos, simpatia tradicional e constante, alegria e música que se não esquece e pode-se ouvir todo o dia.
O Pão de Açúcar, em Lisboa, consegui-me um guia, seu representante, que foi incansável. Projetos? Pesca, só nas costas de África e tinham um pequeno acordo com a Mauritânia e creio com o Senegal, mas estavam em permanente desacordo! A velha pesca ao atum, que duas vezes por ano passava em imensos cardumes entre as ilhas do Sal, Boavista e Maio, sofria enorme concorrência de pesqueiros da União Europeia, melhor equipados, mais ricos, o que deixava Cabo Verde na sua minguada economia.
Projetos agrícolas na ilha principal onde chove durante um mês ou dois, uns 200 mm por ano, e caem em poucos dias, lavando as encostas e arrastando as terras, e como não tem como armazenar essa água, torna a agricultura um trabalho insano. No Sal então caem uns 50 mm. Estas ilha sofrem quase constantemente um vento quente, ido do Saara, o Harmattan, que tudo seca.
Qualquer projeto para guardar essa água só em cavernas o que seria faraónico, e como o tempo dos escravos há muito acabou... não parece que alguma coisa possa ser feita.
O interior montanhoso
Vive muito do dinheiro dos emigrantes, que muitos foram para os EUA, Canadá e Europa, mas é sabido que filho de emigrante cessa com essas remessas.
A água do mar é uma beleza, praias lindas em quase todas as ilhas, dificilmente nos meses frios baixa a 20º e fica a maior parte do tempo a 25° o que faz as delícias dos banhistas/turistas, que desde quando lá fui até hoje, fizeram na quase desértica ilha do Sal uma cidade, cheia de hotéis, condomínios, etc., mas... onde não há água potável. Têm que a tirar do mar e tratar os dejetos de forma química para poderem devolver ao oceano. Uma loucura que, como é de imaginar não vai durar muito. Além da invasão que sofreu com os traficantes de drogas que chegam a toda a hora da África continental.
As ilhas de Sotavento, são bem regadas, mas tudo montanhoso. Vive-se da agricultura familiar, já com algum desenvolvimento, e merecem muito uma visita, aliás uma estadia.
Na capital, Praia, tive um entrevista com o Ministro da Agricultura, a quem disse que, quando da independência das colónias eles deviam ter optado por ficarem ligados a Portugal, com o estatuto igual aos Açores e Madeira, porque ficariam integrados na União Europeia, o que acabaria com o problema dos que quisessem emigrar.
Ele retrucou que eram africanos e nada tinham a ver com Portugal, mesmo sabendo que os primeiros ocupantes daquelas ilhas foram exatamente os portugueses. Eles eram africanos!
Perguntei-lhe:
- “Quantas etnias há em Cabo Verde? Quantas línguas? Quantas religiões?”
A resposta foi sempre a mesma:
- “Uma. Só a língua é varia um pouco porque temos o crioulo”.
- “Mas o crioulo é uma variante do português. E por exemplo no Senegal, ou na Guiné, existem dezenas de etnias, de línguas, de religiões. Além disso as ilhas de Cabo Verde não pertencem ao bloco continental africano. São vulcânicas!”
Engoliu em seco (o clima ajuda) e pronto. Acabou o papo.
Como só tinha voo de regresso ao fim de uma semana, fomos um dia almoçar ao Tarrafal, onde esxistiu uma prisão política portuguesa, o Campo da Morte, de má, terrível história, mas com uma linda praia e ótimo peixe ali pescado. Infelizmente esse almoço acabou mal! Como o meu simpático guia tinha sido sempre muito amável comigo, eu achei que era uma boa ocasião de retribuir alguma coisa e paguei o almoço.
O que foste fazer! O sujeito ofendeu-se, levou-me de volta e não o voltei a ver.  Quer dizer: parece que em Cabo Verde não se pode ser amável com os locais!
Soube depois que havia na Praia um campo de golfe. Fui apresentado a um dos dirigentes que me emprestou os clubs, e lá fui, sozinho, jogar um pouco.
Os fairways não são verdes, são brawns, e os greens, que deviam ser verdes, eram pretos, feitos de pedra vulcânica, moída, onde a bola em vez de deslizar parecia grudada no chão! Quase acertei na cabeça de uma mulher que passava, com uma bilha de barro na cabeça, mas... a bola passou uns 10 ou 15 cm atrás!
Uma noite fui a um boteco onde havia uns músicos, todos amadores, e deliciei-me um pouco a ouvir aquelas mornas e coladeiras, de que sou fã.
Nada que pudesse fazer de útil, fui passar o último dia no Sal, no único hotel que lá havia nesse tempo, Hotel Morabeza com pequenos bangalôs afastados uns dos outros ocupando uma imensa parte da maravilhosa Praia de Santa Maria; andei uns largos quilómetros pela praia, e quase todo o tempo que estive naquele país quase só comi lagosta, feita de todo o jeito e muito camarão. Delícia. Tudo ido das costas de África.
Hoje está um hotel comum, muito bom, que até duas quadras de tênis tem.
E tem mais uma porção de outros hotéis, condomínios, casas de milionários, mas...
Perspectivas de projetos para o país: nada.
De Cabo Verde pouco mais ficou do que Soidade, como cantava a grande Cesária Évora.

GUINÉ -BISSAU

Dentro do mesmo plano da GEIPEX, fui à Guiné.
O meu espanto começa logo à chegada, quando vejo o pessoal a descarregar as malas do avião: à mão! Traziam um ou duas malas, depois sentavam-se um bocado “a descansar”!.
Como em Cabo Verde, foi um representante do Pão de Açúcar que me acolheu e foi dizendo que não valia a pena esperar que tirassem as malas todas porque isso demoraria muito. “Eles depois vão entregar as malas ao hotel!” E foram, já eu estava para dormir pelado, à espera da mala, mesmo que antes de subir para o meu quarto tivesse estado uma meia hora na conversa com o simpático anfitrião.
O hotel, novo, creio que era Sheraton, construção muito simples – estrutura de ferro e paredes tipo dry wall ou coisa semelhante. Como ficava fora da cidade no dia seguinte mudei-me para um outro que tinha sido a residência e messe dos oficiais portugueses. Agora bem arrumado era o “point” mais importante de Bissau. Parece que hoje se chama Dunia ou 24 de Setembro. Até o presidente, João Vieira, gostava de ir-se pavonear nas ruas dentro do espaço do hotel, acenando “ao povo hóspede”, tipo faraó, sem sair do carro seguido de dois jipes com soldados armados de metralharas!
O hotel em 1991

Comecei por ir ao Ministério de Agricultura, uma área grande, e logo na entrada dou de caras com um trator completamente novo, que ali estava a apodrecer... sem as rodas e pneus!
Pela cidade havia uns quantos geradores porque a distribuição de energia elétrica era muito falha, mas a maioria deles estava também abandonada. Não havia nem mecânicos nem peças para reparações.
Sua excelência o ministro não estava, falei com um técnico agrónomo (?) que me pareceu que não distinguia capim dum fio de ferro!
Mas soube que as magníficas mangas que exportavam para Portugal, com selo da Guiné, na verdade eram produzidas na Guiné-Conakry, e entravam de contrabando em Bissau. Eu mesmo vi a chegada de dois caminhões carregados!
A Guiné é um país difícil separar a parte continental da insular. Tem 80 ilhas, e o território continental é cortado por inúmeros rios que dificultam a comunicação e o escoamento de eventuais produções agrícolas.
País pobre, onde os generosos países que decidiram ajudar após a independência, cometeram o que se pode chamar de crimes. Roubo, corrupção, neo-colonialismo.
A agricultura é muito dividida em razão das dificuldades de transportes, mas foram mostrar-me um “fábrica” de descasque de amendoim – mancarra, na Guiné – construída em perfis de ferro, lá.. lá... no meio do mato, floresta, clima tropical húmido, para que dali pudesse seguir por embarcações para Bissau de onde seria exportada.
Estava totalmente enferrujada e o que produziam era quase nada. Mas assim mesmo quando lá chegámos fomos barrados por militares que não nos deixaram visitar aquele lixo!
Constatei que fazia falta ensinar mais técnicas agrícolas, visto que o povo só conhecia, e bem, o que produzia desde toda a vida, tendo até descoberto que podiam plantar arroz irrigado com agua salobra! Com marés muito fracas, levantavam “camalhões”, plantavam o arroz no topo e a humidade que chegava às raízes já ia filtrada do sal! Inteligente!
Fui apresentado a um senhor guineense, já de avançada idade, que tinha sido deputado no tempo colonial, completamente votado ao ostracismo, mas tinha uma boa e grande propriedade nos arredores da capital, boas instalações, boa terra, água etc., e estava já cansado para trabalhar.
Pareceu-me o lugar ideal para se fazer dali uma escola de agricultura. O senhor ficou entusiasmado com a ideia.
Fui falar com um alto funcionário, ministro já não sei de que, de origem caboverdiana, reminiscência da luta colonial, mas que ainda tinha muito poder, e expus-lhe a ideia.
Escutou com atenção, e foi mostrar-me um mapa grande do país que tinha na parede.
Disse logo que uma escola agrícola ao lado da capital não seria uma ideia boa, melhor lá no interior e mostrou-me claramente onde gostaria que se fizesse. Nesse mesmo dia fiquei a saber que essas outras terras eram dele! Resultado: não se fez nada.
Voltei ao Ministério da Agricultura, mas como sabia que o deserto, a norte, todos os anos estava a comer uma parte do país, quis ver os índices pluviométricos, e constato que nos últimos 20 anos havia uma queda de 25%, e que as florestas no norte também estavam a ser cortadas para a venda da madeira.
Quando pus o problema o engenheiro achou que continuava a chover bem e que não havia caso para preocupações. E as áreas de floresta a transformarem-se em savanas! O que haveria a fazer seria um grande trabalho de reflorestamento para segurar as areias e o vento quente. Não se interessou.
No hotel aparecia todos os dias, um vendedor de artesanato que ele obtinha, tudo contrabandeado, de diversos países africanos, com coisas interessantes. Com a nossa casa cheia de “recordações”, não queria mais nada. Chamava-se Mamadou, um sujeito grandão, muçulmano, muito simpático.
A primeira pessoa a quem sempre se dirigia ao chegar ao hotel era a mim, que o mandava sentar-se para conversarmos. Perguntei-lhe quantas mulheres tinha. “Só quatro, porque a lei não permite mais!” Curioso, perguntei com fazia para dormir com todas elas.
Tinha tudo perfeitamente organizado. A primeira era a chefe geral e até vigia, dedo duro (!) não fosse alguma das outras querer dar uma escapadinha. Cada uma tinha a sua casa, onde vivia com os seus filhos.
Toda a semana trocava de comanhia. Saía uma, que levava toda a roupa da cama e do marido para lavar, e entrava outra com tudo lavadinho! Organização perfeita!
Mas vender-me qualquer coisa, o seu maior objetivo, não foi alcançado, o que não impediu que nos víssemos quase todos os dias e tivéssemos papos interessantes.
Véspera de ir embora, já tinha conhecido um colega e dois amigos deste, fomos comer ostras. Um boteco, na esquina, fornecia as cervejas e a casa ao lado as ostras. Eram servidas abertas que ele punha em cima de prateiras de metal (das estantes roubadas dos antigos serviços administrativos portugueses!), a prateleira com 15cm. de lado era uma dose e as largas, com 30 eram duas ou três doses. Ótimas ostras, serviço original.
Ao regressarmos a pé ao hotel, de noite, somos abordados por vendedores de artesanato. Como eu já tinha tido problemas em Moçambique não quis comprar nada. O cara insistia e pediu, por uma marimba e outra coisa, 500 Francos CFA. Para o despachar disse-lhe que não valiam 50. “Dá os cinquenta!” Tive que engolir.
Além disso comprei, na rua dois livros de estudos agronómicos da Guiné, ainda com o carimbo dos antigos Serviços de Agricultura (!), um pacotinho de caju, e entretanto tinha mandado fazer uma camisa com aqueles lindos panos que usam os africanos. E uns panos tecidos no local que achei lindos

Hora de ir embora, no aeroporto a fiscalização começou logo por embirrar com as duas porcarias do artesanato, o que me pôs p. da vida. Depois disseram que não podia levar caju, artesanal, um pacotinho com meio kilo, porque caju era uma das únicas coisas que eles exportavam!!!
Tive um ataque, deixei tudo em cima do balcão, disse-lhes que podiam roubar à vontade e virei-lhes as costas.
Fui esperar que chamassem para o embarque. Ali vejo o meu colega, guineense, e fui-lhe dizer que o que me estavam a fazer era um roubo. Ele foi lá e disseram-lhe que eu podia ir buscar tudo. Mas quando retirei as minhas coisas mandaram-me para uma sala para ser revistado. Vingança. Puseram-me de cuecas e depois com ar de sarcasmo: “pode ir embora!”
Ao meu colega fui dizendo que no meu relatório da visita à Guiné ia escrever que nada podia ser feito. Terra de bandidos! E como eu viajava em 1ª classe e ele na turística, disse-lhe mais: “Quando chegar a Lisboa, como eu saio primeiro vou avisar as autoridades que você é um traficante. Vai gostar!"
Fez um ar de espanto, deve ter viajado a pensar no que lhe ia acontecer ao chegar a Lisboa, mas é de imaginar, não denunciei ninguém.
Mas uma viagem para esquecer.
Como a Guiné está hoje não sei, mas continua numa enorme instabilidade política, corrupção e... muita pobreza.
Independente há quase meio século!




Um comentário:

  1. A triste realidade
    ZM

    De Cabo Verde, só visitei a Ilha do Sal. Várias vezes sem sair do aeroporto como ponte entre Lisboa e Bissau; na passagem do ano 1990/1991, estive lá uma semana, aluguei uma moto quatro para dar a volta à ilha, comi que nem um Lorde (gosto da cozinha Cabo Verdiana) e conversei muito com locais e turistas – foi simpático!
    Quanto à Guiné, estive lá na Guerra de 23 SET de 1970 a 06 OUT de 1972. Conheci bem a Circunscrição de Fulacunda, da responsabilidade militar do Batalhão de Artilharia que integrei como Oficial de Transmissões, cuja sede se localizava em Tite. Para além disso, conheci bem Bissau e Bafatá!
    Por lá conheci personagens sinistras da nossa história pós abrilesca – Otelo Saraiva de Carvalho, Carlos Fabião, Ramalho Eanes, Melo Antunes, Spínola, etc., etc., etc.!
    A Guiné, com 24 etnias diferentes, é ingovernável sem voltar a ser recolonizada! Do que verifico, toda a colonização criou países a régua e esquadra, sem qualquer respeito pelos territórios étnicos!
    Na Guiné, lutei contra Russos, Cubanos e locais. Mas economicamente, também contra os efeitos nefastos dos estupores dos franceses, via ELF e exploração Off-Shore do território Guineense. Tinham como reserva a faixa de Leste a Oeste, a Norte do território até à fronteira com o Senegal, chamada Casamança (floresta densa) com petróleo quase à superfície – vamos ver se alguém virá a usar este recurso!
    Sobre as relações entre Guinéus puros e Cabo Verdianos, disse-me uma vez um Fula sobre um mulato Cabo Verdiano “ “Alfero, cuidado! Água com terra dá lama!” Abraços do
    António

    Curiosa mistura do pitoresco ao melancólico em um lugar onde o futuro é de precária construção.
    Fica uma sensação de perda de identidade original desses povos.
    Na ausência dela, perde -se o respeito à dignidade alheia.
    E escancarada fica a porta da corrupção, que retira as esperanças daqueles que ainda poderiam cultivar sonhos mais construtivos.
    Abraços!
    Jorge Soares

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