Que tal darmos um passeio por
terras “pouco navegadas” trazendo à memória os tempos em que se podia sair de
casa!
O “menu” de hoje será Cabo Verde
e Guiné-Bissau. Desejo que apreciem o passeio.
CABO VERDE
Quando estive a
trabalhar para a GEIPEX e responsável por eventuais projetos de engenharia para
as ex-colónias portuguesas, este foi um dos países que visitei, em 1991.
Cabo Verde é um
país pobre, sobretudo as ilhas de Barlavento, entre as quais Sal, a que permitiu
a construção dum aeroporto internacional e Santiago onde está a capital, cidade
da Praia.
Terra de gente
de todas as cores, de olhos azuis a pretos, simpatia tradicional e constante, alegria
e música que se não esquece e pode-se ouvir todo o dia.
O Pão de
Açúcar, em Lisboa, consegui-me um guia, seu representante, que foi
incansável. Projetos? Pesca, só nas costas de África e tinham um pequeno acordo
com a Mauritânia e creio com o Senegal, mas estavam em permanente desacordo! A
velha pesca ao atum, que duas vezes por ano passava em imensos cardumes entre
as ilhas do Sal, Boavista e Maio, sofria enorme concorrência de pesqueiros da
União Europeia, melhor equipados, mais ricos, o que deixava Cabo Verde na sua
minguada economia.
Projetos
agrícolas na ilha principal onde chove durante um mês ou dois, uns 200 mm por
ano, e caem em poucos dias, lavando as encostas e arrastando as terras, e como não
tem como armazenar essa água, torna a agricultura um trabalho insano. No Sal
então caem uns 50 mm. Estas ilha sofrem quase constantemente um vento quente,
ido do Saara, o Harmattan, que tudo seca.
Qualquer
projeto para guardar essa água só em cavernas o que seria faraónico, e como o
tempo dos escravos há muito acabou... não parece que alguma coisa possa ser
feita.
O interior montanhoso
Vive muito do
dinheiro dos emigrantes, que muitos foram para os EUA, Canadá e Europa, mas é
sabido que filho de emigrante cessa com essas remessas.
A água do mar é
uma beleza, praias lindas em quase todas as ilhas, dificilmente nos meses frios
baixa a 20º e fica a maior parte do tempo a 25° o que faz as delícias dos banhistas/turistas,
que desde quando lá fui até hoje, fizeram na quase desértica ilha do Sal uma
cidade, cheia de hotéis, condomínios, etc., mas... onde não há água potável.
Têm que a tirar do mar e tratar os dejetos de forma química para poderem
devolver ao oceano. Uma loucura que, como é de imaginar não vai durar muito.
Além da invasão que sofreu com os traficantes de drogas que chegam a toda a
hora da África continental.
As ilhas de
Sotavento, são bem regadas, mas tudo montanhoso. Vive-se da agricultura
familiar, já com algum desenvolvimento, e merecem muito uma visita, aliás uma
estadia.
Na capital,
Praia, tive um entrevista com o Ministro da Agricultura, a quem disse que,
quando da independência das colónias eles deviam ter optado por ficarem ligados
a Portugal, com o estatuto igual aos Açores e Madeira, porque ficariam
integrados na União Europeia, o que acabaria com o problema dos que quisessem
emigrar.
Ele retrucou
que eram africanos e nada tinham a ver com Portugal, mesmo sabendo que os
primeiros ocupantes daquelas ilhas foram exatamente os portugueses. Eles eram
africanos!
Perguntei-lhe:
- “Quantas
etnias há em Cabo Verde? Quantas línguas? Quantas religiões?”
A resposta foi
sempre a mesma:
- “Uma. Só a
língua é varia um pouco porque temos o crioulo”.
- “Mas o
crioulo é uma variante do português. E por exemplo no Senegal, ou na Guiné,
existem dezenas de etnias, de línguas, de religiões. Além disso as ilhas de
Cabo Verde não pertencem ao bloco continental africano. São vulcânicas!”
Engoliu em seco
(o clima ajuda) e pronto. Acabou o papo.
Como só tinha
voo de regresso ao fim de uma semana, fomos um dia almoçar ao Tarrafal, onde
esxistiu uma prisão política portuguesa, o Campo da Morte, de má, terrível
história, mas com uma linda praia e ótimo peixe ali pescado. Infelizmente esse
almoço acabou mal! Como o meu simpático guia tinha sido sempre muito amável
comigo, eu achei que era uma boa ocasião de retribuir alguma coisa e paguei o
almoço.
O que foste
fazer! O sujeito ofendeu-se, levou-me de volta e não o voltei a ver. Quer dizer: parece que em Cabo Verde não se
pode ser amável com os locais!
Soube depois
que havia na Praia um campo de golfe. Fui apresentado a um dos dirigentes que
me emprestou os clubs, e lá fui, sozinho, jogar um pouco.
Os fairways
não são verdes, são brawns, e os greens, que deviam ser verdes,
eram pretos, feitos de pedra vulcânica, moída, onde a bola em vez de deslizar
parecia grudada no chão! Quase acertei na cabeça de uma mulher que passava, com
uma bilha de barro na cabeça, mas... a bola passou uns 10 ou 15 cm atrás!
Uma noite fui a
um boteco onde havia uns músicos, todos amadores, e deliciei-me um pouco a
ouvir aquelas mornas e coladeiras, de que sou fã.
Nada que
pudesse fazer de útil, fui passar o último dia no Sal, no único hotel que lá
havia nesse tempo, Hotel Morabeza com pequenos bangalôs afastados uns dos
outros ocupando uma imensa parte da maravilhosa Praia de Santa Maria; andei uns
largos quilómetros pela praia, e quase todo o tempo que estive naquele país
quase só comi lagosta, feita de todo o jeito e muito camarão. Delícia. Tudo ido
das costas de África.
Hoje está um
hotel comum, muito bom, que até duas quadras de tênis tem.
E tem mais uma
porção de outros hotéis, condomínios, casas de milionários, mas...
Perspectivas de
projetos para o país: nada.
De Cabo Verde
pouco mais ficou do que Soidade, como cantava a grande Cesária Évora.
GUINÉ -BISSAU
Dentro do mesmo
plano da GEIPEX, fui à Guiné.
O meu espanto
começa logo à chegada, quando vejo o pessoal a descarregar as malas do avião: à
mão! Traziam um ou duas malas, depois sentavam-se um bocado “a descansar”!.
Como em Cabo
Verde, foi um representante do Pão de Açúcar que me acolheu e foi dizendo que
não valia a pena esperar que tirassem as malas todas porque isso demoraria
muito. “Eles depois vão entregar as malas ao hotel!” E foram, já eu
estava para dormir pelado, à espera da mala, mesmo que antes de subir para o
meu quarto tivesse estado uma meia hora na conversa com o simpático anfitrião.
O hotel, novo,
creio que era Sheraton, construção muito simples – estrutura de ferro e paredes
tipo dry wall ou coisa semelhante. Como ficava fora da cidade no dia
seguinte mudei-me para um outro que tinha sido a residência e messe dos
oficiais portugueses. Agora bem arrumado era o “point” mais importante de
Bissau. Parece que hoje se chama Dunia ou 24 de Setembro. Até o presidente, João
Vieira, gostava de ir-se pavonear nas ruas dentro do espaço do hotel, acenando “ao
povo hóspede”, tipo faraó, sem sair do carro seguido de dois jipes com
soldados armados de metralharas!
O hotel em 1991
Comecei por ir
ao Ministério de Agricultura, uma área grande, e logo na entrada dou de caras
com um trator completamente novo, que ali estava a apodrecer... sem as rodas e
pneus!
Pela cidade
havia uns quantos geradores porque a distribuição de energia elétrica era muito
falha, mas a maioria deles estava também abandonada. Não havia nem mecânicos
nem peças para reparações.
Sua excelência o
ministro não estava, falei com um técnico agrónomo (?) que me pareceu que não
distinguia capim dum fio de ferro!
Mas soube que
as magníficas mangas que exportavam para Portugal, com selo da Guiné, na
verdade eram produzidas na Guiné-Conakry, e entravam de contrabando em Bissau.
Eu mesmo vi a chegada de dois caminhões carregados!
A Guiné é um
país difícil separar a parte continental da insular. Tem 80 ilhas, e o
território continental é cortado por inúmeros rios que dificultam a comunicação
e o escoamento de eventuais produções agrícolas.
País pobre,
onde os generosos países que decidiram ajudar após a independência, cometeram
o que se pode chamar de crimes. Roubo, corrupção, neo-colonialismo.
A agricultura é
muito dividida em razão das dificuldades de transportes, mas foram mostrar-me
um “fábrica” de descasque de amendoim – mancarra, na Guiné – construída em
perfis de ferro, lá.. lá... no meio do mato, floresta, clima tropical húmido,
para que dali pudesse seguir por embarcações para Bissau de onde seria
exportada.
Estava
totalmente enferrujada e o que produziam era quase nada. Mas assim mesmo quando
lá chegámos fomos barrados por militares que não nos deixaram visitar aquele
lixo!
Constatei que
fazia falta ensinar mais técnicas agrícolas, visto que o povo só conhecia, e
bem, o que produzia desde toda a vida, tendo até descoberto que podiam plantar
arroz irrigado com agua salobra! Com marés muito fracas, levantavam “camalhões”,
plantavam o arroz no topo e a humidade que chegava às raízes já ia filtrada do
sal! Inteligente!
Fui apresentado
a um senhor guineense, já de avançada idade, que tinha sido deputado no tempo
colonial, completamente votado ao ostracismo, mas tinha uma boa e grande
propriedade nos arredores da capital, boas instalações, boa terra, água etc., e
estava já cansado para trabalhar.
Pareceu-me o
lugar ideal para se fazer dali uma escola de agricultura. O senhor ficou
entusiasmado com a ideia.
Fui falar com
um alto funcionário, ministro já não sei de que, de origem caboverdiana,
reminiscência da luta colonial, mas que ainda tinha muito poder, e expus-lhe a
ideia.
Escutou com
atenção, e foi mostrar-me um mapa grande do país que tinha na parede.
Disse logo que
uma escola agrícola ao lado da capital não seria uma ideia boa, melhor lá no
interior e mostrou-me claramente onde gostaria que se fizesse. Nesse mesmo dia
fiquei a saber que essas outras terras eram dele! Resultado: não se fez nada.
Voltei ao
Ministério da Agricultura, mas como sabia que o deserto, a norte, todos os anos
estava a comer uma parte do país, quis ver os índices pluviométricos, e
constato que nos últimos 20 anos havia uma queda de 25%, e que as florestas no
norte também estavam a ser cortadas para a venda da madeira.
Quando pus o
problema o engenheiro achou que continuava a chover bem e que não havia
caso para preocupações. E as áreas de floresta a transformarem-se em savanas! O
que haveria a fazer seria um grande trabalho de reflorestamento para segurar as
areias e o vento quente. Não se interessou.
No hotel
aparecia todos os dias, um vendedor de artesanato que ele obtinha, tudo
contrabandeado, de diversos países africanos, com coisas interessantes. Com a
nossa casa cheia de “recordações”, não queria mais nada. Chamava-se Mamadou, um
sujeito grandão, muçulmano, muito simpático.
A primeira
pessoa a quem sempre se dirigia ao chegar ao hotel era a mim, que o mandava
sentar-se para conversarmos. Perguntei-lhe quantas mulheres tinha. “Só
quatro, porque a lei não permite mais!” Curioso, perguntei com fazia para
dormir com todas elas.
Tinha tudo
perfeitamente organizado. A primeira era a chefe geral e até vigia, dedo duro
(!) não fosse alguma das outras querer dar uma escapadinha. Cada uma tinha a
sua casa, onde vivia com os seus filhos.
Toda a semana
trocava de comanhia. Saía uma, que levava toda a roupa da cama e do marido para
lavar, e entrava outra com tudo lavadinho! Organização perfeita!
Mas vender-me
qualquer coisa, o seu maior objetivo, não foi alcançado, o que não impediu que
nos víssemos quase todos os dias e tivéssemos papos interessantes.
Véspera de ir
embora, já tinha conhecido um colega e dois amigos deste, fomos comer ostras.
Um boteco, na esquina, fornecia as cervejas e a casa ao lado as ostras. Eram
servidas abertas que ele punha em cima de prateiras de metal (das estantes
roubadas dos antigos serviços administrativos portugueses!), a prateleira com
15cm. de lado era uma dose e as largas, com 30 eram duas ou três doses. Ótimas
ostras, serviço original.
Ao regressarmos
a pé ao hotel, de noite, somos abordados por vendedores de artesanato. Como eu
já tinha tido problemas em Moçambique não quis comprar nada. O cara insistia e
pediu, por uma marimba e outra coisa, 500 Francos CFA. Para o despachar
disse-lhe que não valiam 50. “Dá os cinquenta!” Tive que engolir.
Além disso
comprei, na rua dois livros de estudos agronómicos da Guiné, ainda com o
carimbo dos antigos Serviços de Agricultura (!), um pacotinho de caju, e
entretanto tinha mandado fazer uma camisa com aqueles lindos panos que usam os
africanos. E uns panos tecidos no local que achei lindos
Hora de ir
embora, no aeroporto a fiscalização começou logo por embirrar com as duas
porcarias do artesanato, o que me pôs p. da vida. Depois disseram que não podia
levar caju, artesanal, um pacotinho com meio kilo, porque caju era uma das
únicas coisas que eles exportavam!!!
Tive um ataque,
deixei tudo em cima do balcão, disse-lhes que podiam roubar à vontade e
virei-lhes as costas.
Fui esperar que
chamassem para o embarque. Ali vejo o meu colega, guineense, e fui-lhe dizer
que o que me estavam a fazer era um roubo. Ele foi lá e disseram-lhe que eu
podia ir buscar tudo. Mas quando retirei as minhas coisas mandaram-me para uma
sala para ser revistado. Vingança. Puseram-me de cuecas e depois com ar de
sarcasmo: “pode ir embora!”
Ao meu colega
fui dizendo que no meu relatório da visita à Guiné ia escrever que nada podia
ser feito. Terra de bandidos! E como eu viajava em 1ª classe e ele na
turística, disse-lhe mais: “Quando chegar a Lisboa, como eu saio primeiro
vou avisar as autoridades que você é um traficante. Vai gostar!"
Fez um ar de
espanto, deve ter viajado a pensar no que lhe ia acontecer ao chegar a Lisboa,
mas é de imaginar, não denunciei ninguém.
Mas uma viagem
para esquecer.
Como a Guiné está
hoje não sei, mas continua numa enorme instabilidade política, corrupção e...
muita pobreza.
Independente há
quase meio século!
A triste realidade
ResponderExcluirZM
De Cabo Verde, só visitei a Ilha do Sal. Várias vezes sem sair do aeroporto como ponte entre Lisboa e Bissau; na passagem do ano 1990/1991, estive lá uma semana, aluguei uma moto quatro para dar a volta à ilha, comi que nem um Lorde (gosto da cozinha Cabo Verdiana) e conversei muito com locais e turistas – foi simpático!
Quanto à Guiné, estive lá na Guerra de 23 SET de 1970 a 06 OUT de 1972. Conheci bem a Circunscrição de Fulacunda, da responsabilidade militar do Batalhão de Artilharia que integrei como Oficial de Transmissões, cuja sede se localizava em Tite. Para além disso, conheci bem Bissau e Bafatá!
Por lá conheci personagens sinistras da nossa história pós abrilesca – Otelo Saraiva de Carvalho, Carlos Fabião, Ramalho Eanes, Melo Antunes, Spínola, etc., etc., etc.!
A Guiné, com 24 etnias diferentes, é ingovernável sem voltar a ser recolonizada! Do que verifico, toda a colonização criou países a régua e esquadra, sem qualquer respeito pelos territórios étnicos!
Na Guiné, lutei contra Russos, Cubanos e locais. Mas economicamente, também contra os efeitos nefastos dos estupores dos franceses, via ELF e exploração Off-Shore do território Guineense. Tinham como reserva a faixa de Leste a Oeste, a Norte do território até à fronteira com o Senegal, chamada Casamança (floresta densa) com petróleo quase à superfície – vamos ver se alguém virá a usar este recurso!
Sobre as relações entre Guinéus puros e Cabo Verdianos, disse-me uma vez um Fula sobre um mulato Cabo Verdiano “ “Alfero, cuidado! Água com terra dá lama!” Abraços do
António
Curiosa mistura do pitoresco ao melancólico em um lugar onde o futuro é de precária construção.
Fica uma sensação de perda de identidade original desses povos.
Na ausência dela, perde -se o respeito à dignidade alheia.
E escancarada fica a porta da corrupção, que retira as esperanças daqueles que ainda poderiam cultivar sonhos mais construtivos.
Abraços!
Jorge Soares