Memórias... de há muito tempo
Eu sei que ainda tenho muita coisa escondida no fundo do
cérebro (dizem que as memórias mais antigas estão no hipocampo! Será?), mas
também sei que o tal hipocampo está cheio, cheio até de pó e lixo, por muito
que, de vez em quando passe por lá e dê uma arrumada, algumas dessas
memória surgem de repente, e o mais curioso, muitas vezes quando já deitado,
fazendo força para adormecer.
E fico depois tentando reconstruir o filme dessa memória,
que tanta vez demora até dias!
Hoje duas historinhas que agradam e tocaram, como sempre
o coração. Obrigado ao hipocampo.
LEMBRANÇAS DE CONHECIDOS
Lá para traz recordei já um muito querido amigo João
Matos Chaves (Amigos 26) mas lembrei-me agora de um trio de colecionadores de que este fazia
parte, mesmo sem conhecer ou outros componentes.
Os outros dois, Manuel Braamcamp Sobral, trabalhava nos
“Tratores de Portugal”, onde eu estive também três meses antes de ir embora
para Angola, mais uns oito ou dez anos do que eu que na altura tinha 22.
O outro, Mimon Anahory, advogado, bem mais velho do que
eu conheci-o quando fui fazer uma lavagem ao fígado, depois de ter estado com uma grave
biliosa, em Angola. Nas Termas de Monfortinho, onde estive uma semana. Mimon já
tinha mais uns 20 anos do que eu, e conhecemo-nos em 1960.
O primeiro foi um grande amigo, os outros dois foram
conhecimentos curtos, mas enriquecedores por serem ambos pessoas muito
simpáticas, com quem, mesmo por pouco tempo, me dei muito bem, e os recordo com
saudade.
Mas porque colocar o três neste trio ?
Todos colecionavam “preciosidades”, de que vou descrever
uma de cada.
O João colecionava Menus e Cartas de Vinhos de
restaurantes sempre que neles encontrava algo interessante.
Em Luanda havia o restaurante Mar e Sol na entrada da
Ilha. O cardápio, entre outras coisas iguarias propunha Flá Minhão.
Muito bom.
Na carta de vinhos tinha outra delícia de vinho branco: Levafumique,
uma forma simples de traduzir Liebfraumilch!
O Manual Sobral só guardava anúncios especiais dos
jornais, e um dia levou para a empresa um álbum, com as suas descobertas que
me fez rir a valer. Passei a colaborar nas pesquisas e até encontrei alguns
lhes levei como este:
“Cavalheiro procura senhora para fins matrimoniais,
de 40 a 50 anos, de busto desenvolvido.
Favor enviar foto de perfil.
Se não servir devolve-se a foto.”
Maravilha de precisão!
O dr. Mimon já era mais exigente: cartões de visita ou
convites. Lembro de um que me mostrou. Um homem, em Cascais comunicava do
seguinte modo o falecimento da sua mãe, em cartão muito bem impresso:
“F... comunica aos seus amigos que a sua mãe... faleceu
no dia...
Já estava velhinha, levantou-se de noite para fazer as
suas necessidades, sentou-se no penico
e aí ficou com uma passarinho fica no seu ninho.”
Não se pode duvidar da dor do órfão!
12/05/2020
O JANTAR DO
AJUDANTE
Naquele tempo, aí 1954…
quando em Angola saíamos de carro para o interior, sempre levávamos um
ajudante, que servia principalmente para trocar pneus ou ajudar a tirar o carro
dum atoleiro, o que na época das chuvas era frequente, enfim, era um
colaborador indispensável.
Normalmente dormia dentro
do carro quando pernoitávamos em algum lugar, ficando por vezes melhor
acomodado do que o “patrão” que mais de uma vez se “encontrou” em camas com colchão de palha de
milho com carolo que se enfiava nas costas, roupas já usadas, etc.
Para comer dávamos-lhes
uns quantos escudos e ele ia comer na cozinha do “restaurante”. Passar fome,
jamais os que andaram comido passaram, até porque eu sempre perguntava se
tinham comido bem.
Outras vezes, sabendo que
para onde íamos era difícil encontrar um lugar decente para comer, levávamos um
conveniente farnel de casa, sentávamo-nos na beira da estrada e vá de refazer
energias já dispendidas.
Muito mais do que uma vez
fui eu quem comeu em humildes casas de angolanos, lá pelos recônditos do país,
e não me lembro de ter comido mal, muito pelo contrário, ainda hoje choro com
saudades das galinhas, e até perdizes ou “angolas,” que num repente se
preparavam à última hora, churrasco que daquela qualidade nunca mais comi,
mesmo tendo percorrido inúmeros países e comido em restaurantes de 1ª classe.
Num dia lá por uma área
meia a sudeste, a fome apertava e nada aparecia para nos saciarmos, quando se
avista uma casa de comércio, daquelas que vendiam de tudo e até tinha no canto
da loja, mais ou menos separadas por uma surrada cortina, umas quatro mesas e
cadeiras para quem passasse e quisesse beber umas Cucas ou comer
qualquer coisa que a mulher do comerciante rapidamente providenciava.
Era aquele canto mais ou
menos reservado aos “brancos”.
Era noite, a loja/restaurante
iluminada com dois “Petromax”, aquele ambiente que de feérico nada tinha,
apesar dos Petromax darem uma luz excelente.
Saí do carro, ajudante
atrás, perguntei se nos podiam dar de comer, resposta positiva até com os
detalhes do “petisco”, e avancei para o “salão”. O ajudante ficou parado; eu
chamei-o para que viesse sentar-se comigo.Nessa altura o comerciante diz que
ali não era para pretos!!!
Voltei ao carro, pequei na
minha caçadeira calibre 12 o que deixou o homem aterrado.
- Façamos o seguinte: eu atiro nos dois Petromax, fica tudo
escuro e já ninguém vai ver se ali estão brancos ou pretos. Você nunca se
deitou com uma mulher preta? (a esposa era uma bimba portuguesa, e estava a
ouvir a conversa). Com certeza que sim. Então quer dizer que pode ter uma
preta na cama mas não quer ter um preto a comer à mesa?
- Por favor não atire!
- Não, eu não fazia
tenções de atirar; só queria dar um recado. Aquele homem que está ali comigo,
além meu ajudante é meu amigo. E eu não mando os amigos comerem na rua. Mas se
acha que ele não pode entrar... então diga adeus a dois clientes e a dois
candeeiros.
O Zé Mané engoliu
em seco, nós sentámo-nos e veio a comidinha para os dois. O ajudante não se
sentia muito à vontade mas eu sosseguei-o. Quando a madame trouxe a comida, fez um ar de espanto ao olhar
o segundo comensal, mas não abriu o bico.
Perguntei se tinha vinho,
bom e, pressuroso, trouxe uma garrafa de vinho mesmo bom, cuja marca não lembro,
creio era Romeira, alentejano, que tinha em casa há anos e estava uma delícia, e
um copo só conforme pedi. O ajudante tem que ir atento e possivelmente vai a
conduzir quando daqui sairmos, por isso ele não bebe.
Depois chamei o
comerciante e disse-lhe para trazer outro copo para beber comigo. O homem já
obedecia a tudo o que eu dissesse.
Sentou-se na nossa mesa,
estava bem encabulado mas bebeu um copo, e depois que terminámos e paguei a
despesa, ainda lhe perguntei se tinha feito muita diferença o comensal
angolano.
Meio gaguejando, pediu
desculpa.
Muitos meses depois passei
novamente no mesmo lugar e quis rever o ambiente. O sujeito fez-me uma grande
manifestação e quando olhei para o lado do “restaurante” estavam lá quatro
africanos a beber cerveja!
Acabou por me dizer: Maldito
hábito que nos fazia ver os angolanos com olhos de superioridade. Hoje tenho,
todos os dias, clientes novos, e mesmo os brancos que aqui entram nem reparam
nisso. E como fui o primeiro a abrir-lhes as portas, num instante isso correu
por todo o lado e hoje os meus melhores clientes são os africanos.
Que bom.
África era assim. Os
matarruanos que chegavam à África de pé descalço, a maioria ignorante, de
repente achavam que a cor da pele era um sinónimo de hierarquia, e a humildade,
forçada dos africanos, no colonialismo, os ajudava a assim pensarem.
Talvez pensamento atávico
do tempo dos visigodos quando se criou o mito do “sangue azul” como sinónimo de
nobreza!
Poucos se deram a pensar
que o azul vinha da circunstância da cor da pele dos germânicos. Muito
branca, em comparação com a dos portugueses, tisnados pelo sol e pela mistura
de milhares de anos com berberes e com mouros, as veias viam-se bem e davam a
impressão que o sangue era azul. Os visigodos foram os que mandaram na
Península quase meio milénio.
E os babacas que se
arvoram a grandes árvores ginecológicas gabam-se do seu sangue
azul!
Lembro de uma piada, um
pouco (?) digamos, porca, mas só com termos técnicos:
- A senhora condessa,
menstruada, vai lavar-se e ouve o bidé: Com que então sangue azul, hein!”
É assim a vida.
Falta cultura, educação,
humildade e o tão apregoado e desprezado “Amor ao Próximo!”
Nota. Este meu ajudante
ficou tão ligado a mim, que depois de eu sair da empresa e ter voltado a
Portugal, um dia recebi uma carta dele e começava assim: “Meu amado
mestre!” Era um simples, e deles
é o Reino dos Céus, mas eu... “Mestre”... A finalidade da carta não era
endeusar-me, como se pode imaginar, mas pedir se eu lhe mandava 20 escudos. Com
muita pena, não mandei. As cartas com dinheiro eram todas roubadas!
12/05/2020
CHIÇA PENICO, CHAPÉU DE COCO! VENHA MAIS. ABRAÇO. A SUA ÚLTIMA FOTO É DE UMA TRANSPARÊNCIA INDUBITÁVEL!
ResponderExcluir