A cadeira do “Garrett”
História que começa no
sec. xvi ou xvii
Começo por repetir o que escrevi há dez anos, e
segue com novas descobertas.
Vou aproveitar e contar a “aventura” de uma
cadeira, que envolve um bocado bom de história.
O rei D. Fernando II, marido da D. Maria, também
II para não destoar, filha de D. Pedro I e IV (a razão de ser 1º no Brasil e 4º
em Portugal tem por base a diferença dos fusos horários entre os dois países,
nas épocas do ano em que, oficialmente, no Brasil, o sol nasce três horas
depois de Portugal ou de Greenwich), quando o grande poeta Almeida Garrett
morreu, terá adquirido a cadeira onde este se sentava para escrever, e querendo
homenagear o meu bisavô, o poeta, dramaturgo e o grande biógrafo do Garrett, Francisco
Gomes de Amorim (1827-1891) ofereceu-lhe essa cadeira de presente.
E em casa do meu avô tinha lugar de destaque,
sempre referida como “a cadeira do Garrett”.
Um dia essa
cadeira veio para as minhas mãos, conservado o nome de “batismo” e
estimada como sendo verdadeiramente a cadeira
do Garrett. Uma cadeira trabalhada, de espaldar, com assento, costas e
encostos dos braços estofados, que nos acompanhou para Angola. O estofo,
velhinho, entretanto foi-se acabando. Em finais de 1960 comprámos uma bonita
seda chinesa, que deveria ter emprestado à dita um ar quase museológico, e
mandámo-la para o estofador.
De repente a Cuca
decidiu que eu ia para a Europa fazer diversos cursos e estágios, e a cadeira
ficou no estofador e marceneiro, que não a aprontou antes de sairmos de Luanda.
Enquanto estávamos na Europa, em Março de 1961,
começou o chamado terrorismo, que no primeiro embate afetou profundamente todas
as estruturas, tranquilas, estabelecidas em Angola, e o estofador, comigo
ausente, sem sequer saber se eu regressaria a Luanda, como aconteceu com muita
gente, pendurou a cadeira no vigamento do telhado da marcenaria à espera de...
Logo após o meu regresso, em Julho, a cadeira que padeceu uns quantos meses ali pendurada,
perto das telhas, com o calor e umidade do clima, um dia despencou lá do alto,
as peças descoladas, pernas para um lado, braços para outro, encosto... etc., e
assim foi deixada pelo confuso e desarrumado chão da tal marcenaria. Com a
preocupação do salve-se quem puder que era a lei em Luanda naqueles tempos tresmalhados, meia dúzia de paus do
que tinha sido uma cadeira, foram totalmente ignorados. Quando fui saber dela,
o homem olhou para o telhado, ar de idiota e diz-me:
- Estava ali!
- E agora?
Tudo quanto conseguimos salvar foram estes pés.
Corremos a marcenaria toda, mas nada mais
apareceu. Confesso que tive um desgosto grande com o desaparecimento dessa
herança.
Mas como não há bem que sempre dure nem mal que
não acabe, acabámos esquecendo a dita cadeira.
Há pouco tempo, entre os papéis do espólio do
bisavô que só muitos anos depois do desastre cadeirífero me foram entregues, encontrei a descrição pormenorizada
da dita cadeira, e como o D. Fernando lha tinha oferecido.
Analisei e rememorei com cuidado a defunta, e conclui que a descrição não
coincidia, porque faltavam algumas características importantes, como os braços
terminarem em cabeças de leão, quando a nossa tinha os braços simplesmente
torneados.
Moral da história: a cadeira que morreu no estofador
de Luanda não era a cadeira do Garrett!
Onde andaria? Não sei que sumiço terá levado,
muitos, muitos anos antes, até porque nos apontamentos do meu avô, não o bisavô
poeta (isto é um tanto confuso porque era tudo Francisco G. de A.), não consta
qualquer móvel que tivesse pertencido a Garrett.
Depois de mais pesquisar acabei descobrindo nos
mesmos apontamentos do avô, que ele tinha um cadeirão de braços, a que chamava cadeira Farrobo, por ele comprada em Abril de 1912 por 5.690 reis! Terá
sido do Conde de Farrobo, o homem que criou o Jardim Zoológico, e que um dia,
como acontece a todos... morreu? Os animais do zoológico ficaram entregues a
ninguém, o palácio abandonado e as mobílias devem ter-se vendido. Seria esta
cadeira dali? Qui lo sai?
Que a tal cadeira tinha mais cara de Conde de
Farrobo do que de Visconde de Almeida Garrett, lá isso tinha!
Foi minorado o desgosto histórico,
tranquilizou-se-me o espírito que se sentia comprometido perante o bisavô, mas
ficámos na mesma sem uma cadeira. Bonita e com razoável presença, que se
estivesse hoje no meu escritório me emprestaria um ar mais austero, quem sabe
se até romântico do século já repassado!
Desse romantismo o único detalhe que me resta é a
barba que já tenho há mais de quarenta anos!
Nota.- Salvou-se a seda, linda, que ainda hoje
jaz, impecável, numa gaveta... sem qualquer serventia! Mas que é bonita, lá
isso é.
Rio, 25/09/00
Conforme
a data atrás assinalada, e verdadeira, era isso o que eu sabia naquele tempo.
Mas
continuando a rebuscar dali e daqui encontrei agora a
História (quase toda) da Cadeira do Garrett
Quando o FGA (bisavô) mandou encadernar o poema
A FLOR DE MARMORE ou AS MAVILHAS DA PENA EM CINTRA
editado em
1878, encadernou junto uma CARTA FAMILIAR escrita pelo seu amigo ABÍLIO AUGUSTO DA FONSECA PINTO (1831-1893) dedicada ao
amigo deste, Doutor José Epiphanio Marques (1831 - 1908) em 1879
Uma pequena passagem na Advertência
que FGA à laia de prólogo do seu poema
O encadeamento dos montes, de que se
compõe a serra de Cintra, visto das
maiores alturas. Tem o aspecto de um imenso ramalhete irregular. A maioria dos
seus cabeçosou picos apresenta a forma de flores pyramidaes, mas nenhuma com
tanta similhança como aquele em que foi edificado o palácio real de Cintra.
Assim explica o autor d’este
modestíssimo poemeto a razão porque lhe deu o titulo de Flor de Marmore.
... Seria monstruosa ingratidão calar
aqui os motivos que inspiraram a dedicatória d’este humilde poemeto. Por pedido
da ilustre e generosa dama, para quem ele foi expressamente escripto, dignou-se
Sua Magestade El-Rei o Senhor Dom Fernando brindar o autor com um objeto
histórico preciosíssimo...
Na página
seguinte:
À
ILLUSTRISSIMA E EXCELLENTISSIMA SENHORA
CONDESSA D’EDLA
A Carta de
A.A. da Fonseca Pinto, depois de fazer rasgados elogios ao poeta e ao poema,
onde reproduz boa parte dele, termina assim (guardada a ortografia da época!)
Meu amigo.
Tenho-lhe
falado de Cintra e dos seus poetas; não digo bem, de alguns dos seus poetas. E
citando-lhe A FLOR DE MÁRMORE, produção d’um prezado amigo meu, consinta que
lhe explique, nos limites circunscritos d’uma carta, as origens deste poemeto.
Ora ouça a
invocação, dirigida a senhora Condessa d’Edla:
Senhora: se os
colossos da floresta
Aos céos
enviam divinaes perfumes,
Também o
agreste cheiro da giesta
Ousa humilde subir aos pés dos Numes. *
Se o sol, que é vida e alma do universo,
Não desdenha aquecer o ínfimo insecto,
A vós do rude bardo implora o verso
Calor e luz de generoso affecto.
Gota d'água levada pelo vento;
Modesto aroma d'uma flor cahida;
Nem tanto valerá meu pensamento;
Mas inspira-o uma alma agradecida.
Aqui temos a gratidão servindo de musa; o poema é um bilhete perfumado
de agradecimento. As aguas de
Hippocrene aquecem-se sob o influxo d'um nobre affecto. Seria monstruosa ingratidão, diz o auctor, calar os motivos que inspiraram a
dedicatoria d'este humilde poemeto. Por pedido da illustre e generosa dama, para quem elle foi expressamente escripto,
dignou-se sua majestade el-rei o senhor D. Fernando brindar o auctor com um
objecto historico, preciosissimo como obra
d'arte e como recordação saudosa -
a cadeira monumental de seu
mestre, o grande poeta Almeida Garrett.
Mas ha melhor ainda; ainda melhor
do que o autor, explana numa carta
que ha dias recebemos a historia do
poemeto e a descripção da cadeira abbacial. É de
pessoa d'elle muito conhecida, e a nós ambos muito cara.
D'ella extractamos os
períodos seguintes:
“... Esta cadeira abbacial,
como a denominava
Garrett, dizia elle que
pertencera a seu tio o bispo D. Frei Alexandre da Sagrada Familia, e ao ultimo ou
penultimo abbade do mosteiro de S. Bento,
de Lisboa. Adquirindo-a, o poeta restaurou-a e deu-lhe mais grandiosa fórma do que tinha primitivamente. Gomes
de Amorim, em vida de Garrett,
teve sempre especial predilecção
pela belleza artística d'este movel e sua commodidade; e apossava-se d'elle de preferencia, quando entrava no escriptorio d'aquelle que foi o seu melhor amigo e mestre,
que lhe serviu até de pae.
Antes de cahir de cama, foi nessa cadeira que o
immortal auctor do Camões e D. Branca, depois de ter regressado
de Belém para a rua de Santa
Isabel, casa que hoje mostra o
numero 78, suportou as primeiras agonias
do doloroso drama com que terminou a sua gloriosa existencia.”
“Por morte de
Almeida Garrett foi a cadeira comprada em
leilão para el-rei D. Fernando. Durante
vinte annos sonhou Gomes de Amorim com a posse
d'este objecto, tão precioso
para as suas recordações e saudades. Ouvimos-lhe dizer que, apezar de pobre, teria feito todos os
sacrificios para adquiri-lo, se estivesse noutras mãos. Obte-lo, porém, do rei-artista, sincero admirador de Garrett, e amador de todas as preciosidades
dignas de estima, pareceu-lhe sempre impossível. A Condessa
d'Edla, sabendo d'estes
desejos, e da enfermidade que o
poeta ha longos annos padece, inspirou compadecida a seu marido generoso
pensamento de lhe offerecer a cadeira
monumental de seu mestre, tornando-se assim a
boa fada que realisava uma aspiração, considerada como sonho ou devaneio de
poeta. Era isto em janeiro de 1876. D.
Fernando foi immediatamente com a
Condessa ao palacio real da Pena, onde estava
a cadeira, remetteu a para Lisboa, e
brindou com ella a Gomes de Amorim. E
quando este foi agradecer-lhe tão valioso mimo, dirigiu-lhe palavras benevolas
e delicadas, com o intuito generoso
de diminuir a importancia da dadiva,
asseverando-lhe que possuía outros
objectos do immortal poeta, e que a cadeira a
ninguem devia pertencer com mais direito
e justiça do que áquelle que
fôra seu discípulo predilecto e amigo
dedicado, em cujos braços expirara o auctor de Fr. Luiz de Sousa.
Só os príncipes, verdadeiramente grandes pelo coração e pela
intelligencia, sabem practicar d'estes actos.”
“Desejoso o
poeta de mostrar-se reconhecido a este testemunho de consideração e benevolencia, e sabendo quanto D. Fernando ama a sua magnifica residencia da Pena, lembrou-se de
celebrar num pequenino poemeto,
consagrando-o á Condessa
d'Edla, aquella
encantadora vivenda”.
“Em quanto a cadeira é toda de páo sancto, estofada de damasco de seda carmezim, e de alto espaldar,
formado por duas grossas columnas, torneadas em
espiral, unidas em cima por um bello ornato que representa um barrete de abbade. As costas têm
1 metro e 60 centimetros de altura. A frente é
composta de dois formosos leões, de
pé, que são de primorosa esculptura, tendo 71 centímetros de altura, com azas
que formam uma especie de segundo braço, o que torna o movel commodo e confortavel. A moldura
que compõe o assento mede, na frente,
68 centímetros de intervallo entre os peitos dos dois leões. O aspecto geral é
elegante e majestoso, e ostenta a apparencia d'um throno.
Este movel, verdadeiramente historico e monumental, pertenceu a Garrett por
espaço de dezoito annos; vinte annos ao senhor D. Fernando, e há quasi tres que
pertence a Gomes de Amorim »
Nunca fui a Cintra, meu amigo; e tenho-lhe escripto d'ella como se fosse
de velho conhecimento! Conheço a serra apenas pela fama, o que não é pouco, porque a tradição e a poesia a enfeitam e descrevem de modo que o
mesmo é vê-la que ouvir as duas. O Camões imagina-a com as suas naiades
escondidas nas fontes, e ainda assim accendendo nas aguas fogo ardente sem lhes
valer o asylo contra enredos do amor. O Garrett embrenha-nos por bosques onde o
louro inda viceja com a gloria de D. João de Castro, ou sentado no musgo das
encostas espairece olhos satisfeitos por larga extensão de plainos. E nós, que
ainda juramos sobre taes evangelhos de tão queridos poetas, phantasiamos na
mente fontes encantadas e Dodonas
venerandos, um eden
glorioso, como lhe chama e attesta o poeta
inglez.
Não devo por isso adeantar-me mais. Se ainda um dia subir á afamada
Cynthia... então... pode ser que lhe escreva nova carta.
O que desejei principalmente foi recommendar-lhe o poemeto de Gomes de
Amorim, que é um poeta notavel pela espontaneidade, e prosador muito ameno.
Temos d'elle versos, dramas, romances
e viagens. Antes
de conhecer o
homem, já conhecia o escriptor. Era eu criança, e nas
minhas primeiras leituras quasi que aprendia o meu abecedario poetico com
poesias d'elle, insertas no Jardim
Litterario. Continuei a vê-lo
depois noutros jornaes e livros, na Revista Universal, no Panorama,
no Archivo Pittoresco, nas Artes e Lettras, e nas ultimas
publicações com que tem adornado a nossa litteratura.
Ha annos fui pela primeira vez a Lisboa, e na primeira recita a
que assisti no theatro de D. Maria II foi o Odio
de Raça que me patenteou o merito artistico de Tasso, de Delphina, de Emilia
Adelaide e Theodorico, interpretando os magníficos characteres, que estão
dispostos com rara habilidade naquelle lindíssimo drama. E é effectivamente no drama que mais se distingue o nosso poeta; o Odio de Raça, o Cedro vermelho
e Os herdeiros d'um millionario
honram singularmente a litteratura, tanto portugueza como brasileira.
Mas leia o
poemeto, meu amigo, e depois me dirá a sua opinião. Desculpe a extensão da
minha carta, e creia-me sempre seu
devoto, grato e affectuoso,
A . A.
da Fonseca Pinto.
Notas finais:
Resumindo um pouco: se a cadeira pertenceu primeiro a um abade, e
atendendo a que as Ordens Religiosas foram extintas em 1834, a cadeira seria no
mínimo do século XVIII.
Se FGA, bisavô, recebeu a cadeira em 1876, seu filho, meu avô e
também homónimo, deve tê-la conhecido e, certamente admirado, uma vez que só em
1877 emigrou para o Brasil.
Quando o poeta morreu, em 1891, meu avô, já com dinheiro, escreveu
de imediato às irmãs que nada vendessem. Ele lhes pagaria o que fosse
necessário.
Mas... naquele tempo não havia correio de avião, nem e-mails. Como
a viúva e uma ainda filha solteira ficaram sem recursos, logo foi feito o
leilão da biblioteca (valiosíssima) e de alguns móveis, E nessa voragem famosérrima
cadeira do Garrett foi vendida a... quem? Perdeu-se lhe o rastro e nunca mais
se soube dela.
Meu avô regressa definitivamente do Brasil a Portugal em 1899.
Imagino, talvez sonhe, que ele terá procurado o paradeiro dessa relíquia, mas
em vão.
Então em 1912, como está acima, comprou uma cadeira de espaldar
que teria pertencido ao Conde de Farrobo, e por graça ou para manter a ideia
viva, em sua casa ela passou a ser chamada a cadeira do Garrett.
Estamos a chegar ao fim da HISTÓRIA DE UMA CADEIRA, mas no fundo é
a História De Duas Cadeiras.
Se o meu avô não conseguiu a cadeira do Grande Amigo de seu pai,
Visconde... comprou a de um Conde!
E o 25 de Abril também com esta acabou!
21/01/2020