quarta-feira, 26 de junho de 2019


Viagens e... vigaristas


O senhor Frédéric Mauro, ilustre historiador francês, num trabalho intitulado Les Portugais: Premiers champions de l’Expantion Outre-Mer, de 1988, dá uma puxadinha à brasa para a sua sardinha dizendo que a redescoberta das Ilhas Canárias se deve a dois franceses, em meados do século XIV.
Os distintos que ele refere seriam Gadifer de La Salle e seu companheiro Jean de Béthancourt, que se conheceram quando em 1390 fizeram uma expedição contra Tunis. Lá se terão desentendido e... não foram às Ilhas Afortunadas, citadas já por Plínio no começo do séc. I, mais tarde por Santo Isidoro de Sevilha séc. XV-XVI, mas antes de todos estes por Juba II, rei da Numídia (52-23 a.C) que ouvindo falar dessas afortunadas ilhas, mandou lá uma expedição para verem o que era. Um deserto cheio de cães (canes) e animais estranhos, que acabaram dando nome às ilhas.
Mas quem leva a palma da redescoberta são mesmo os portugueses, com certeza antes de 1336. Em 1339 já figuram em várias cartas náuticas e em 1345 o rei Afonso V escreveu ao Papa Clemente VI informando terem sido os portugueses os primeiros a ali chegarem, reivindicando assim a sua posse. O Papa não quis saber de conversas! 
O que é sabido é que os dois franceses só lá foram em 1402, e ainda há enciclopédias a dizerem que eles foram os primeiros!
Mais adiante o senhor Mauro não afirma, mas deixa a dúvida de que outro francês teria chegado ao Brasil antes dos portugueses.
Consta, numa publicação, francesa, é evidente, de 1785, que em 1488, alguns armadores de Dieppe teriam confiado um navio a Jean Cousin para tentar alcançar as Índias Orientais, e que este, afastando-se das ilhas dos Açores e do mau tempo teria alcançado a embocadura dum grande rio, talvez o Amazonas, de que tomou posse. Diz a tal publicação que com ele iria Alonso Pinzon. Dali seguiram e atingiram o cabo das Tormentas, isto é o Cabo da Boa Esperança.  Aqui estão de volta os franceses a quererem se aproveitar da inocência dos inocentes,  mentindo-lhes, até porque em 1488, foi quando, finalmente, depois de ter descido a costa ocidental de África, Bartolomeu Dias finalmente dobra o Cabo da Boa Esperança, o que jamais alguém teria feito.


As caravelas não só não eram assim como tinham a Cruz de Cristo nas velas. Mas...

Pouca imaginação teve o senhor Desmarquets, que escreveu essas Memoires, porque se limitou, três séculos depois do desacontecido, a copiar o que tinha sido feito pelos portugueses.
Hoje essa história é considerada uma fábula, mesmo em França. Aliás não há qualquer referência a viagens deste gajo, o tal Jean Cousin, antes do livro de Desmarquets. Vigarista.
Houve, sim, dois Jean Cousin, no séc. XVI em França, ambos pintores, reconhecidos. Mas não navegavam. Só pintavam.
Os portugueses assim que chegaram ao Brasil empreenderam a exploração da madeira corante, o Pau Brasil e até mesmo de cana. Tempo dos 'capitães-donatários' que dividiram o território brasileiro, e o porto de Antuérpia assumiu-se como um centro de redistribuição das especiarias do Oriente no norte da Europa, sob a produção das fábricas e transportes portugueses.
E os franceses? Não tomaram parte oficial das descobertas marítimas dos séculos XV e o início do XVI. A primeira expedição através do Atlântico Sul, organizada a partir de Dieppe por Verrazano, data de 1523: é pior do que os espanhóis, em 1492.
Não voltemos à lenda da descoberta da Guiné pelos normandos (outra estúpida “invenção a la française”!), ou do descobrimento do Brasil por Jean Cousin.
Piratas ou comerciantes franceses decidem ir logo para o Brasil. Mas quando? De acordo com a cópia de uma carta conhecida por um alemão e referindo-se a um barco de volta a este país em um 12 de outubro, os nativos garantiram aos portugueses que viam aparecer de tempo em tempo barcos montados por pessoas vestidas como eles, mas quase todos com uma barba vermelha. "Por estes sinais, os português entenderam que seriam franceses. Mas não sabemos em que ano essas coisas aconteceram, provavelmente no início do século XVI.”
Mais interessante é a história de Paulmier de Gonneville, marinheiro de Honfleur que, em 1505, conta para o Almirantado de Rouen, a aventura de que foi ator e testemunha:
«Este capitão de Honfleur tinha sido seduzido, durante a sua estadia em Lisboa, "pela beleza e riqueza das mercadorias e outras raridades" trazidas de Calecute e tinha decidido visitar as Índias, para o que "contratou dois portugueses bem pagos que depois foram devolvidos". Organizou em Honfleur, uma esperançosa parceria de nove pessoas para equipar um navio de cento e vinte toneladas e 60 homens, que zarpou em 24 de junho de 1503. A viagem foi tranquila até 9 de novembro quando se levantou uma forte tempestade. O barco foi até às proximidades dumas ilhas (que ele chama de Tristão da Cunha, mas que ainda não tinham sido descobertas!) é depois desviado para e noroeste até  "uma grande terra" onde ancorou a 5 de janeiro de 1504, em um rio semelhante ao Orn (?). Foi no Brasil que ele tocou, talvez em torno de 26° graus de latitude sul (Joinville? Paranaguá?). Os normandos passaram seis meses no país e excursionaram para o interior até dois dias de caminho da costa. O velho rei Arosca impressionado pela nova gente, o navio e artilharia e pelas conversa que conseguiram estabelecer com os visitantes, além de alguns presentes que recebeu e o bom tratamento dispensado, pensou até que tivessem "descido anjos do céu".
Em troca de ferramentas e outros objetos de pequeno valor, deram-lhes comida e quase cem quintais de "peles, plumas e raízes para tingir..." o que "na França teria valido bom preço". No dia da Páscoa, ergueram com pompa, na presença de “um grande povo dos índios", uma "Cruz de madeira de trinta e cinco pés e melhor, bem pintada", gravados de um lado os nomes do Papa, do rei da França e do Almirante e do outro um dístico latino que contém a data do ano em forma de linha do tempo"
Gonneville então retornou à França, trazendo com ele Essomericq, filho do rei Arosca. O rapaz casou com uma rica parente de Gonneville e teve descendência. Um século e meio depois, seu descendente, Abbé Jean Paulmier, pediu para ser enviado ao Brasil para converter os índios. Gonneville acreditava ter tido antecessores, de Dieppe, Saint-Malin e outros Normandos ou Bretões, que durante anos já estavam de olho na madeira para tingir de vermelho (o tal Pau Brasil), no algodão, macacos, papagaios "e outras commodities". A algumas regiões do Brasil teriam chegado primeiro, talvez o Honfleurois Jehan Denys pilotado pelo Rouennais Gamart ou Camart em torno de 1519, ou pelo Dieppois Jean Parmentier, em 1520. Os jesuítas portugueses afirmaram que os franceses chegaram ao Brasil em 1504. Mas como, em qualquer caso, há uma boa chance de outro português preceder Cabral, a disputa sobre a verdadeira descoberta do Brasil é insolúvel. Um ponto irrefutável no entanto é a “descoberta oficial” de Cabral, em 1500, apesar de ter sido escondida a descoberta de Duarte Pacheco Pereira, quando em 1498, o Venturoso “o envia além, na grandeza do mar Oceano para descobrir terras ocidentais do Atlântico, onde encontrou uma grande terra firme com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela”!
Tem cara de foz do Amazonas, não tem?
Além disso uma armada sob o comando de André Gonçalves ou Gaspar de Lemos saiu de Lisboa em 1501 para percorrer a costa brasileira, levando a bordo Américo Vespúcio que a foi descrevendo. O seu relato acaba em Cananeia, por ser o limite estabelecido em Tordesillas, mas por uma carta que deixou sabe-se que a armada chegou até ao Rio da Prata, 36° Latitude Sul, deixando o senhor Paulmier em segundo ou terceiro lugar!
Do lado inglês é no século XV, no porto de Bristol, bem situado no sudoeste do país, que eles se lançam para o Oeste. Os marinheiros não conseguem alcançar a Terra-Nova, como se chegou a pensar, mas adquiriram grande experiência sobre ventos e correntes do Atlântico Norte.
A descoberta da Terra-Nova é ainda questão de problemas. Sabemos que em meados do século XV Afonso V assinou um tratado com o rei inglês, Eduardo IV, que autorizava os portugueses a pescarem bacalhau nas costas inglesas, que iam até... onde?
Parece que Diogo de Teive, nascido na ilha da Madeira, fez duas viagens para Norte junto à Terra-Nova onde não desembarcou mas de que trouxe notícia dessa ilha. No regresso da primeira viagem, em 1452, descobriu as ilhas açorianas das Flores e Corvo.
Também John Scolvus, dinamarquês ou polonês, comandando uma armada financiada por Christian I da Dinamarca, para ir à Groelândia (1473-1476), terá atingido a costa de Lavrador, e ainda consta que de um dos navios seria capitão João Vaz Corte-Real.
John Scolvus ou John Kolno, pode não ter descoberto nada, mas... era um bonito rapaz, como se vê no seu retrato pintado por Artur Szyk no séc. XIX ou XX. O que me faz inveja é o chapéu. E notem outro detalhe demasiado curioso: o navio arvora a bandeira dinamarquesa, mas nas velas a Cruz de Cristo! Seria o navio comandado por Corte Real? A Ordem de Cristo teria chegado à Dinamarca? Estranho, né?



Muito estranho será também uma declaração de João III de Portugal ao declarar que, em 1499, a Terra-Nova e os pesqueiros de bacalhau não estavam ainda descobertos. Se não estavam descobertos como ele se atreveu a citar os dois lugares? O famoso secretismo português... um tanto idiota!
O venturoso rei Manuel I mandou então em 1500-1502 os irmãos Corte Real lá para aquelas bandas, e descobriram, outra vez, a Terra de Lavrador e percorreram o litoral da Terra-Nova, ficando-lhes assim o mérito dos primeiros exploradores da Ilha.
  


A seguir, só em 1508 é que lá foi um francês, Jean Denys.
No meio disto Giovanni Cabot também andou por àquelas bandas em 1497, o que dá para discutir se foi ele ou o John Scolvus (com um Corte Real) quem primeiro chegou à América, bem do Norte.
Também Estevão Gomes (meu antepassado?) deixou o seu nome ligado à América do Norte, logo a sul da Terra do Bacalhaus, em 1528.


Nebulosas que o tempo encobre e talvez nunca se venha a saber ao certo como foi.
Mas que era tudo homens machos, destemidos, eram. E o conforto, mais a comidinha e um frio de quebrar os dentes, dentro daquelas cascas de noz... Deus me livre.

(Amplie todos os mapas para ver melhor)

10/06/2019







domingo, 23 de junho de 2019


Complemento ao texto 
Amigos - 25

Amigos – 25 – a

Mais um pouco de Neves e Sousa


Já escrevi alguma coisa sobre este grande artista, por isso hoje vou só acrescentar algumas das suas obras, umas que tenho em casa e outras, os famosos pratos que desenhava no Hotel Universo e ia dando aos amigos, que estão em casa de um dos filhos do meu grande amigo, irmão, Alfredo Figueiredo.
Um dos desenhos mais antigos é este com duas gazelas. Fui-lhe pedir que me fizesse alguma coisa para “dar vida” a um menu – cardápio – num almoço oferecido pela Cuca a uma delegação de jornalistas americanos da NEA – National Editorial Association - 1962, em Luanda, é evidente.
Passei em sua casa ao fim da tarde, expliquei-lhe o que queria, e voltei lá por volta da meia noite quando me entregou o desenho já pronto, eu corri para levar à gráfica que confeccionou os tais menus durante a noite. Ficou ótimo.


Guardo, com carinho três “cartas”, a primeira resposta a outra que lhe escrevi, outra que me apresenta a um amigo, da Bahia, quando tivemos que “fugir” de Angola, e que por azar nunca lha consegui entregar e continuo a gostar muito de a ler, e mais outro apontamento que me deu quando duma exposição sua no Estoril, já o coração estava cansado, proibido de fumar...


Mais tarde, depois de ter passado em sua casa, na Bahia, onde fiquei uma ou duas noites, em ótimo papo e a vê-lo pintar, um “bichinho” roeu-me tanto que ao voltar a casa encomendei-lhe então quatro aquarelas, que continuam, lindas, na nossa sala. 

    
  

E, finalmente os famosos pratos, que não são meus, mas que são peças fundamentais da arte e da alegre personalidade deste artista, de quem tive a sorte de ser amigo:


Tenho ainda vários livros, de poesia, desenhos e reproduções de quadros (Mulheres de Angola) que volta e meia releio sempre com um prazer grande e uma saudade maior.
Enfim, coisas de Amigo.

10/05/2019

terça-feira, 18 de junho de 2019



Amigos – 29
Especial

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O texto que se segue foi publicado no meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” em 1998, e em 2009 coloquei-o neste blog. Um seu amigo leu o blog e estabeleceu o contato. Quando pude ir a Portugal, fui visitá-lo. Estava no Algarve. Ele e a esposa receberam-nos como se eu fosse um rei com o meu séquito: mulher e duas filhas. Rei era ele.
Hoje recebi uma notícia que me deixou muito entristecido. O meu querido amigo, O ALBERTO, fechou os olhos. Falei a última vez com ele em Fevereiro, quando fez 96 anos e estava a sentir-se muito enfraquecido. Há poucos dias deixou-nos, e ficou um vazio, triste. Guardo, e guardarei a sua imagem, com uma saudade imensa. Um amigo raro. Mais de 1,90 de simpatia e humildade. Está agora entre os eleitos e isso devia deixar-me feliz. O meu egoísmo no entanto chora a sua perda.
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O pisteiro era um elemento fundamental na caça. Sem ele a caçada quase sempre se transformava num incómodo passeio de jeep.
Um homem especial. O caçador. Que pertence a uma classe à parte dentro da estrutura social em África. Não é qualquer um que é caçador. Quanto mais primitivo o homem mais em harmonia com a natureza ele consegue viver. Respeita e teme as suas forças que em grande parte deste continente ainda se impõem como uma espécie de religião. Mas em África como em qualquer outro lugar do planeta nenhum ser humano hesita em se sobrepor ao que hoje se chama de equilíbrio ecológico, ao ambiente. Basta que a população cresça, que os pastos do gado faltem, que lhe proporcionem qualquer negócio, para ele derrubar a mata, esgotar a terra, e se mudar para zonas mais intocadas. Assim se fez desde sempre, e fizeram-no brancos, amarelos, índios e africanos. Todos sabem que dependem desse equilíbrio, e enquanto as pressões não forem superiores à sua capacidade de resistir, a Mãe Natureza vai sendo mais respeitada. Fora disso...
Um "mucubal" no seu ambiente (foto do blog hunakulu)

Em todos os continentes os povos sempre se dividiram, e dividem ainda hoje, socialmente, sendo uns guerreiros, outros comerciantes, outros ainda agricultores, etc. mas pelo menos em África o caçador era talvez o mais especial. O caçador e o ferreiro. Depois de ser escolhido para essa função, quer por hereditariedade ou por mostrar para isso aptidões, é ensinado pelos mais velhos numa arte que além de muita ciência tem um quanto de esoterismo. Só quem viu pode ter alguma idéia do que se trata. A profunda comunhão entre o caçador africano e o ambiente é impressionante. Eram estes homens que serviam de pisteiros aos caçadores, colonos ou europeus. Perseguir um animal sem eles era quase impossível. Na savana, na mata, na floresta, no deserto, o pisteiro sabe onde se encontra a caça e que tipo de caça. Sabe há quanto tempo passou o animal, que animal, e até quantos. Pelo corte de um folha de capim distingue o antílope que a comeu e há quanto tempo cortou aquela folha. Outra folha de vegetação rasteira, pisada e que tende a retomar a sua posição indica também o tempo que passou. Um galho quebrado. A profundidade da marca no chão. Os excrementos, que são indícios precisos.
O bom pisteiro sente no ar a presença da caça.

A cerca de trinta quilômetros para norte da cidade de Moçamedes, hoje Namibe, o nome do deserto, há uma praia, a Baía das Pipas. À sua volta nada mais do que praia, muita praia, quilômetros e quilômetros de praias intocadas, o mar a poente o deserto no nascente. Ali a corrente de Benguela, ainda muito fresca, o mar riquíssimo em peixe, frutos do mar, águas azuis, transparentes. Poluição é palavra desconhecida. Um lugar maravilhoso. Paradisíaco.
Nessa baía se foram estabelecer no princípio deste século XX dois pescadores portugueses acabados de chegar a Angola. Nada, nada havia ao redor. Nem uma cubata, que eles tiveram que construir para morar. Foram pescar e viver disso. Precariamente, em termos econômicos, mas sem que nunca lhes faltasse comida.
Ambos se juntaram, talvez até tivessem casado de papel passado, com mulheres indígenas, uma delas irmã de um soba da região, de quem tanto um quanto o outro tiveram boa dose de filhos. Cinquenta anos depois só um dos casais estava vivo, velhote, uns quantos filhos, sobrinhos e netos à volta. Moravam nessa altura em cinco ou seis casas já de alvenaria. A cidade mais longínqua que tinham conhecido era exatamente Moçamedes! Uma existência de faina e vida tranquilas.

Esta fotografia com o velho amigo Alberto Gomes foi encontrada no blog princesa-do-namibe!

Um dos filhos, o Alberto, Alberto Gomes, um mulato grande, robusto, coração maior do que ele todo, uma mão enorme forte como uma torquês, simples, muito simpático, sempre sorridente e alegre, sorriso transparente como as águas daquele mar, uma figura humana que não se consegue esquecer.
Podia quem quer que fosse chegar à Baía das Pipas, a qualquer hora do dia ou da noite, que toda a família logo saía de suas casas para ver o que estava acontecendo! Quem os fosse visitar levava normalmente vinho e cerveja, batata, arroz ou algo de mercearia que pudesse complementar o que a natureza e o seu trabalho lhes dava. O deserto, onde às vezes se passa um e dois anos sem chover, junto à orla marítima tem um nível freático muito alto, o que permite manter o ano inteiro uma horta produzindo ótimos e frescos legumes. E aquela gente tinha-a. E muito mais: tinha o mar. Geladeira não havia nem dela muito necessitavam, porque o mar fornecia a qualquer hora tudo o que quisessem. Era só chamar alguns garotos, os sobrinhos, que corriam para a água e passado pouco traziam uma imensa variedade de peixes, camarão, lagosta, mexilhão, e um monte de outros frutos do mar. Imagine-se como eram frescos!
Depois, acender o fogo, esperar um pouco e deliciar-se com tudo aquilo! Entretanto o Alberto pegava na sanfona tocava uns fa-ri-funs em ritmo misto da terrinha dos velhotes com influência angolana e saía um bailarico, porque mesmo que os visitantes não fossem de ambos os sexos, o que era raro, tinham como par as filhas, sobrinhas, uma irmã e até os pais, velhotes e engelhados os dois, que sempre davam o seu pé de baile!
A vida naquele canto quase esquecido do mundo era de uma pureza impressionante, e ninguém conseguia dali sair sem lá deixar um pouco do seu coração!
A velhota, talvez com setenta, oitenta anos, ainda se enciumava ao ver o marido dar um pé de dança com alguma jovem visitante! Era uma cena engraçadíssima, ternurenta.
A inocência, o carinho e a alegria dessas festas deu como resultado levar a fama do Alberto a expandir-se Angola fora, pelos amigos dos amigos. Todos queriam conhecer essa rara espécie de homem! Chegou um dia ao pessoal da marinha de guerra portuguesa, que patrulhava a costa.
Uma bela manhã com tremendo susto e espanto, aqueles simples moradores assistem cheios de pasmo a um imenso navio de guerra, uma fragata, fundear em frente à baía, coisa absolutamente inédita. Os maiores navios que ali tinham ido eram algumas traineiras de pesca, a pescar ou comprar o peixe ou o marisco que aquela gente apanhava e criava em viveiros. Um navio de guerra foi além dum espanto um temor: o que quereriam?
Do navio sai um bote com dois marinheiros e um sargento, que ao desembarcarem são rodeados por toda a população local, que não devia ultrapassar umas vinte pessoas, entre adultos e crianças.
- Quem é o senhor Alberto?
Alberto, desconfiado, apresentou-se.
O senhor comandante Navarro manda convidar o senhor para almoçar a bordo.
- A mim??!!!!
O humilde e grande Alberto convidado por um comandante dum navio de guerra para almoçar a bordo, era o máximo que ele nunca tinha esperado que a vida lhe proporcionasse! Correu a casa vestiu uma roupa melhorzinha e seguiu no bote. À chegada ao navio, a cerimonial guarda de honra, apitos, continências e apresentações, que todos queriam conhecê-lo, e o Alberto, grande e humilde, espantado e confuso, sem compreender bem o que lhe estava acontecendo, sempre com o mesmo sorriso aberto, franco.
O comandante, amigo de amigos, quis também conhecê-lo e achou que face à fama do Alberto esta seria a melhor maneira de lhe retribuir a simpatia que ele difundia.
Visita ao navio, surpresa e espanto atrás de espanto e surpresa, que finaliza com o almoço na sala dos oficiais. O Alberto não cabia em si de felicidade. Durante o almoço contou inúmeras peripécias da sua vida simples. Todos se divertiram e saborearam aquela alma.
No fim, o convidado, comovido com tanta honra que pareciam lhe prestar, e prestavam, abre os braços e só consegue exclamar:
- Eu, e os meus oficiais!
Foi a apoteose.
Se ele um dia pudesse ler esta singela homenagem que com muita saudade e respeito também para ele aqui fica...
Mas, lá na Baía das Pipas, se fosse madrugada ou já de tarde aproveitava-se para dar uma volta pelo deserto, que generoso também, sempre fornecia alguma peça de caça para complemento daqueles manjares divinos.
Numa das vezes saíram num Fusca dois dos visitantes e o Alberto que conhecia aqueles trilhos todos como as suas próprias mãos, apesar destas serem enormes! Nesse dia a caça parecia teimar em não aparecer. Uns cinquenta quilômetros adentro do deserto encontraram um caçador mucubal, da tribo Cuvale habitante aquela região, que seguia tranquilo o seu caminho, aparentemente sem destino, porque parece que o deserto nunca leva a lugar algum! O deserto parece não ter fim.
Alberto mandou parar o carro e foi consultar aquele homem. Saber se ele tinha visto alguma caça ou se sabia onde encontrá-la. O homem, figura de legenda, pele escura como a noite, rosto sereno de máscara, sempre em silêncio, afastou-se uns vinte metros do carro, esteve quase imóvel por algum tempo, virou ligeiramente a cabeça para um lado, depois para o outro e quando se aproximou de novo, levantou um braço, apontou numa direção e disse secamente, na sua língua:
- Ngongo. As zebras, estão ali.
As zebras ninguém iria matar, mas ver valia sempre muito a pena. Meteu-se o carro a caminho, andando com facilidade já que o terreno plano permitia correr a sessenta ou mais por hora. Andados uns quinze minutos, dez ou quinze quilômetros, lá estava uma manada de zebras. Uns trinta animais. Exatamente na direção que o caçador mucubal indicara! Como ele o soube? Só ele sabe!
Valia muito a pena ir à caça só para ver o pisteiro conduzir os caçadores. Sempre em silêncio, passo ligeiro, nenhum detalhe por muito ínfimo que fosse escapava à sua atenção.
Muitos homens se ofereciam para acompanhar os caçadores, mas se não fossem pisteiros, a caçada não rendia, e até se chegavam a perder no mato!
Uma classe de gente muito especial.
Aahh! Baía das Pipas! Onde o Alberto guardava, religiosamente, num pequeno barraco coberto a chapa de zinco um velho Ford A, bem enferrujado com o ar do mar e com mais de 30 anos (isto passou-se em 1962 ou 3!). Era o orgulho dele: “O melhor carro para andar no deserto!” Devia ser mesmo. E prosseguia: “É só pôr um pouco de gasolina no depósito que ele pega logo”. Dizem-lhe os amigos visitantes: “Trabalha assim bem? Então vamos tirar do nosso carro que tem bastante”.
Comentário final do Alberto: “Só tem um problema. Falta-lhe a bateria”. Há quanto tempo?
“Bem, a última vez que o pus a trabalhar foi há uns nove anos”!
Grande Alberto!


quinta-feira, 13 de junho de 2019


Amigos – 28

Em Luanda havia um lar para garotos abandonados ou órfãos, que se chamava “Casa dos Rapazes de Luanda”, fundada em 1947, de que falei no meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco”. Ali viviam, alimentados pela caridade e sobras de gente com mais posses, mais de centena e meia de garotos, encontrados nas ruas ou órfãos em condições de grande abandono, orfandade ou simplesmente pobreza, se pobreza é coisa simples.
Nesse tempo esta Casa, era dirigida por um padre, meu xará. Impressionava ver aquela imensidão de garotos, vestidos e alimentados, alegres e tristes, abandonados e recolhidos, sem o calor dos pais, dos avós, dos irmãos, mas com o carinho que os poucos que ali trabalhavam, conseguiam multiplicar para chegar um pouco a cada um.
Aproximando-se o Natal, combinámos passar a noite da Consoada junto daquela garotada. Nós e nossos oito filhos e mais o casal Milu e Alfredo e seus também oito filhos.
A seguir ao jantar, o padre que tinha recolhido uns quantos brinquedos, usados, que os meninos ricos em vez de terem jogado no lixo faziam a boa ação de os dar para os pobres, foi distribui-los. Alguns em bom estado, grande parte... era lixo.
A cena chocou. Achei uma infâmia que na noite de Natal uma criança que pouco ou nada tem na vida, nem a família por perto para a abraçar, recebesse um presente que era mais uma ofensa à sua dignidade de pobre.
Ali mesmo fizemos uma espécie de promessa: aqui não volta a entrar lixo. Lixo é lixo, não é presente para criança, por muito miserável que ela seja.
Um dia disse ao Padre:
- Vamos montar uma “Operação Sótão”. Sei que já se fez isso uma vez, não sei quando, numa cidade de Espanha e recolheram-se montes de coisas úteis, de roupas a móveis, livros, tudo, tudo o que se puder imaginar e que as pessoas guardam, a maioria das vezes para nada, só para os ratos roerem.
- Mas aqui em África não há sótãos, e muita gente nem sabe o que isso significa.
- Trocamos o nome, sei lá... “Operação Limpeza”. O fundamental nisto é a preparação e divulgação.  Pense no assunto e daqui a dias voltamos a falar.
Dias depois já tínhamos algumas das idéias para pôr o plano em funcionamento.
- O meu amigo Fernando, grande fotógrafo, há-de aqui vir fotografar os garotos. Com um bom slogan, vamos projetar essa fotografia nos cinemas. A Rádio Renascença, põe os microfones à nossa disposição. Os jornais com quem falei vão ceder espaço para igualmente se divulgar a mesma fotografia e o slogan.
O Padre quis também participar da organização e, como dois a cavalo no mesmo burro... não dá:
- Padre: o senhor não sabe rezar?
- Essa agora? Então não havia de saber? Que pergunta é essa?
- E o senhor sabe que lá em cima o Patrão ouve e atende a pedidos para fins decentes, sobretudo quando feitos por crianças, não é?
- Sei. E então?
- Então o senhor reza e deixa a organização comigo. Assim vai dar certo. Pede aos garotos que façam também uma oraçãozinha, simples, que vão ser ouvidos.
Fez-se a fotografia, com um monte de garotos, sorridentes, mãos estendidas para o alto. E os seguintes dizeres emoldurando a garotada:
“CASA  DOS  RAPAZES  DE  LUANDA”
O que você já não quer, NÓS  precisamos.
Colabore com a  “OPERAÇÃO LIMPEZA”
Dias ...  a ...  vamos passar à sua porta.

Só isto. Os cinemas projetaram o slide, os jornais inseriram a imagem, as rádios locais falaram no assunto, e as pessoas perguntavam-se o que aquilo era.
Marcou-se uma data, uma semana antes da Páscoa, pediram-se a amigos que nos cedessem caminhões para correrem as ruas da cidade a recolher as dádivas, e prepararam-se algumas crianças da Casa junto com filhos nossos e de amigos, mentalizados para receberem tudo, tudo menos lixo.
Chegou o dia. Na Casa, padre e pessoal atarefados à espera ninguém sabia de quê! Na cidade, hora e local aprazados aparecem os caminhões. As crianças animadíssimas com a aventura que iam viver!
- Atenção! Última recomendação: nós não levamos lixo. Só coisas úteis. Aproveitáveis.
E aí vão pela cidade fora uns cinco caminhões, cada um com três crianças, sempre uma menina em cada grupo, de porta em porta. A meio da tarde começam a chegar os carros! As crianças de faces ofegantes, com imenso entusiasmo, todas ao mesmo tempo a quererem contar as suas peripécias! Os carros carregados! Em cima, roupas de cama, de vestir, algumas novas, como camisas e sapatos por estrear, livros aos montes, centenas de discos de música, rádios, toca-discos, geladeiras, fogões, bicicletas, sofás, cómodas, armários, estantes, livros, muitos livros, camas, mesas, ferramentas, máquinas diversas, como furadeiras e outras, até fotográficas, jogos e brinquedos, bolas de todos os tamanhos, etc., etc. Tudo em bom uso. Ninguém esperava que a resposta da população fosse assim. Falta de Fé! As orações das crianças têm força!
Onde guardar tudo aquilo? Era muito mais do que se esperava. O quarto onde os garotos passavam parte do tempo livre, uma espécie de salinha de estar, até àquela altura não tinha mais do que dois bancos. De repente lá estava um belo sofá, várias cadeiras, um rádio, gira discos, duas estantes com montes de discos e livros.
O mestre das oficinas, homem muito hábil consertou todas as geladeiras e ninguém mais bebeu água que não estivesse geladinha!
À tarde telefonou um homem dizendo que tinha uma carrinha Chevrolet, avariada, e ele já não queria mandá-la reparar, mas que a reparação era coisa pequena e até pagava o seu custo. O padre já ia mandar buscar, mas foi advertido:
- Se ele quer mesmo dar, que a venha aqui trazer.
E foi. Três dias depois estava a rodar! Foram máquinas antigas de marcenaria, mas ainda muito boas para apetrechar a oficina de aprendizado, e até uma pequena impressora, duas máquinas de soldar, e muita outra coisa. Tudo isso continuou depois a chegar à Casa dos Rapazes sem que se fosse buscar. Por fim até a oferta de um projetor de cinema de 16mm. sonoro, novo, passando as crianças a ter cinema toda a semana!
A “Operação Limpeza” acabou. Mas deixou uma importante marca na cidade, tão forte, que durante anos continuou a receber telefonemas de pessoas dizendo que tinham isto ou aquilo e perguntando se a Casa queria receber. O saldo final foi espantoso.
Depois da independência a Casa dos Rapazes foi desfeita!
Como é evidente, além da amizade com os garotos, surgiu uma amizade forte com o padre, que fui encontrar mais tarde em Portugal.
Eu seguia no combóio de Cascais para Lisboa, um senhor de barbas aproxima-se e pergunta-me:
- É o senhor Amorim?
­Não reconheci logo o barbudo e respondi:
- Atrás dessas barbas estou a reconhecer alguém, mas estou confuso!
­De repente caiu a ficha:
- Padre Freitas???
- Sim. Só que já não sou padre.
Saímos do combóio e fomos conversar num café. Muita coisa a dizer. Ele deixara o sacerdócio, casara e era professor de teologia duma faculdade. Já não teve mais filhos! Mas chorava a saudade daquelas centenas que lhe passaram pelas mãos.
Um dia veio ao Brasil e estivemos juntos. Voltou para Portugal e uma violenta doença fê-lo sofrer os últimos anos de vida. O meu bom amigo (padre) Francisco Freitas.
(infelizmente não tenho nenhuma foto dele)
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Na Cuca tive alguns administradores de quem guardo saudade e respeito, e especial simpatia.
Lembro, quando estagiei no Porto, do Eng. Seguro Ferreira, bem mais velho do que eu, mas muito atencioso, já em Angola, do famoso José Manuel Martins, que foi uma astro do Sporting entre 1926 e 28, sendo 11 vezes seu capitão, e toda a gente na Cuca o estimava muito por ser sempre bem disposto e ótima companhia, e além de outros daquele que vou agora referir.
Como já contei por diversas vezes que a minha saída da companhia foi causada pelo desentendimento com um administrador, porque, como já disse, desaforo... só levo de pobre.
Apresentei, por escrito a minha demissão, mas em Lisboa, durante um conselho de administração, um dos administradores, propôs que eu fosse nomeado diretor do que veio a chamar-se o Grupo 2, que era composto pelas novas empresas que entretanto a Cuca ia criando, tendo a fábrica de rações que eu montei do zero, sido a primeira.
Desta maneira eu sairia debaixo da alçada do que foi grosso comigo e continuaria no grupo, valorizado.
Mas a minha carta tinha sido já entregue e não houve volta. Paciência.
Saí.
Poucos dias depois esse administrador foi visitar-me onde eu estava a trabalhar. J. Pinto Comercial. Material fotográfico. Foi extremamente simpático, como aliás sempre fora, e era o único administrador que o pessoal da Cuca realmente considerava.
Amável, interessou-se pelo meu novo job e saiu de lá com um belo conjunto de cinema, 8 mm. De volta à companhia, chamou os diretores e chefes de serviço e fez questão de mostrar o eu lhe tinha vendido e que ele nem sabia como usar. Foi, sempre inteligente, uma maneira de mostrar àquela gente o colega que tinham deixado sair. Nunca esqueci essa atitude dele.
Anos depois, já eu estava no Brasil, visitei-o depois em Lisboa, casado de novo com uma simpática, muito simpática, senhora que eu conhecera de solteira. Almocei em sua casa, e soube com tristeza que a doença começara a abalar a sua saúde.
Um dia deixou-nos. E deixou-me uma dívida de gratidão que não consegui saldar, e um exemplo de correção e dignidade. Caetano Sanguinetti Beirão da Veiga.

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Na vida acontecem-nos coisas inesperadas, mas que se tornam marcos a jamais esquecer.
Saído de Angola, os primeiros tempos no Brasil foram assaz complicados. Um curriculum bem recheado, uma série de promessas dum éden profissional, promessas jamais concretizadas, quase que nem ensaiadas, um pouco dinheiro a sumir com vertiginosa rapidez, hospedagem em hotéis de terceira, enfim, um corre-corre atrás dum terreno em que pudesse usar a minha enxada de experiências.
Não sei já como surgiu, em São Paulo, um contato com uma firma especializada em projetos e equipamentos para olarias, para a produção de telhas e tijolos, onde fui muito bem recebido pelo proprietário, um engenheiro italiano, grande técnico em argilas e olarias, altão, simpático, tendo-se criado logo uma empatia especial.
Lembro de ter ido jantar a sua casa. Italiana. Para antipasto uma belíssima macarronada, que repeti! E quando então chega o prato principal tive que declinar. Aquela pasta tinha sido já um jantar ótimo!
Passei uns dias a seu lado, visitámos a oficina, alguns clientes, e recebo então uma proposta tentadora: como, ele me disse, eu valia bem mais do que qualquer dos funcionários que ali trabalhavam, tinha que me pagar bem mais. Mas isso assim de entrada iria causar mau estar, e a proposta era simples: da conta dele ia-me dando o dinheiro que eu precisasse e no fim dum mês já os outros teriam visto o que eu valia e o assunto ficava resolvido.
Entretanto, sozinho neste imenso país, a família ainda à espera em Portugal, as horas fora do trabalho eram ocupadas a ler os jornais. E isso foi a causa do meu desespero: um assassinato aqui, outro além, o sequestro duma criança, o assalto a diversas residências, e outras “atrações” daquela imensa capital, levaram-me a pensar que não era lugar para trazer a família, com sete filhos, tendo o mais novo cinco anos.
Em boa verdade, tive medo de ficar em São Paulo, e fiz a maior estupidez da minha vida indo para o Rio.
Um ano e meio depois regresso a São Paulo, não sei já porque não voltei a discutir trabalhar com ele, mas como precisei de abrir uma firma para vender os produtos que eu entretanto “inventara”, foi ele que convidei para ser meu sócio sem que tivesse que investir um só centavo.
Pouco tempo depois soube do desastre que se tinha abatido sobre o ele. A firma estava para falir!
A mulher, que geria as finanças, mancomunada com o gerente de vendas, atraiçoando o marido, nas finanças e nas camas, tinham montado uma arapuca miserável: a firma pagava antecipadamente as comissões sobre vendas, que se verificaram fictícias! Assim arruinaram o negócio, divorciaram-se e o meu amigo e sócio... sumiu.
Triste, parece que terá voltado para Itália, para a sua L’Aquila, nos Abruzos dos Apeninos.
Nunca mais o vi nem soube do seu paradeiro, mas ainda hoje lembro com saudade aquele italiano, grandão, simpático, competente, amigo.
Un abbraccio dopo quasi mezzo secolo, Umberto Sebastiani.

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Nas minhas andanças por este mundo de sobrevivência encontrei gente de toda a qualidade. Já esqueci os medíocres, recordo como anedota os vigaristas e os maus pagadores, mas guardo com saudade alguns que, de clientes viraram amigos.
Um deles, homem culto, jogador de tênis, inteligente, com doutoramento na Sorbonne, tendo feito parte de um dos governos do Estado de São Paulo, afável e sempre de ótima disposição, um dia me encomendou uma instalação de som e vídeo em sua casa. Casado com uma senhora de quem virei também a falar, advogada que fez parte da comissão que preparou a Constituição de 1988 no que dizia respeito aos assuntos da mulher, recebia-me em sua casa como uma amigo, tendo por diversas vezes lá almoçado e até jantado com eles, o que retribui, com muito prazer, em nossa casa.
O autêntico sósia do Omar Sharif! Tão parecido que um dia em Nova York decidiu ir jantar ao restaurante onde ele sabia que o ator costuma frequentar. À entrada foi logo muito cumprimentado, veio o gerente que levou para a “sua” mesa e que depois lhe faz a clássica pergunta:
- O de sempre, senhor Sharif ?
A resposta foi simples:
- Sim, o de sempre!
 Não sabia de todo o que ia beber, mas cumpriu o seu papel de perfeito sósia!
Era sócio, principal, duma empresa de informática que nessa altura trabalhava, e bem, o sistema MUMPS que havia implantado em alguns hospitais, muitos dos quais o utilizam até hoje.
A certa altura eu fui para Portugal tentar por lá continuar a vida, o que se verificou ter sido um tremendo falhanço, e este amigo, propôs-me levar esse sistema para Portugal onde a informatização dos hospitais simplesmente não existia.
A “linguagem MUMPS” era, e é, paradoxalmente complicada e simples, sobretudo para mim que nada entendo o que existe na “barriga” dos computadores. Ele forneceu-me toda a documentação disponível e em Lisboa surgiu um pseudo luso-brasileiro que disse conhecer o assunto. Quase um ano a trabalhar comigo, eu cego no assunto a ser explorado por quem nada sabia, e essa hipótese de entrar nos hospitais, que eu entretanto visitara e esperavam ansiosos pelos programas... acabou morrendo, e eu com vontade de torcer o pescoço ao vigarista.
Um dia o nosso amigo apareceu lá por Lisboa. Pensou em pôr algum dinheiro fora do Brasil e abriu uma conta num banco em Portugal... em nome da minha mulher, tal a confiança que havia entre nós!
Levámo-lo a dar uma volta por Sintra e um dia fomos almoçar a um antigo e ótimo restaurante, que se chama o “31 da Armada”! Como neste passeios ouviu uma frase bem portuguesa que, quando se quer mencionar alguém que nada vale e muito quer aparecer, chamam-lhe “carapau de corrida”!
O nosso amigo por fim já baralhando tudo e chamava-lhes então: “o carapau da Armada”!
O negócio não funcionou mas a amizade perdurou.
Nenhum negócio em que tentei por lá ficar não prosperou. Voltámos para o Brasil, e estive ainda algumas vezes com ele em São Paulo.
Chamou-se esse amigo Guilherme Dutra da Fonseca.


Fev/2019