Viagens e...
vigaristas
O senhor Frédéric Mauro, ilustre historiador francês,
num trabalho intitulado Les Portugais: Premiers champions de l’Expantion
Outre-Mer, de 1988, dá uma puxadinha à brasa para a sua sardinha dizendo
que a redescoberta das Ilhas Canárias se deve a dois franceses, em meados do
século XIV.
Os distintos que ele refere seriam Gadifer de La Salle
e seu companheiro Jean de Béthancourt, que se conheceram quando em 1390 fizeram
uma expedição contra Tunis. Lá se terão desentendido e... não foram às Ilhas
Afortunadas, citadas já por Plínio no começo do séc. I, mais tarde por Santo
Isidoro de Sevilha séc. XV-XVI, mas antes de todos estes por Juba II, rei da
Numídia (52-23 a.C) que ouvindo falar dessas afortunadas ilhas, mandou lá uma
expedição para verem o que era. Um deserto cheio de cães (canes) e animais
estranhos, que acabaram dando nome às ilhas.
Mas quem leva a palma da redescoberta são mesmo os
portugueses, com certeza antes de 1336. Em 1339 já figuram em várias cartas
náuticas e em 1345 o rei Afonso V escreveu ao Papa Clemente VI informando terem
sido os portugueses os primeiros a ali chegarem, reivindicando assim a sua
posse. O Papa não quis saber de conversas!
O que é sabido é que os dois franceses só lá foram em
1402, e ainda há enciclopédias a dizerem que eles foram os primeiros!
Mais adiante o senhor Mauro não afirma, mas deixa a
dúvida de que outro francês teria chegado ao Brasil antes dos portugueses.
Consta, numa publicação, francesa, é evidente, de
1785, que em 1488, alguns armadores de Dieppe teriam confiado um navio a Jean Cousin
para tentar alcançar as Índias Orientais, e que este, afastando-se das ilhas dos
Açores e do mau tempo teria alcançado a embocadura dum grande rio, talvez o
Amazonas, de que tomou posse. Diz a tal publicação que com ele iria Alonso
Pinzon. Dali seguiram e atingiram o cabo das Tormentas, isto é o Cabo da Boa
Esperança. Aqui estão de volta os
franceses a quererem se aproveitar da inocência dos inocentes, mentindo-lhes, até porque em 1488, foi quando,
finalmente, depois de ter descido a costa ocidental de África, Bartolomeu Dias
finalmente dobra o Cabo da Boa Esperança, o que jamais alguém teria feito.
As caravelas não só não eram assim
como tinham a Cruz de Cristo nas velas. Mas...
Pouca imaginação teve o senhor Desmarquets, que
escreveu essas Memoires, porque se limitou, três séculos depois do
desacontecido, a copiar o que tinha sido feito pelos portugueses.
Hoje essa história é considerada uma fábula, mesmo em
França. Aliás não há qualquer referência a viagens deste gajo, o tal Jean
Cousin, antes do livro de Desmarquets. Vigarista.
Houve, sim, dois Jean Cousin, no séc. XVI em França,
ambos pintores, reconhecidos. Mas não navegavam. Só pintavam.
Os portugueses assim
que chegaram ao Brasil empreenderam a exploração da madeira corante, o Pau
Brasil e até mesmo de cana. Tempo dos 'capitães-donatários' que dividiram o
território brasileiro, e o porto de Antuérpia assumiu-se como um centro de
redistribuição das especiarias do Oriente no norte da Europa, sob a produção das
fábricas e transportes portugueses.
E os franceses? Não
tomaram parte oficial das descobertas marítimas dos séculos XV e o início do
XVI. A primeira expedição através do Atlântico Sul, organizada a partir de
Dieppe por Verrazano, data de 1523: é pior do que os espanhóis, em 1492.
Não voltemos à
lenda da descoberta da Guiné pelos normandos (outra estúpida “invenção a la
française”!), ou do descobrimento do Brasil por Jean Cousin.
Piratas ou comerciantes
franceses decidem ir logo para o Brasil. Mas quando? De acordo com a cópia de uma
carta conhecida por um alemão e referindo-se a um barco de volta a este país em
um 12 de outubro, os nativos garantiram aos portugueses que viam aparecer de
tempo em tempo barcos montados por pessoas vestidas como eles, mas quase todos com
uma barba vermelha. "Por estes sinais, os português entenderam que seriam
franceses. Mas não sabemos em que ano essas coisas aconteceram, provavelmente
no início do século XVI.”
Mais interessante é
a história de Paulmier de Gonneville, marinheiro de Honfleur que, em 1505, conta
para o Almirantado de Rouen, a aventura de que foi ator e testemunha:
«Este capitão de Honfleur
tinha sido seduzido, durante a sua estadia em Lisboa, "pela beleza e riqueza
das mercadorias e outras raridades" trazidas de Calecute e tinha decidido
visitar as Índias, para o que "contratou dois portugueses bem pagos que
depois foram devolvidos". Organizou em Honfleur, uma esperançosa parceria
de nove pessoas para equipar um navio de cento e vinte toneladas e 60 homens,
que zarpou em 24 de junho de 1503. A viagem foi tranquila até 9 de novembro quando
se levantou uma forte tempestade. O barco foi até às proximidades dumas ilhas (que
ele chama de Tristão da Cunha, mas que ainda não tinham sido descobertas!) é
depois desviado para e noroeste até
"uma grande terra" onde ancorou a 5 de janeiro de 1504, em um
rio semelhante ao Orn (?). Foi no Brasil que ele tocou, talvez em torno de 26°
graus de latitude sul (Joinville? Paranaguá?). Os normandos passaram seis meses
no país e excursionaram para o interior até dois dias de caminho da costa. O
velho rei Arosca impressionado pela nova gente, o navio e artilharia e pelas
conversa que conseguiram estabelecer com os visitantes, além de alguns presentes
que recebeu e o bom tratamento dispensado, pensou até que tivessem "descido
anjos do céu".
Em troca de ferramentas
e outros objetos de pequeno valor, deram-lhes comida e quase cem quintais de
"peles, plumas e raízes para tingir..." o que "na França teria valido
bom preço". No dia da Páscoa, ergueram com pompa, na presença de “um
grande povo dos índios", uma "Cruz de madeira de trinta e cinco pés e
melhor, bem pintada", gravados de um lado os nomes do Papa, do rei da
França e do Almirante e do outro um dístico latino que contém a data do ano em
forma de linha do tempo"
Gonneville então
retornou à França, trazendo com ele Essomericq, filho do rei Arosca. O rapaz
casou com uma rica parente de Gonneville e teve descendência. Um século e meio
depois, seu descendente, Abbé Jean Paulmier, pediu para ser enviado ao Brasil
para converter os índios. Gonneville acreditava ter tido antecessores, de Dieppe,
Saint-Malin e outros Normandos ou Bretões, que durante anos já estavam de olho
na madeira para tingir de vermelho (o tal Pau Brasil), no algodão, macacos,
papagaios "e outras commodities". A algumas regiões do Brasil teriam chegado
primeiro, talvez o Honfleurois Jehan Denys pilotado pelo Rouennais Gamart ou
Camart em torno de 1519, ou pelo Dieppois Jean Parmentier, em 1520. Os jesuítas
portugueses afirmaram que os franceses chegaram ao Brasil em 1504. Mas como, em
qualquer caso, há uma boa chance de outro português preceder Cabral, a disputa
sobre a verdadeira descoberta do Brasil é insolúvel. Um ponto irrefutável no
entanto é a “descoberta oficial” de Cabral, em 1500, apesar de ter sido
escondida a descoberta de Duarte Pacheco Pereira, quando em 1498, o Venturoso “o
envia além, na grandeza do mar Oceano para descobrir terras ocidentais do Atlântico,
onde encontrou uma grande terra firme com muitas e grandes ilhas adjacentes a
ela”!
Tem cara de foz do Amazonas,
não tem?
Além disso uma
armada sob o comando de André Gonçalves ou Gaspar de Lemos saiu de Lisboa em
1501 para percorrer a costa brasileira, levando a bordo Américo Vespúcio que a
foi descrevendo. O seu relato acaba em Cananeia, por ser o limite estabelecido
em Tordesillas, mas por uma carta que deixou sabe-se que a armada chegou até ao
Rio da Prata, 36° Latitude Sul, deixando o senhor Paulmier em segundo ou
terceiro lugar!
Do lado inglês é no
século XV, no porto de Bristol, bem situado no sudoeste do país, que eles se
lançam para o Oeste. Os marinheiros não conseguem alcançar a Terra-Nova, como
se chegou a pensar, mas adquiriram grande experiência sobre ventos e correntes
do Atlântico Norte.
A descoberta da
Terra-Nova é ainda questão de problemas. Sabemos que em meados do século XV
Afonso V assinou um tratado com o rei inglês, Eduardo IV, que autorizava os
portugueses a pescarem bacalhau nas costas inglesas, que iam até... onde?
Parece que Diogo de
Teive, nascido na ilha da Madeira, fez duas viagens para Norte junto à
Terra-Nova onde não desembarcou mas de que trouxe notícia dessa ilha. No
regresso da primeira viagem, em 1452, descobriu as ilhas açorianas das Flores e
Corvo.
Também John
Scolvus, dinamarquês ou polonês, comandando uma armada financiada por Christian
I da Dinamarca, para ir à Groelândia (1473-1476), terá atingido a costa de
Lavrador, e ainda consta que de um dos navios seria capitão João Vaz
Corte-Real.
John Scolvus ou
John Kolno, pode não ter descoberto nada, mas... era um bonito rapaz, como se
vê no seu retrato pintado por Artur Szyk no séc. XIX ou XX. O que me faz
inveja é o chapéu. E notem outro detalhe demasiado curioso: o navio arvora a
bandeira dinamarquesa, mas nas velas a Cruz de Cristo! Seria o navio comandado
por Corte Real? A Ordem de Cristo teria chegado à Dinamarca? Estranho, né?
Muito estranho será
também uma declaração de João III de Portugal ao declarar que, em 1499, a
Terra-Nova e os pesqueiros de bacalhau não estavam ainda descobertos. Se não
estavam descobertos como ele se atreveu a citar os dois lugares? O famoso
secretismo português... um tanto idiota!
O venturoso rei
Manuel I mandou então em 1500-1502 os irmãos Corte Real lá para aquelas bandas,
e descobriram, outra vez, a Terra de Lavrador e percorreram o litoral da
Terra-Nova, ficando-lhes assim o mérito dos primeiros exploradores da Ilha.
A seguir, só em
1508 é que lá foi um francês, Jean Denys.
No meio disto
Giovanni Cabot também andou por àquelas bandas em 1497, o que dá para discutir
se foi ele ou o John Scolvus (com um Corte Real) quem primeiro chegou à
América, bem do Norte.
Também Estevão
Gomes (meu antepassado?) deixou o seu nome ligado à América do Norte, logo a
sul da Terra do Bacalhaus, em 1528.
Nebulosas que o
tempo encobre e talvez nunca se venha a saber ao certo como foi.
Mas que era tudo
homens machos, destemidos, eram. E o conforto, mais a comidinha e um frio de
quebrar os dentes, dentro daquelas cascas de noz... Deus me livre.
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10/06/2019