O meu Cristo branco
Há uns bons pares de anos, creio que 54, numa
altura em que fui de férias à metrópole, aproveitei
e fui a Espanha, Vitoria/Gasteiz, visitar um grande amigo, Don Vitoriano
Aristi, padre basco, com uma alma grande e uma alegria de vida em Cristo, que
incendiava o espírito de qualquer um.
Lá passámos uns dias, bem descontraídos, alegres,
numa bela companhia, e foi na época em que, dando sequência ao Concílio
Vaticano II, a Igreja determinara que a Missa fosse celebrada de frente para os
fiéis e não de costas como tinha sido desde sempre, além de falada nas línguas
locais.
Era uma azáfama nas igrejas a terem que se
adaptar, mas sentia-se que algo de nova
vida estava acontecendo na Igreja Católica. Uma mentalidade renovadora que
levantara também naqueles de mentalidade triglodítica, os sempre do contra, os arrogantes incapazes de serena humildade, que achavam
que a Missa celebrada nas línguas de cada país ou região não eram compreendidas por Deus (por Deus!!!), como aconteceu, e
permanece até hoje, quando alguns padres e bispos, continuam a dizer que
respeitam o Papa, mas... não abandonam o latim.
Numa dessas digressões fomos visitar um escultor
de obras sacras, e comprámos, muito barato, uma belíssima figura de Cristo, o
Sagrado Coração, de gesso, uns 80 cm. de alto, que depois do nosso querido
amigo Don Vitoriano lhe dar a benção carregámos conosco de volta e nos
acompanhou para Angola, Moçambique e está agora no Brasil.
Começa a história desta imagem quando cruzámos a
fronteira de Portugal em Vilar Formoso. Um muito zeloso guarda fronteiriço
implicou com a imagem, bonita, e achou que teria sido surrupiada algures numa
dessas igrejas que estavam em adaptação!
Bem expliquei que era uma peça de gesso que nos
tinha custado 500 pesetas, o que é verdade, mas o ignorante
defensor dos interesses financeiros e patrimoniais
da Península, decidiu reter-nos e telefonar para uma “técnica” da Guarda, que
teve que interromper o seu almoço para ir até à fronteira verificar a
autenticidade e antiguidade do pobre Cristo, que jazia, triste e envergonhado, no
balcão da alfândega, enquanto nós... aguardávamos!
Chegou a senhora especialistas em antiguidades,
bem chateada, olhou para o Cristo e, pela expressão que fez via-se que estava a
fim de trucidar o zeloso estúpido!
Bem embrulhado, deitado no banco traseiro do
carro, o Cristo descansou de tanta ignorância, e nós... ainda o temos.
Frágil, alguns dedos quebrados que eu sempre vou
tentado (às vezes conseguindo) restaurar, continua, sereno, a ouvir de vez em
quando os meus pensamentos, quando me sento na cama que está a seu lado, esperando
que algum comentário possa ser entendido.
O Cristo, com uma roupagem simples, de pobre,
descalço, não pode deixar de mexer conosco, aliás, com toda a gente que,
humildemente queira olhar para ele e, usando a
argumentação de Sócrates no seu diálogo com Eutífrone, não é por uma coisa ser vista que a vêem,
pelo contrário, é por a verem que ela é vista. *
Ao olhar para uma imagem sacra quase toda a gente
se fixa na obra do autor, nas cores, na beleza, proporções, etc. e, raras
vezes, procuram dialogar com ela.
Lembro com saudade e imensa admiração de algumas
mulheres angolanas que se iam prostrar aos pés da imagem de Nossa Senhora, na
Igreja da Nazaré, em Luanda, e discutiam com a Virgem, humildes, por vezes
zangadas porque Lhe haviam feito um pedido e não tinham sido ainda atendidas. E
faziam-no em voz alta, numa espantosa demonstração de fé, ora ajoelhadas ora de
pé, apontavam o dedo à Senhora, prometendo voltar para continuarem a reclamar.
Eu, mais agnóstico, vez por outra sento-me na
borda da cama, a seu lado, e simplesmente me deixo ali ficar alguns momentos,
no mesmo silêncio que às vezes nos diz muita coisa. Olho para Ele, jamais me
atrevi a tentar “negociar”, no género faz-me
isto que eu prometo aquilo, e, quando me retiro continuo a pensar na
“conversa” que não existiu!
Mas como estou em Londres e os jornais não falam
noutra coisa que não seja o Brexit, tento procurar o que o Cristo me diria se o
consultasse diretamente sobre isto.
Imagino que a resposta seria de uma imensa
simplicidade, algo como “aos homens foi
dado o poder da fala, de dialogarem. Mas só se vão entender quando quiserem e
partirem desse pressuposto. Para isso é necessário que sejam humildes e na
verdade procurem o bem do todos”.
O mal é que são pressupostos que dificilmente se
encontram em políticos, e na maioria dos homens em geral, onde impera a
arrogância e a adoração aos bezerros de ouro onde quer que eles estejam.
Estou a lembrar de uma cena curiosa.
Estava em Moçambique, LM, no banco BCCI, e o meu
papel eram as relações com o público, clientes, imagem da marca, etc., mas nada
a ver com as contabilidades, a informática e outras áreas complicadas dos
bancos.
Entre a matriz, em Lourenço Marques e a diretoria
da Beira havia sempre atritos, ou por causa das técnicas ou o que seja, o
Administrador resolveu mandar uma equipa à Beira ver se acabavam de vez com esses
pequenos e idiotas pseudo-problemas.
Eu, nada metido nas técnicas contabilísticas fui mandado
com outros colegas... pouco mais do que assistir passivamente.
Reuniões, discussões, argumentações, mas nada de
soluções. E eu a ver.
Ao fim do dia costumávamos ir beber um copo num
dos bares da terra e um dos diretores de LM, grande especialista contábil,
achava que eu só ali estava por ser amigo do Administrador. Respondi-lhe que
também não sabia porque me tinha mandado, mas que assistindo às reuniões tinha constado
um problema extremamente simples: ninguém estava interessado em resolver coisa
alguma, só cada um a mostrar que era mais sábio do que outro, e assim podíamos lá
ficar indefinidamente que dali nada sairia.
Ele olhou-me, zangado, mas faltou-lhe
argumentação! Eu insisti se você quer
resolver os atritos que existem, amanhã ao chegar comece a concordar com tudo o
que eles disserem. Depois, com o seu conhecimento dê um peque jeito aqui, outro
ali, e verá que no fim do dia terão acabado as divergências.
Fomos a pé para o hotel, e no caminho tive a minha
coroa de glória, eu, desprezado por nada saber de contas bancárias: tem toda a razão. Temos estado como
meninos teimosos, a ver quem é mais esperto. Amanhã vou seguir o seu conselho.
No dia seguinte, à hora do almoço a harmonia entre
todos era tão visível que até fomos almoçar juntos. À tarde, tudo resolvido,
era só fazer as malas e regressar a LM. Simples.
Talvez por estas e outras
se possa chamar ao cristianismo “O
milagre da normalidade”.
Agora, por este Reino-desUnido, a fortíssima
pressão popular deve mudar o jogo argumentando que é ao povo a solução dos
problemas do país. E tem razão. Querem nova votação sobre o problema.
A melhor imagem da condução do Brexit que vi até
agora aqui a reproduzo, e mostra bem a liderança, a arrogância e o pensamento político da madama May
E... valha-nos Deus.
*De
Platão, “EUTÍFRONE”, ensaio de tradução, do
original, pelo grande Mestre Agostinho da Silva.
22/03/19
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