sábado, 9 de março de 2019




ESBOÇO  DE  ALGUÉM

“Aqueles que por obras valerosas,
Se vão da lei da morte libertando!”

Quando no final do século XVI, Yermak Timofievitch entregou ao Duque de Moscovo, Ivan Vasilieivitch, o famigerado Ivan o Terrível, toda a Sibéria que havia finalmente conquistado e submetido por seu esforço e mérito, a alguns dos seus mais diretos colaboradores foram concedidas mercês e regalias como prova de agradecimento do primeiro governante russo que se intitulou o Grande Tsar das Rússias.
Entre essas mercês estava o direito ao uso, para si e seus descendentes, do patronal vitch, que significa filho de. Assim foram nobilitados alguns homens que ajudaram a engrandecer a Rússia, e seus filhos passaram a poder acrescentar ao seu nome próprio o nome de seu pai. Não eram mais simples comerciantes ou guerreiros, mas membros da nobreza.
Nos primórdios da nação portuguesa as gentes dividiam-se por bem definidas camadas sociais, tendo no topo os ricos homens, os grandes senhores de terras, de castelos e de gente, que ocupavam os principais cargos públicos, e assim detinham o poder e a autoridade, e a seguir os infanções, os nascidos e criados entre os mais poderosos senhores. Só estes pertenciam à nobreza, classe fechada, quando não endogâmica, que mais tarde começou a ser representada por outros membros, a que talvez se pudesse chamar nobreza de 2ª, como os cavaleiros.
Talvez com o receio de permitir que um qualquer penetrasse nesse meio de nobres, estes juntaram à sua classe mais uma designação: filhos de algo. A nobreza mais antiga, que vinha de pais para filhos, tinha que se distinguir dos que entravam nessa classe pela porta do serviço. Por muito que se tivessem destacado e merecessem o reconhecimento real, não tinham ancestrais, pais ou avoengos nobilitados que lhes permitissem ser filhos de algo, de alguém.
A esses um dia os reis tiveram que se agarrar para conter a força imensa dos grandes senhores, que com seu poderio económico, estratégico e até de gente que podiam recrutar para batalhas, desafiavam e ameaçavam o poder central.
No entanto os filhos de algo, os fidalgos, meta que todos almejavam atingir, de modo mais submisso ou arrogante, sempre dominaram as cortes.
Na verdade nobreza é algo que não está no sangue, nos livros de linhagens, nos brasões, nem nos avós, mas no comportamento e sentimentos. Onde está a nobreza de alguns membros da família real inglesa que só dá escândalos sujos? E das meninas de Mônaco? Que respeito merecem?
Nobreza está no caráter. De muita gente simples se ouve dizer que tem uma grande nobreza de alma, de caráter. São simples por não terem antepassados importantes, e são grandes porque assim são as almas simples.
Almeida Garrett, em atenção à sua grande obra artística e política foi nobilitado com o título de visconde e Par do Reino. Um dia, em que por doença não pôde comparecer ao Parlamento, foi alvo de uma crítica desagradável feita por um membro da velha fidalguia, que por sarcasmo insinuou a sua recém entrada na nobreza. Na sessão seguinte, Garrett, começou a sua réplica: - A nobreza que em mim começa talvez termine em Vossa Excelência! Eu fui nobilitado por meus serviços ao país, enquanto Vossa Excelência simplesmente nasceu assim.
Esta introdução não pretende ser uma incursão na história, mas uma muito singela homenagem a Alguém, porque parece no fim de tudo isto, o que vale é ser-se alguém. É bem verdade porque o que todos querem é ser alguém na vida.
Neste caso o Alguém, que de acordo com o dicionário significa pessoa de relevo, foi além disto.
Não só pela sua obra artística, de que se evidenciam a pintura, o desenho, a poesia, os profundos conhecimentos etnográficos, os científicos. O maior destaque da sua vida foi a sua personalidade. Foi ele todo.
Alegre, brincalhão, divertido, a sua companhia não dava lugar a tristezas. Ao seu lado tanto se aprendia sobre Angola e seus costumes.
Conhecia-o, bem, de nome, mas pessoalmente só depois de 1962 ou 3. Morávamos na mesma rua.
Angola que foi a maior paixão da sua vida. Percorreu-a de lés a lés, conviveu com suas gentes, e desde menino a sua máquina fotográfica foi o lápis e o papel. Retratava com mais realismo o seu desenho do que qualquer fotografia ótica.
Ele via e fixava os detalhes das gentes, seus requebros, sorrisos e tristezas, sombras e cores, trajes e adornos, suas conversas mudas que se ouvem nas expressões dos rostos, suas danças e costumes, suas vidas.
Os animais e seus habitats, as plantas, a mata, as casas, os céus, o cacimbo das manhãs, a névoa úmida das regiões de café, as nesgas de sol atravessando de mansinho as copas das árvores no Maiombe, nada lhe escapava, nem do traço nem da mente, continuando por muitos anos a reproduzir com fidelidade inigualável a cor de cada céu, de cada região que tão intensamente percorreu e viveu.
Não necessitava cantar em poesia aquilo que os seus pincéis reproduziam, como o Tocador de Quissange, onde a cor, a posição e a expressão do músico parecem por si próprios transmitir a dolência do instrumento. Observado com cuidado pode até escutar-se a sua música.
Dos Quintalões de Benguela que não mostram mais do que um muro, uma porta e uma árvore lá dentro, emana toda a dengosidade daquela cidade mulata, e ao fim de poucos momentos consegue-se até sentir a brisa que sopra, constante, da Praia Morena.
Quem atravessou as plantações de café do Uige, de manhã cedo, toda a área escondida na neblina a manter a umidade necessária para que Angola fosse o terceiro produtor mundial desse frutinho que faz uma bebida deliciosa, e vê uma pintura dessa região, sente os pés a derraparem em cima daqueles caminhos de barro escorregadio. E se o café estiver em flor fica inebriado. Os olhos presos naquele ambiente de sonho, sente nos ossos a umidade, e o cheiro a sair da tela, vivo, profundo, até entontecer.
A seguir um Imbondeiro, triste, grotesco, enorme, sem folhas, seu aspeto mais comum, passando a seu lado uma mulher com uma bilha de água na cabeça. Quem não sente o calor sufocante daquela região? Quem não se extasia perante aquela grandeza pobre, mas altiva, imponente?
Depois o Maiombe. Aqueles verdes!... Da tela sai a pujança do equador que nos faz sentirmo-nos menores do que os pigmeus, que estão por perto. O calor invade-nos, começa-se a suar e a louvar a Deus pela imponência daquelas obras da Criação. As duas, a de Deus e a da tela.
Esfumadas noutra neblina da madrugada, vem-se agora, perto mas ao longe, algumas gazelas esguias, elegantes, descontraídas, a pastarem. É um crime atirar em animais tão bonitos, mas... qual foi o caçador que resistiu?
Num Mercado no Luena qualquer um pode discutir preços e comprar panos, peixe seco, jinguba, sentir vertigens à beira da Fenda da Tunda Vala, encolher-se para atravessar a Floresta nos Dembos, ou refrescar-se debaixo das águas das Quedas do Duque.
Encanta-se com uma doce e altiva Bessangana de Luto, seu coração altera o compasso ao ver uma Moça de Massabi, Cabinda, ou da Gabela, acelera ainda mais a pulsação ao desejar aberta ou intimamente uma das Mulatas de Luanda e a reverenciar-se perante a beleza dum penteado Muíla.
Quem não sacode a anca ao ver a Marrabenta de Moçambique, ou a Rebita de Benguela e não dá uma umbigada com a Massemba de Luanda? Naqueles requebros vêm-se e ouvem-se os ritmos da dança.
Os desenhos, as aquarelas, as telas sucedem-se e de repente entramos pela Bahia do Salvador de Todos os Santos. Mesmo quem nunca foi à Bahia, a um candomblé, e pára em frente duma destas telas, começa a sentir o cheiro do caruru e o sotaque carinhoso e quente dos nossos irmãos do Brasil.
E muito mais do que só isto.
As suas poesias têm que ser lidas. Só lidas. Comentar poesias só por descaramento ou presunção se pode fazer, sobretudo quando elas tocam fundo na alma de quem viveu Angola. E é difícil encontrar quem tenha vivido em Angola, que não tenha vivido Angola.
Ler os seus poemas - Macuta e Meia de Nada - que escreveu pré e pós 1975, data em tivemos todos que sair de Angola, retrata bem o que isto significa. É impossível, ainda hoje, e sempre, ficar insensível a tão triste mágoa.
Este pequeno esboço de Alguém é uma muito simples, talvez até mesmo atrevida, maneira de recordar um Amigo. Um Amigo que teve muitos amigos e em cada um destes um grande admirador.
Se a sua obra foi mais do que suficiente para o distinguir e fazer dele Alguém, a sua personalidade sempre ultrapassou a obra. Sem aquela não teria existido esta!
Brincalhão, alegre, uma das graças que gostava de fazer era desenhar a sua caricatura em pratos ou copos e oferecê-los aos amigos. Mas os pratos e os copos não eram dele! Eram dos bares, dos restaurantes, das boates, que se orgulhavam da sua presença, mesmo conscientes do prejuízo que tal brincadeira lhes acarretava!
Em Luanda no Hotel Universo, do Trigo, um galego forreta, como todos, mas simpático, havia uma boate, que durante muito tempo foi o lugar da capital de Angola mais agradável para se passar parte da noite.
A boate era feia, não tinha decoração, e um dia o Trigo propôs-lhe a medo:
- Se você me fizesse uns painéis para aqui...  Mas custam muito caro, com certeza, e não vou poder pagar muito por isso.
- Eu faço. Não se preocupe. Você vai pagando em bebida, que eu venho aqui beber.
Dito e feito. A boate ficou com uns painéis sensacionais, linda.


Só mais tarde, quando a mulher lhe perguntou porque fez o trabalho de graça é que ele explicou:
- Quando fiz a minha primeira exposição para angariar algum dinheiro, o Trigo comprou-me uma grande quantidade de aquarelas que foi o que me permitiu ir estudar para Portugal. Agora é altura de retribuir.
Trigo nunca soube a razão deste gesto. E lá foi servindo as bebidas que ele, com garbo e sempre bastante sede ia bebendo, não só enquanto foi pintando, como depois nas muitas vezes que ali ia.
Um dia descobriu que lá num canto da boate havia um pequeno móvel onde os criados guardavam os pratos. Foi ao lado desse móvel que escolheu a sua mesa habitual: tinha sempre à mão quantidade suficiente de pratos para ir desenhando a sua caricatura e oferecer aos amigos!
O senhor Oppenheimer, senhor porque arquimilionário, dono de algumas das mais importantes minas de diamantes na África do Sul, e de um dos maiores comércios de pedras preciosas em todo o mundo, foi um dia a Angola, e lá tomou conhecimento do grande mestre pintor.
Foi a sua casa, montado em cima dos milhões que todo o mundo reverenciava. Todo o mundo não!
Depois de ver dois ou três quadros, o último dos quais o busto espetacular duma mulata, fez um comentário racista, apartheidiano sobre o fato do pintor se dedicar sobretudo aos africanos.
Este senta-se, tranquilo, acende o seu cachimbo, e fica sorrindo para sua excelência.
- Então, não tem mais quadros?
- Não. Só os que lhe mostrei, e estes mesmo estão já vendidos.
- Mas o senhor tem uma grande quantidade deles ali atrás.
- Tenho, mas uns não estão terminados e os outros foram encomendados. Não são meus.
Continuava sentado impávido, perna traçada, sorrindo e puxando fumaça do cachimbo.
- Mas como é possível? Tantos quadros aqui e o senhor diz que não nem um para vender?
- É isso.
O milionário saiu porta fora puto da vida. Foi-se queixar ao Governo Geral. Daqui lhe telefonam como que a pedir explicações para o caso!
- De quem são os quadros? Quem os pintou? Quem pagou as telas e as tintas? Quem me deu algum subsídio para pintar? São todos meus, e eu faço o que bem me apetece com eles.
Fim de papo.
Passado algum tempo expôs em Windhoek, capital do Sudoeste Africano, hoje Namíbia. A exposição foi mais um sucesso. Um ou dois meses mais tarde outro sul africano se apresenta em sua casa.
Tinha sabido da exposição em Windhoek, que infelizmente não tinha podido ver e pedia-lhe muito que lhe mostrasse algumas obras.
Viu, muitas, e comprou uma meia dúzia de quadros, que levou com ele.
Mais algum tempo depois veio a saber-se que fora a tal excelência quem mandara um emissário comprar os quadros, mas proibido de mencionar onde quer que estivesse o nome Oppenheimer!
O nosso artista ficou furioso, mas...
Já exilado em Salvador, na Bahia, onde viveu os primeiros tempos muito entristecido com a desgraça das terras que tanto amou e com a ingratidão dos seus governantes.
Ainda passei por sua casa, talvez em 1980, quando fui a Maceió. Fiquei lá dois dias, com a simpatia da Luiza e a maestria e simpatia do Mestre, muito amigo, desde os tempos em que, em Luanda eu ia visitá-lo em casa, para gozar uma excelente companhia, o ver trabalhar, ouvir uma boa música clássica e beber um copo com ele.
Quando regressei a casa escrevi-lhe uma carta a agradecer a hospitalidade.
A resposta que me mandou é uma delícia:

Um dia disse à mulher:
- Estou com falta de verde.
- Compra.
- O verdadeiro.
Foi para a Amazônia. Talvez uns quinze dias.
Três semanas depois a mulher telefona para o hotel onde supunha poder encontrá-lo, e nada! Pôs em campo a telefonista das informações de Manaus, que à boa e tradicional moda brasileira se prontificou em pesquisar por sua conta em todos os hotéis da cidade.
Uma hora depois liga de volta e diz que a última notícia dele é que tinha estado no hotel X.
A mulher liga para lá e informam-na:
- Esteve aqui sim, mas saiu há uns oito dias. Deixou a mala com a roupa, que pegaria quando regressasse.
- Para onde ele foi?
- Foi com uma turma que ia cortar madeira lá para o interior, para uns igarapés.
Estava localizado, mas só de lá voltou, com a graça de Deus e muito verde, quase um mês depois!
Este ALGUÉM chamou-se Albano Neves e Sousa, e a melhor maneira de fechar este pequeno abraço de muita saudade é com um traço dele mesmo, que me deu no Estoril quando da sua exposição no Casino em 1994. Já tinha sido operado ao coração, como tão bem retrata o coração todo amarrado e o cachimbo com uma cruz a riscá-lo!


12 fev. 19

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