segunda-feira, 18 de março de 2019



Gente da Cuca

Na Cuca trabalhou muitos anos um sujeito fabuloso. Era o homem das Relações Públicas, a quem era impossível dizer Não.
Quando começou o terrorismo em Angola, Março de 1961, o Renato estava em viagem pelo norte de Angola, em visita a distribuidores da cerveja. Ouvia as suas queixas, se as havia, ajudava a resolver problemas de logística, mas sobretudo deixava a todos muito bem dispostos e animados com a empresa, porque sempre terminava as suas visitas com uma bela petiscada generosamente regada com as tais Cucas, e a sua contagiosa e boa disposição.
Para ele não havia problemas que não pudessem ser resolvidos, dizia a tudo que sim, mesmo que depois tivesse que voltar a trás e dizer talvez. E se os problemas não se resolviam, não era com ele que alguém se aborrecia. Nunca. Não, jamais dizia.
Mas nessa visita ao norte, de carro, dormiu uma noite em Quitexe, e como era madrugador e as estradas que ia percorrer estavam em muito mau estado, saiu ainda mal o dia estava a nascer. Almoçou em Muxaluando e nessa noite pernoitou em Zala. No dia seguinte, pelo mesmo horário, de madrugada, seguiu para o Ambriz.
Ao chegar a esta cidade o alvoroço era enorme. Tinham recebido notícias do que estava a acontecer por toda a região que acabara de atravessar. Tinha irrompido o que se chamou, e foi, o terrorismo. Momentos após a sua saída de Quitexe a povoação foi atacada e massacrada toda a população branca ou mestiça que ali vivia. À tarde aconteceu o mesmo em Muxaluando, e naquela mesma manhã em Zala.
O Renato quando ouviu isto ficou aterrado. Tinham escapado incólumes, ele e o ajudante, andando sempre só alguns minutos à frente da morte, sem terem a menor noção do horror que estava acontecendo.
Durante muito tempo não havia quem o arrancasse de Luanda. Ficou traumatizado, o que é natural, face à brutalidade desses ataques, que só tiveram como resultado um outro brutal contra ataque da parte dos brancos. Enfim.
Mas o tempo foi diluindo o choque, e o Renato voltou a ser o mesmo, sempre amável e atencioso, alegre, muito educado, prestável, bonancheirão, generoso.
Mas voltar a percorrer Angola de carro, isso não foi capaz.
Sendo eu o seu “chefe” um dia estávamos a combinar ir a Nova Lisboa. Ele seguiria de carro, com o ajudante, ótimo, que tínhamos para essas viagens, e eu iria lá ter, de avião, dois dias depois.
O Renato, transtornado vira-se para mim e diz:
- Não vou!
- Não vai??? O que se passa?
- Pode até despedir-me, mas de carro eu não vou!
 Despedir o Renato, peça chave na companhia, nem o Papa! Muito menos eu! Só depois é que entendi que tudo aquilo eram os resquícios do trauma, violentíssimo, que vivera.
Mandámos um motorista levar o carro e fomos os dois de avião.
Como responsável comercial da companhia, um dia organizei uma espécie de reuniões de formação para os promotores e o restante pessoal de vendas. Usava uns painéis com frases chave e ia discorrendo com exemplos sobre os métodos de atuação. O Renato, depois do almoço, ainda nem a meio do meu papo ia, já dormia a sono solto.
Um dos painéis tinha uma frase bombástica: “Se queres comandar a natureza tens que obedecer às suas leis. Francis Bacon”.
Renato, bom garfo e gourmet, só ouviu a palavra bacon! Abre os olhos meio estremunhado e diz:
- Ah! Bacon, eu gosto muito!
É fácil imaginar o riso que contagiou a assembleia!
Quando o levava para almoçar ou jantar conosco, sempre fazia a mesma brincadeira: sabia que a minha mulher “instruía” o cozinheiro, lendo-lhe do seu, hoje famoso, livro de cozinha, o prato que ele devia cozinhar. Lia mais ou menos de uma fornada, e o cozinheiro fazia à moda dele, mas sempre impecável.
O Renato, sempre fazia a graça de telefonar lá para casa e perguntar à minha mulher:
- O jantar hoje, é do livrinho?
Adorava receber em sua casa onde sempre se preparavam uns petiscos ótimos. Recebia com a maior lhaneza e fazia questão que todos se sentissem totalmente à vontade, aliás uma maneira de ser africana, exponenciada por ele.
O Manel Teixeira, licenciado em Direito, jovem alferes, vinte e poucos anos, acabara de chegar a Luanda para cumprir o serviço militar na guerra colonial. Nos serviços administrativos do exército, nunca andou pelo mato. Sorte dele.
Renato soube da sua chegada, que estava sozinho em Luanda, sabia que era um grande amigo meu, fez questão que o levasse para jantar em sua casa.
Uns dez convivas, mesas postas no terraço, fresquinho, onde sempre corria uma agradável brisa. Chão de cerâmica. O anfitrião incansável nas atenções para com os convidados, que se sentissem bem. Ótimo jantar, tudo muito bem arranjado com a colaboração do Pincelinho, uma simpática amiga sua, baixinha, junto de quem acabou seus dias. O Manel, fazendo cerimónia, porque ainda não estava nem familiarizado nem angolanizado. Era a primeira vez que ia a casa do Renato.
O serviço de pratos era ótimo e lindo. Moderno. Branco, com um rebordo vermelho, muito bonito. Made in USA, Pirex, inquebrável, novidade.
O Manel estranhou, quando lhe disseram que era inquebrável. Lá na terrinha não havia disso, pelo menos que ele tivesse conhecimento.
- Muito bonito. Mas é mesmo inquebrável? Pode cair ao chão e não quebra?
- Pode. É mesmo inquebrável. Pode experimentar.
O Manel, meio desconfiado, agarrou num prato para o deixar cair, curioso, mas temeroso. O Renato:
- Oh! Doutor. Experimente. Deixe cair.
Caiu. E fez-se em mil pedaços! Convidado vermelho de vergonha, e logo o anfitrião:
- Experimente outro doutor. Esse devia ter algum defeito. Tome este.
Segundo prato. Mais mil pedaços. Risada geral. O Renato encantado com a experiência.
- Pode partir mais doutor. Não faça cerimónia, nem fique preocupado.
Grande figura. E grande amigo.
Depois do 25/4, a nova diáspora. O Renato vai para o Brasil, teoricamente representava uma casa de vinhos da família Vinhas, mas não lhe dava para viver, e estava a ficar velhote.
Voltou para Lisboa, com a sua simpática companheira, que ele tratava por Pincelinho, uma excelente pessoa, mas a saúde começava a dar sinais ruins.
Já na faixa dos 70, vão os dois na rua, em Lisboa, cruzam-se com uma senhora, que os pára, reconhece o Renato e cai-lhe nos braços! Não se viam talvez há meio século, mas ela não tinha esquecido o seu amor da adolescência.
Estava viúva, sem filhos e o marido tinha-lhe deixado muito folgadas finanças.
Sabendo da situação difícil do “amor juvenil” logo ali o “intimou” para que fosse viver em casa dela. Ele e a companheira. Tinha uma casa grande, automóvel e motorista, e não havia qualquer intenção de compartilhar o namoro perdido, mas não esquecido.
Lá foram.
Não tardou a que Renato piorasse e tivesse que ser internado. Numa das melhores clínicas de Lisboa, tudo por conta do antigo amor!
Mas estava já muito mal. Ainda o fui visitar. A cabeça baralhada. Reconheceu-me bem mas logo me associou a Luanda e perguntou-me se estava hospedado no Hotel Universo que é em Luanda.
Saí chocado da clínica. Regressei ao Brasil uns dias depois e entretanto o meu muito querido amigo, Renato Lima,  a quem os nossos filhos chamavam de Tio Relato, finalmente, descansou. Na foto ele teria uns 40 e pouco.

*             *             *              *             *
Outro amigo que o tempo mais não fez do que consolidar uma amizade muito franca. Foi ele que me entrevistou, em 1957, Lisboa, para a possibilidade de preencher uma vaga de técnico na Cuca em Angola.  Era o secretário da administração, em Portugal. Gordo, simpático, grandão, irradiava simpatia. Eu não o conhecia, e só tinha algum contato, muito esporádico, com um seu irmão, amigo duma irmã minha.
E lá voltei eu para Angola.
Em 1961 a Companhia me mandou fazer uma série de estágios e visitas de estudo pela Europa, era com ele que me entendia, em finanças, destinos, etc. Os patrões eram muito “patrões”! Não sei já como me fazia chegar o dinheiro lá ao estrangeiro, mas sempre fazia questão de dizer que não esquecera de mandar o meu salário a casa dos sogros, onde tinham ficado os primeiros quatro dos nossos filhos. Não se preocupe com as crianças. O dinheiro vai lá ter certinho!
Quando em 1963 surge e violentamente se espalha um boato caluniando o administrador da Cuca, Manuel Vinhas, dizendo que ela andava a dar dinheiros aos terroristas, dentro da companhia fui eu o único que não acreditei em semelhante estupidez, como iniciei uma tremenda luta contra isso.
Mas a verdade é que teve nefasta influência nas nossas vendas e eu era o responsável. O administrador local, Dr. Francisco Maia de Loureiro, aconselhou-me a escrever um relatório detalhado para a patrãozada em Lisboa, e ele mesmo escreveu a dizer que o sr. Amorim está a preparar um relatório...
O tal senhor Vinhas não gostou que alguém lhe apontasse o dedo e ficou bravo.
Uns dias depois recebo um telefonema de Lisboa. Do já meu amigo secretário da administração. Conversa tipo telegráfica, porque em questões de política nunca se sabe quem e o que estão escutando, e disse-me só:
- Estão todos bem aí em casa?
- Tudo perfeito.
- Não mande o relatório.
Não entendi e perguntei:
- Qual relatório?
- O que o dr. Maia Loureiro anunciou.
- Porque?
- Sabe que eu sou seu amigo, não sou? Então esqueça o relatório, e adeus.
Desligou!
Fiquei sem entender o que se estava a passar, tinha o tal relatório alinhavado, guardei numa gaveta e... não disse nada.
O boato foi de tal maneira que o “patrão” estava até proibido de sair de Portugal.
Um ano depois tive que ir a Lisboa, em serviço, contei ao meu sogro, juiz, o que se estava passando e, sobretudo que nada tinha acontecido e que a PIDE, como de costume, sem qualquer prova, mantinha o caso aberto.
Na ocasião o Chefe de Gabinete do Ministro do Interior tinha trabalhado como Delegado com o meu sogro, que decide telefonar-lhe e pedir uns minutos para expor-lhe um problema.
Lá fomos os dois. Expliquei bem a situação, o senhor não sabia de nada, mas disse que ia mandar buscar o processo e falar com o ministro. Depois do almoço telefonaria.
Assim foi. Disse que eu lá fosse ter com ele que me entregaria uma carta, dirigida ao “suspeito” assinada pelo ministro, informando que o processo acabara, tinha sido arquivado.
O meu amigo, secretário da companhia sempre fora, e continuou a ser muito amigo do “patrão visado”. Quando lhe telefonei a dizer que o problema estava resolvido, não acreditou.
Encontrámo-nos ao fim da tarde, entreguei-lhe a carta e as lágrimas apareceram-lhe nos olhos. O tal “patrão” ... nem uma palavra. Podia ter mandado um cartão de visita a agradecer, mas... dois anos depois foi grosso comigo, eu respondi-lhe e mandei-me! Não gosto de desaforo de rico.
A amizade com o “secretário” logo passado a administrador, essa ficou, firme e forte, mesmo quando o oceano nos separou. Vivíamos no Brasil, mas todas as vezes que ia a Portugal um almoço com ele era prato obrigatório.
Em 80 o nosso filho Luis lembrou-se de ir para Portugal atrás duma... e casar. Não valeu conselho de velho, foi e casou, mesmo que o casório não tenha durado mais que alguns meses.
Festa do casório em Oliveira de Azeméis. A nossa família contratou um ônibus e lá foram os convidados, numa farra que jamais alguém havia visto algo parecido, o que se ficou a dever à nossa sobrinha Zeza, que animou a excursão de tal modo que as pessoas foram e voltaram a rir!
No regresso a Lisboa, o querido amigo João Matos Chaves vira-se para mim e diz-me:
- Oh! Chico! Tem que casar todos os filhos aqui em Portugal. Um casamento como este nunca aconteceu antes.


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Dando este passeio pela Cuca, há pelo menos mais um colega de quem volta e meia me lembro.
Sobre ele escrevi um pouco no meu livro, de 1998, no capítulo “ESTÁ  FRESQUINHA”.
 Cuca foi a primeira fábrica de cervejas a instalar-se em Angola, em 1956, e até ao fim do tempo colonial manteve a liderança do mercado, apesar da concorrência de mais quatro que entretanto foram nascendo.
Foi seu cervejeiro, chefe dos serviços de fabricação durante muitos anos, um açoreano, filho de cervejeiro, homem calado, teimoso e simples, ótimo profissional, cioso do seu trabalho.
Sempre tinha vivido ligado à cerveja, a quem dedicava todo o seu saber e experiência.
Para se manter inalterada a qualidade e tipo de cerveja, a sua fabricação obriga a uma série de cuidados que vão desde a eleição das matérias primas, os diversos tipos de cevada ou malte e lúpulo são previamente submetidas a análises rigorosas.
Até os cuidados com a água são de importância capital. A matéria prima mais importante na cerveja é, sem dúvida, a água. Esta era toda lavada e depois acrescentada com os sais que o laboratório indicava diariamente, após feitas também as convenientes análises.
Depois, durante o processo de fabricação, de que se faziam por dia quatro ou cinco caldeiradas de milhares de litros cada uma, era necessário misturar essas caldeiradas umas com as outras. A este mosto que segue para tanques de fermentação é adicionada a levedura, ou fermento, que começa imediatamente a transformar o mosto em cerveja. O tempo de fermentação varia com o tipo de cerveja a fabricar, e finda a fermentação principal a cerveja entra em tanques de fermentação secundária ou amadurecimento. À saída da fermentação primária misturam-se vários tanques e finalmente dos tanques de amadurecimento final, se faz outra mescla para que a qualidade do produto a engarrafar e seguir para o mercado, se apresente de tal forma homogêneo que não possa sujeitar-se a oscilações.
A fermentação faz-se com levedura que, como qualquer ser vivo, apesar de todos estes cuidados, sempre encontra possibilidade de manifestar a sua personalidade individualista. Assim aparecem de vez em quando uns tanques em que a cerveja, por razões mais ou menos desconhecidas sai diferente. A sua cuidada mistura com outros tanques acaba por disseminar essa diferença sem alterar a qualidade final.
Quando num desses tanques aparecia alguma coisa de muito especial, o nosso cervejeiro, sentia um prazer maior, e gostava de o compartilhar com os colegas, o que era natural.
A um por um mandava recado para irem à sua sala, evocando qualquer pretexto de trabalho, e sem alardes mandava à adega buscar dois copos daquela cerveja. Ninguém suspeitava, porque mesmo que nada de especial estivesse acontecendo, sempre que alguém ia falar com ele, era de praxe oferecer-lhe um copo de cerveja tirada diretamente da adega. Mas naqueles dias a intenção era outra.
Depois do colega beber o primeiro gole, com ar aparentando total despreocupação, perguntava:
- Que tal está essa cerveja?
Quase sempre a resposta era a mesma, estava muito boa, sem dúvida. Aliás beber cerveja saída diretamente dos tanques da adega, apesar de apresentar turvação própria da levedura ainda em suspensão, que é depois retirada durante a filtragem, era sempre uma delícia. Muito leve.
Dessa vez porém a cerveja estava bem para lá do simples muito boa.
- Aahh! Mas isto está uma maravilha! Que cerveja é esta? Alguma novidade na manga?
Era o que o pai da criança queria e gostava de ouvir. Ficava todo feliz! Eram pequenas coroas de glória que sem prejudicar alguém lhe davam enorme satisfação. Dessa vez a cerveja estava muito especial.
Teciam-se depois alguns comentários sobre a excepção daquele tanque, que tal como acontece nas adegas de vinho, em que se fazem milhares e milhares de litros, no meio de tudo aquilo há sempre uns quantos barris que se sobressaem. No vinho ainda dá para fazer seleções, engarrafando o especial com rótulo e preço de eleição, porque há sempre quem compre o que é superior, quando não é o próprio produtor que o guarda para si. Na cerveja não se pode variar a qualidade, mesmo que por acidente ela se apresente melhor. Nem engarrafar em separado para os amigos, porque quanto menos tempo de engarrafada, melhor é para se beber. O destino destas pequenas maravilhas é acabarem diluídas no meio de tantas outras, a fim de se manter a qualidade estabilizada. Nada mais do que isto.
Entre os colegas havia um responsável pela manutenção do equipamento da fábrica, engenheiro de máquinas, o Sampaio, a quem chamávamos de Xampaio por ser lá de xima, das Beiras de Portugal, onde em algumas regiões se fala ainda com sotaque galáico português (que me perdoem os linguistas se estiver dizendo algum disparate). Baixinho, forreta, mão de vaca, sem qualquer sentido de humor, mas competente na sua área.
Foi também chamado a pretexto de discutirem algum detalhe técnico-mecânico, assim que à sua sala já lhe estava passando às mãos um copo da tal maravilha. O Xampaio, bebeu um gole e nada. Segundo. Terceiro. O copo todo.
- Então, que tal acha essa cerveja?
- Está fresquinha. Está muito fresquinha!
Imaginem a cara do cervejeiro. À espera de mais um elogio, limitou-se a ouvir que estava fresquinha. Talvez porque a responsabilidade da manutenção do equipamento de frio fosse dele, do tal Xampaio! O Cabral deve ter tido vontade de estrangular aquele provador para quem um copo de cerveja, vinho ou vinagre teria sido a mesma coisa, desde que estivesse fresquinho!
O cervejeiro, que eu muito considerava como colega e amigo era o Ricardo Cabral.
Foto dum jantar com os “patrões”:
1.- Miguel Monteiro – Presidente do Conselho de Administração
2.- António Fonseca – Presidente de... ?
3.- Leonor Aragão – Secretária do Diretor
4.- Alfredo Duarte Figueiredo – Diretor da Fábrica de Nova Lisboa
5.- João Matos Chaves – Secretário da Administração em Lisboa
6.- Eu
7.- Ricardo Cabral – Mestre Cervejeiro
8.- Renato Lima – Relações Públicas
9.- José “Xampaio” – Engenheiro de Manutenção


Fev.19


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