domingo, 31 de março de 2019




O  Puto *


Estou longe de ser fatalista, mas por vezes acredito que, algures, lá nos Altos Desígnios, a nossa vida está traçada desde o momento em que somos concebidos.
Desde que acreditemos que há um Ser Superior que é Onisciente, mesmo antes de nascermos Ele já saberá como vai ser a vida de cada um de nós, apesar de nos ter criado livres, sobretudo para pensarmos, muitos vezes não livres dos nossos corpos e obrigados a esconder ou disfarçar o nosso modo de pensar, de ser ou não religioso, etc.
Ao longo dos muitos anos já vividos sofri pesadíssimos golpes, dores imensas, incuráveis, mas tive a felicidade de ir conhecendo e criando amizades, algumas tão profundas que atravessam os anos, se consolidam e deixam de pertencer a um simples grupo de amigos para se integrarem completamente como membros da família.
E o gratificante, é que apesar de muitos irem ficando pelo caminho, mesmo nesta já provecta idade, ainda vou conseguindo novas amizades que muito prezo.
E isso é um dos maiores prazeres que a vida nos proporciona, os Amigos.
Através de um vem outro, guardam-se e estimam-se aqueles com quem nos entendemos melhor, e assim há poucos dias um novo amigo veio, através de alguns livros, tornar mais agradável a nossa vivência.
Livro lançado há poucos dias com descrições históricas do que foi o abandono da colónias portuguesas, entregues de qualquer modo ao bloco soviético, que levou ao êxodo de milhares de brancos que sentiam africanos e ao genocídio de perto de dois milhões de angolanos e moçambicanos, que um dia haviam pensado que a independência lhes daria o direito de escolher os seus governantes, logro a que que cubanos, russos e asseclas jamais permitiram, como ainda hoje se vê, por exemplo, na tão democrática Cuba.
Através de um valente jovem português, o Puto, somos levados aos bastidores de uma guerra fratricida, à vergonha das tropas portuguesas vergonhosamente vencidas, algumas até vendidas por capitãezinhos pseudo esquerdistas, enfim, à maior vergonha da história de Portugal.
“O Puto” é um livro com descrições da brutalidade daqueles tempos, quando os africanos não comunistas – em Moçambique os não frelimistas, mais de 70% da população, e em Angola os bacongos e os umbundos, imensa maioria de toda a população angolana – tentaram impedir a imposição dum novo colonialismo brutal, incomparavelmente pior do que o que tiveram com os portugueses.


Devem ler o livro quem viveu esses tempos conturbados e aqueles que gostem de ir mais fundo no estudo da história, tão alterada, tão falsa, tão mentirosa como a mídia mostrou durante e pós 25 de Abril. E ainda hoje prefere enaltecer as festas do Avante e discutir, denegrir o nome a dar a um museu, que tão simplesmente se propôs chamar Museu das Descobertas, do que mostrar a verdade atrás dum ato, quase infantil, de alguns capitães poetas e acomodados, logo ultrapassados pela esquerda festiva e destrutiva.
Sem adjetivações e demonstrações de favoritismo político, todas as páginas relatam uma luta levada sem medo nem fronteiras por um jovem PORTUGUÊS, que se sentiu atraiçoado.
Através deste livro tive ainda uma notícia que me deixou mais feliz porque vim a saber que um amigo que eu sabia tinha sido preso e espancado pela Frelimo, afinal havia conseguido safar-se. Nunca mais o tinha visto nem ouvido falar dele, mesmo que tivesse feito diligências nesse sentido, e fiquei agora a saber que viveu depois, até 2009, em Johannesburg.
Ganhei um pouco mais de conhecimento, tive notícias de um amigo e, além disso, ganhei um amigo novo, o autor, Ricardo de Saavedra.
Bem haja, Ricardo.
Às vezes vale a pena viver.

* Do latim “puttus” - menino. “Puto” era o nome, carinhoso, que se dava, em Angola e Moçambique, às crianças, sobretudo portuguesas e a alguns adultos baixinhos. Estes baixinhos, em Angola eram mais chamados de “cambutas”!
Também se usava para referir simplesmente Portugal.

23-03-19




segunda-feira, 25 de março de 2019


O meu Cristo branco

Há uns bons pares de anos, creio que 54, numa altura em que fui de férias à metrópole, aproveitei e fui a Espanha, Vitoria/Gasteiz, visitar um grande amigo, Don Vitoriano Aristi, padre basco, com uma alma grande e uma alegria de vida em Cristo, que incendiava o espírito de qualquer um.
Lá passámos uns dias, bem descontraídos, alegres, numa bela companhia, e foi na época em que, dando sequência ao Concílio Vaticano II, a Igreja determinara que a Missa fosse celebrada de frente para os fiéis e não de costas como tinha sido desde sempre, além de falada nas línguas locais.
Era uma azáfama nas igrejas a terem que se adaptar, mas sentia-se que algo de nova vida estava acontecendo na Igreja Católica. Uma mentalidade renovadora que levantara também naqueles de mentalidade triglodítica, os sempre do contra, os arrogantes incapazes de serena humildade, que achavam que a Missa celebrada nas línguas de cada país ou região não eram compreendidas por Deus (por Deus!!!), como aconteceu, e permanece até hoje, quando alguns padres e bispos, continuam a dizer que respeitam o Papa, mas... não abandonam o latim.
Numa dessas digressões fomos visitar um escultor de obras sacras, e comprámos, muito barato, uma belíssima figura de Cristo, o Sagrado Coração, de gesso, uns 80 cm. de alto, que depois do nosso querido amigo Don Vitoriano lhe dar a benção carregámos conosco de volta e nos acompanhou para Angola, Moçambique e está agora no Brasil.
Começa a história desta imagem quando cruzámos a fronteira de Portugal em Vilar Formoso. Um muito zeloso guarda fronteiriço implicou com a imagem, bonita, e achou que teria sido surrupiada algures numa dessas igrejas que estavam em adaptação!
Bem expliquei que era uma peça de gesso que nos tinha custado 500 pesetas, o que é verdade, mas o ignorante
defensor dos interesses financeiros e patrimoniais da Península, decidiu reter-nos e telefonar para uma “técnica” da Guarda, que teve que interromper o seu almoço para ir até à fronteira verificar a autenticidade e antiguidade do pobre Cristo, que jazia, triste e envergonhado, no balcão da alfândega, enquanto nós... aguardávamos!
Chegou a senhora especialistas em antiguidades, bem chateada, olhou para o Cristo e, pela expressão que fez via-se que estava a fim de trucidar o zeloso estúpido!
Bem embrulhado, deitado no banco traseiro do carro, o Cristo descansou de tanta ignorância, e nós... ainda o temos.
Frágil, alguns dedos quebrados que eu sempre vou tentado (às vezes conseguindo) restaurar, continua, sereno, a ouvir de vez em quando os meus pensamentos, quando me sento na cama que está a seu lado, esperando que algum comentário possa ser entendido.


O Cristo, com uma roupagem simples, de pobre, descalço, não pode deixar de mexer conosco, aliás, com toda a gente que, humildemente queira olhar para ele e, usando a  argumentação de Sócrates no seu diálogo com Eutífrone, não é por uma coisa ser vista que a vêem, pelo contrário, é por a verem que ela é vista. *
Ao olhar para uma imagem sacra quase toda a gente se fixa na obra do autor, nas cores, na beleza, proporções, etc. e, raras vezes, procuram dialogar com ela.
Lembro com saudade e imensa admiração de algumas mulheres angolanas que se iam prostrar aos pés da imagem de Nossa Senhora, na Igreja da Nazaré, em Luanda, e discutiam com a Virgem, humildes, por vezes zangadas porque Lhe haviam feito um pedido e não tinham sido ainda atendidas. E faziam-no em voz alta, numa espantosa demonstração de fé, ora ajoelhadas ora de pé, apontavam o dedo à Senhora, prometendo voltar para continuarem a reclamar.
Eu, mais agnóstico, vez por outra sento-me na borda da cama, a seu lado, e simplesmente me deixo ali ficar alguns momentos, no mesmo silêncio que às vezes nos diz muita coisa. Olho para Ele, jamais me atrevi a tentar “negociar”, no género faz-me isto que eu prometo aquilo, e, quando me retiro continuo a pensar na “conversa” que não existiu!
Mas como estou em Londres e os jornais não falam noutra coisa que não seja o Brexit, tento procurar o que o Cristo me diria se o consultasse diretamente sobre isto.
Imagino que a resposta seria de uma imensa simplicidade, algo como “aos homens foi dado o poder da fala, de dialogarem. Mas só se vão entender quando quiserem e partirem desse pressuposto. Para isso é necessário que sejam humildes e na verdade procurem o bem do todos”.
O mal é que são pressupostos que dificilmente se encontram em políticos, e na maioria dos homens em geral, onde impera a arrogância e a adoração aos bezerros de ouro onde quer que eles estejam.
Estou a lembrar de uma cena curiosa.
Estava em Moçambique, LM, no banco BCCI, e o meu papel eram as relações com o público, clientes, imagem da marca, etc., mas nada a ver com as contabilidades, a informática e outras áreas complicadas dos bancos.
Entre a matriz, em Lourenço Marques e a diretoria da Beira havia sempre atritos, ou por causa das técnicas ou o que seja, o Administrador resolveu mandar uma equipa à Beira ver se acabavam de vez com esses pequenos e idiotas pseudo-problemas.
Eu, nada metido nas técnicas contabilísticas fui mandado com outros colegas... pouco mais do que assistir passivamente.
Reuniões, discussões, argumentações, mas nada de soluções. E eu a ver.
Ao fim do dia costumávamos ir beber um copo num dos bares da terra e um dos diretores de LM, grande especialista contábil, achava que eu só ali estava por ser amigo do Administrador. Respondi-lhe que também não sabia porque me tinha mandado, mas que assistindo às reuniões tinha constado um problema extremamente simples: ninguém estava interessado em resolver coisa alguma, só cada um a mostrar que era mais sábio do que outro, e assim podíamos lá ficar indefinidamente que dali nada sairia.
Ele olhou-me, zangado, mas faltou-lhe argumentação! Eu insisti se você quer resolver os atritos que existem, amanhã ao chegar comece a concordar com tudo o que eles disserem. Depois, com o seu conhecimento dê um peque jeito aqui, outro ali, e verá que no fim do dia terão acabado as divergências.
Fomos a pé para o hotel, e no caminho tive a minha coroa de glória, eu, desprezado por nada saber de contas bancárias: tem toda a razão. Temos estado como meninos teimosos, a ver quem é mais esperto. Amanhã vou seguir o seu conselho.
No dia seguinte, à hora do almoço a harmonia entre todos era tão visível que até fomos almoçar juntos. À tarde, tudo resolvido, era só fazer as malas e regressar a LM. Simples.
Talvez por estas e outras se possa chamar ao cristianismo “O milagre da normalidade”.
Agora, por este Reino-desUnido, a fortíssima pressão popular deve mudar o jogo argumentando que é ao povo a solução dos problemas do país. E tem razão. Querem nova votação sobre o problema.
A melhor imagem da condução do Brexit que vi até agora aqui a reproduzo, e mostra bem a liderança, a arrogância e o pensamento político da madama May


E... valha-nos Deus.

*De Platão, “EUTÍFRONE”, ensaio de tradução, do original, pelo grande Mestre Agostinho da Silva.

22/03/19

segunda-feira, 18 de março de 2019



Gente da Cuca

Na Cuca trabalhou muitos anos um sujeito fabuloso. Era o homem das Relações Públicas, a quem era impossível dizer Não.
Quando começou o terrorismo em Angola, Março de 1961, o Renato estava em viagem pelo norte de Angola, em visita a distribuidores da cerveja. Ouvia as suas queixas, se as havia, ajudava a resolver problemas de logística, mas sobretudo deixava a todos muito bem dispostos e animados com a empresa, porque sempre terminava as suas visitas com uma bela petiscada generosamente regada com as tais Cucas, e a sua contagiosa e boa disposição.
Para ele não havia problemas que não pudessem ser resolvidos, dizia a tudo que sim, mesmo que depois tivesse que voltar a trás e dizer talvez. E se os problemas não se resolviam, não era com ele que alguém se aborrecia. Nunca. Não, jamais dizia.
Mas nessa visita ao norte, de carro, dormiu uma noite em Quitexe, e como era madrugador e as estradas que ia percorrer estavam em muito mau estado, saiu ainda mal o dia estava a nascer. Almoçou em Muxaluando e nessa noite pernoitou em Zala. No dia seguinte, pelo mesmo horário, de madrugada, seguiu para o Ambriz.
Ao chegar a esta cidade o alvoroço era enorme. Tinham recebido notícias do que estava a acontecer por toda a região que acabara de atravessar. Tinha irrompido o que se chamou, e foi, o terrorismo. Momentos após a sua saída de Quitexe a povoação foi atacada e massacrada toda a população branca ou mestiça que ali vivia. À tarde aconteceu o mesmo em Muxaluando, e naquela mesma manhã em Zala.
O Renato quando ouviu isto ficou aterrado. Tinham escapado incólumes, ele e o ajudante, andando sempre só alguns minutos à frente da morte, sem terem a menor noção do horror que estava acontecendo.
Durante muito tempo não havia quem o arrancasse de Luanda. Ficou traumatizado, o que é natural, face à brutalidade desses ataques, que só tiveram como resultado um outro brutal contra ataque da parte dos brancos. Enfim.
Mas o tempo foi diluindo o choque, e o Renato voltou a ser o mesmo, sempre amável e atencioso, alegre, muito educado, prestável, bonancheirão, generoso.
Mas voltar a percorrer Angola de carro, isso não foi capaz.
Sendo eu o seu “chefe” um dia estávamos a combinar ir a Nova Lisboa. Ele seguiria de carro, com o ajudante, ótimo, que tínhamos para essas viagens, e eu iria lá ter, de avião, dois dias depois.
O Renato, transtornado vira-se para mim e diz:
- Não vou!
- Não vai??? O que se passa?
- Pode até despedir-me, mas de carro eu não vou!
 Despedir o Renato, peça chave na companhia, nem o Papa! Muito menos eu! Só depois é que entendi que tudo aquilo eram os resquícios do trauma, violentíssimo, que vivera.
Mandámos um motorista levar o carro e fomos os dois de avião.
Como responsável comercial da companhia, um dia organizei uma espécie de reuniões de formação para os promotores e o restante pessoal de vendas. Usava uns painéis com frases chave e ia discorrendo com exemplos sobre os métodos de atuação. O Renato, depois do almoço, ainda nem a meio do meu papo ia, já dormia a sono solto.
Um dos painéis tinha uma frase bombástica: “Se queres comandar a natureza tens que obedecer às suas leis. Francis Bacon”.
Renato, bom garfo e gourmet, só ouviu a palavra bacon! Abre os olhos meio estremunhado e diz:
- Ah! Bacon, eu gosto muito!
É fácil imaginar o riso que contagiou a assembleia!
Quando o levava para almoçar ou jantar conosco, sempre fazia a mesma brincadeira: sabia que a minha mulher “instruía” o cozinheiro, lendo-lhe do seu, hoje famoso, livro de cozinha, o prato que ele devia cozinhar. Lia mais ou menos de uma fornada, e o cozinheiro fazia à moda dele, mas sempre impecável.
O Renato, sempre fazia a graça de telefonar lá para casa e perguntar à minha mulher:
- O jantar hoje, é do livrinho?
Adorava receber em sua casa onde sempre se preparavam uns petiscos ótimos. Recebia com a maior lhaneza e fazia questão que todos se sentissem totalmente à vontade, aliás uma maneira de ser africana, exponenciada por ele.
O Manel Teixeira, licenciado em Direito, jovem alferes, vinte e poucos anos, acabara de chegar a Luanda para cumprir o serviço militar na guerra colonial. Nos serviços administrativos do exército, nunca andou pelo mato. Sorte dele.
Renato soube da sua chegada, que estava sozinho em Luanda, sabia que era um grande amigo meu, fez questão que o levasse para jantar em sua casa.
Uns dez convivas, mesas postas no terraço, fresquinho, onde sempre corria uma agradável brisa. Chão de cerâmica. O anfitrião incansável nas atenções para com os convidados, que se sentissem bem. Ótimo jantar, tudo muito bem arranjado com a colaboração do Pincelinho, uma simpática amiga sua, baixinha, junto de quem acabou seus dias. O Manel, fazendo cerimónia, porque ainda não estava nem familiarizado nem angolanizado. Era a primeira vez que ia a casa do Renato.
O serviço de pratos era ótimo e lindo. Moderno. Branco, com um rebordo vermelho, muito bonito. Made in USA, Pirex, inquebrável, novidade.
O Manel estranhou, quando lhe disseram que era inquebrável. Lá na terrinha não havia disso, pelo menos que ele tivesse conhecimento.
- Muito bonito. Mas é mesmo inquebrável? Pode cair ao chão e não quebra?
- Pode. É mesmo inquebrável. Pode experimentar.
O Manel, meio desconfiado, agarrou num prato para o deixar cair, curioso, mas temeroso. O Renato:
- Oh! Doutor. Experimente. Deixe cair.
Caiu. E fez-se em mil pedaços! Convidado vermelho de vergonha, e logo o anfitrião:
- Experimente outro doutor. Esse devia ter algum defeito. Tome este.
Segundo prato. Mais mil pedaços. Risada geral. O Renato encantado com a experiência.
- Pode partir mais doutor. Não faça cerimónia, nem fique preocupado.
Grande figura. E grande amigo.
Depois do 25/4, a nova diáspora. O Renato vai para o Brasil, teoricamente representava uma casa de vinhos da família Vinhas, mas não lhe dava para viver, e estava a ficar velhote.
Voltou para Lisboa, com a sua simpática companheira, que ele tratava por Pincelinho, uma excelente pessoa, mas a saúde começava a dar sinais ruins.
Já na faixa dos 70, vão os dois na rua, em Lisboa, cruzam-se com uma senhora, que os pára, reconhece o Renato e cai-lhe nos braços! Não se viam talvez há meio século, mas ela não tinha esquecido o seu amor da adolescência.
Estava viúva, sem filhos e o marido tinha-lhe deixado muito folgadas finanças.
Sabendo da situação difícil do “amor juvenil” logo ali o “intimou” para que fosse viver em casa dela. Ele e a companheira. Tinha uma casa grande, automóvel e motorista, e não havia qualquer intenção de compartilhar o namoro perdido, mas não esquecido.
Lá foram.
Não tardou a que Renato piorasse e tivesse que ser internado. Numa das melhores clínicas de Lisboa, tudo por conta do antigo amor!
Mas estava já muito mal. Ainda o fui visitar. A cabeça baralhada. Reconheceu-me bem mas logo me associou a Luanda e perguntou-me se estava hospedado no Hotel Universo que é em Luanda.
Saí chocado da clínica. Regressei ao Brasil uns dias depois e entretanto o meu muito querido amigo, Renato Lima,  a quem os nossos filhos chamavam de Tio Relato, finalmente, descansou. Na foto ele teria uns 40 e pouco.

*             *             *              *             *
Outro amigo que o tempo mais não fez do que consolidar uma amizade muito franca. Foi ele que me entrevistou, em 1957, Lisboa, para a possibilidade de preencher uma vaga de técnico na Cuca em Angola.  Era o secretário da administração, em Portugal. Gordo, simpático, grandão, irradiava simpatia. Eu não o conhecia, e só tinha algum contato, muito esporádico, com um seu irmão, amigo duma irmã minha.
E lá voltei eu para Angola.
Em 1961 a Companhia me mandou fazer uma série de estágios e visitas de estudo pela Europa, era com ele que me entendia, em finanças, destinos, etc. Os patrões eram muito “patrões”! Não sei já como me fazia chegar o dinheiro lá ao estrangeiro, mas sempre fazia questão de dizer que não esquecera de mandar o meu salário a casa dos sogros, onde tinham ficado os primeiros quatro dos nossos filhos. Não se preocupe com as crianças. O dinheiro vai lá ter certinho!
Quando em 1963 surge e violentamente se espalha um boato caluniando o administrador da Cuca, Manuel Vinhas, dizendo que ela andava a dar dinheiros aos terroristas, dentro da companhia fui eu o único que não acreditei em semelhante estupidez, como iniciei uma tremenda luta contra isso.
Mas a verdade é que teve nefasta influência nas nossas vendas e eu era o responsável. O administrador local, Dr. Francisco Maia de Loureiro, aconselhou-me a escrever um relatório detalhado para a patrãozada em Lisboa, e ele mesmo escreveu a dizer que o sr. Amorim está a preparar um relatório...
O tal senhor Vinhas não gostou que alguém lhe apontasse o dedo e ficou bravo.
Uns dias depois recebo um telefonema de Lisboa. Do já meu amigo secretário da administração. Conversa tipo telegráfica, porque em questões de política nunca se sabe quem e o que estão escutando, e disse-me só:
- Estão todos bem aí em casa?
- Tudo perfeito.
- Não mande o relatório.
Não entendi e perguntei:
- Qual relatório?
- O que o dr. Maia Loureiro anunciou.
- Porque?
- Sabe que eu sou seu amigo, não sou? Então esqueça o relatório, e adeus.
Desligou!
Fiquei sem entender o que se estava a passar, tinha o tal relatório alinhavado, guardei numa gaveta e... não disse nada.
O boato foi de tal maneira que o “patrão” estava até proibido de sair de Portugal.
Um ano depois tive que ir a Lisboa, em serviço, contei ao meu sogro, juiz, o que se estava passando e, sobretudo que nada tinha acontecido e que a PIDE, como de costume, sem qualquer prova, mantinha o caso aberto.
Na ocasião o Chefe de Gabinete do Ministro do Interior tinha trabalhado como Delegado com o meu sogro, que decide telefonar-lhe e pedir uns minutos para expor-lhe um problema.
Lá fomos os dois. Expliquei bem a situação, o senhor não sabia de nada, mas disse que ia mandar buscar o processo e falar com o ministro. Depois do almoço telefonaria.
Assim foi. Disse que eu lá fosse ter com ele que me entregaria uma carta, dirigida ao “suspeito” assinada pelo ministro, informando que o processo acabara, tinha sido arquivado.
O meu amigo, secretário da companhia sempre fora, e continuou a ser muito amigo do “patrão visado”. Quando lhe telefonei a dizer que o problema estava resolvido, não acreditou.
Encontrámo-nos ao fim da tarde, entreguei-lhe a carta e as lágrimas apareceram-lhe nos olhos. O tal “patrão” ... nem uma palavra. Podia ter mandado um cartão de visita a agradecer, mas... dois anos depois foi grosso comigo, eu respondi-lhe e mandei-me! Não gosto de desaforo de rico.
A amizade com o “secretário” logo passado a administrador, essa ficou, firme e forte, mesmo quando o oceano nos separou. Vivíamos no Brasil, mas todas as vezes que ia a Portugal um almoço com ele era prato obrigatório.
Em 80 o nosso filho Luis lembrou-se de ir para Portugal atrás duma... e casar. Não valeu conselho de velho, foi e casou, mesmo que o casório não tenha durado mais que alguns meses.
Festa do casório em Oliveira de Azeméis. A nossa família contratou um ônibus e lá foram os convidados, numa farra que jamais alguém havia visto algo parecido, o que se ficou a dever à nossa sobrinha Zeza, que animou a excursão de tal modo que as pessoas foram e voltaram a rir!
No regresso a Lisboa, o querido amigo João Matos Chaves vira-se para mim e diz-me:
- Oh! Chico! Tem que casar todos os filhos aqui em Portugal. Um casamento como este nunca aconteceu antes.


0             0             0              0             0             0

Dando este passeio pela Cuca, há pelo menos mais um colega de quem volta e meia me lembro.
Sobre ele escrevi um pouco no meu livro, de 1998, no capítulo “ESTÁ  FRESQUINHA”.
 Cuca foi a primeira fábrica de cervejas a instalar-se em Angola, em 1956, e até ao fim do tempo colonial manteve a liderança do mercado, apesar da concorrência de mais quatro que entretanto foram nascendo.
Foi seu cervejeiro, chefe dos serviços de fabricação durante muitos anos, um açoreano, filho de cervejeiro, homem calado, teimoso e simples, ótimo profissional, cioso do seu trabalho.
Sempre tinha vivido ligado à cerveja, a quem dedicava todo o seu saber e experiência.
Para se manter inalterada a qualidade e tipo de cerveja, a sua fabricação obriga a uma série de cuidados que vão desde a eleição das matérias primas, os diversos tipos de cevada ou malte e lúpulo são previamente submetidas a análises rigorosas.
Até os cuidados com a água são de importância capital. A matéria prima mais importante na cerveja é, sem dúvida, a água. Esta era toda lavada e depois acrescentada com os sais que o laboratório indicava diariamente, após feitas também as convenientes análises.
Depois, durante o processo de fabricação, de que se faziam por dia quatro ou cinco caldeiradas de milhares de litros cada uma, era necessário misturar essas caldeiradas umas com as outras. A este mosto que segue para tanques de fermentação é adicionada a levedura, ou fermento, que começa imediatamente a transformar o mosto em cerveja. O tempo de fermentação varia com o tipo de cerveja a fabricar, e finda a fermentação principal a cerveja entra em tanques de fermentação secundária ou amadurecimento. À saída da fermentação primária misturam-se vários tanques e finalmente dos tanques de amadurecimento final, se faz outra mescla para que a qualidade do produto a engarrafar e seguir para o mercado, se apresente de tal forma homogêneo que não possa sujeitar-se a oscilações.
A fermentação faz-se com levedura que, como qualquer ser vivo, apesar de todos estes cuidados, sempre encontra possibilidade de manifestar a sua personalidade individualista. Assim aparecem de vez em quando uns tanques em que a cerveja, por razões mais ou menos desconhecidas sai diferente. A sua cuidada mistura com outros tanques acaba por disseminar essa diferença sem alterar a qualidade final.
Quando num desses tanques aparecia alguma coisa de muito especial, o nosso cervejeiro, sentia um prazer maior, e gostava de o compartilhar com os colegas, o que era natural.
A um por um mandava recado para irem à sua sala, evocando qualquer pretexto de trabalho, e sem alardes mandava à adega buscar dois copos daquela cerveja. Ninguém suspeitava, porque mesmo que nada de especial estivesse acontecendo, sempre que alguém ia falar com ele, era de praxe oferecer-lhe um copo de cerveja tirada diretamente da adega. Mas naqueles dias a intenção era outra.
Depois do colega beber o primeiro gole, com ar aparentando total despreocupação, perguntava:
- Que tal está essa cerveja?
Quase sempre a resposta era a mesma, estava muito boa, sem dúvida. Aliás beber cerveja saída diretamente dos tanques da adega, apesar de apresentar turvação própria da levedura ainda em suspensão, que é depois retirada durante a filtragem, era sempre uma delícia. Muito leve.
Dessa vez porém a cerveja estava bem para lá do simples muito boa.
- Aahh! Mas isto está uma maravilha! Que cerveja é esta? Alguma novidade na manga?
Era o que o pai da criança queria e gostava de ouvir. Ficava todo feliz! Eram pequenas coroas de glória que sem prejudicar alguém lhe davam enorme satisfação. Dessa vez a cerveja estava muito especial.
Teciam-se depois alguns comentários sobre a excepção daquele tanque, que tal como acontece nas adegas de vinho, em que se fazem milhares e milhares de litros, no meio de tudo aquilo há sempre uns quantos barris que se sobressaem. No vinho ainda dá para fazer seleções, engarrafando o especial com rótulo e preço de eleição, porque há sempre quem compre o que é superior, quando não é o próprio produtor que o guarda para si. Na cerveja não se pode variar a qualidade, mesmo que por acidente ela se apresente melhor. Nem engarrafar em separado para os amigos, porque quanto menos tempo de engarrafada, melhor é para se beber. O destino destas pequenas maravilhas é acabarem diluídas no meio de tantas outras, a fim de se manter a qualidade estabilizada. Nada mais do que isto.
Entre os colegas havia um responsável pela manutenção do equipamento da fábrica, engenheiro de máquinas, o Sampaio, a quem chamávamos de Xampaio por ser lá de xima, das Beiras de Portugal, onde em algumas regiões se fala ainda com sotaque galáico português (que me perdoem os linguistas se estiver dizendo algum disparate). Baixinho, forreta, mão de vaca, sem qualquer sentido de humor, mas competente na sua área.
Foi também chamado a pretexto de discutirem algum detalhe técnico-mecânico, assim que à sua sala já lhe estava passando às mãos um copo da tal maravilha. O Xampaio, bebeu um gole e nada. Segundo. Terceiro. O copo todo.
- Então, que tal acha essa cerveja?
- Está fresquinha. Está muito fresquinha!
Imaginem a cara do cervejeiro. À espera de mais um elogio, limitou-se a ouvir que estava fresquinha. Talvez porque a responsabilidade da manutenção do equipamento de frio fosse dele, do tal Xampaio! O Cabral deve ter tido vontade de estrangular aquele provador para quem um copo de cerveja, vinho ou vinagre teria sido a mesma coisa, desde que estivesse fresquinho!
O cervejeiro, que eu muito considerava como colega e amigo era o Ricardo Cabral.
Foto dum jantar com os “patrões”:
1.- Miguel Monteiro – Presidente do Conselho de Administração
2.- António Fonseca – Presidente de... ?
3.- Leonor Aragão – Secretária do Diretor
4.- Alfredo Duarte Figueiredo – Diretor da Fábrica de Nova Lisboa
5.- João Matos Chaves – Secretário da Administração em Lisboa
6.- Eu
7.- Ricardo Cabral – Mestre Cervejeiro
8.- Renato Lima – Relações Públicas
9.- José “Xampaio” – Engenheiro de Manutenção


Fev.19


sábado, 9 de março de 2019




ESBOÇO  DE  ALGUÉM

“Aqueles que por obras valerosas,
Se vão da lei da morte libertando!”

Quando no final do século XVI, Yermak Timofievitch entregou ao Duque de Moscovo, Ivan Vasilieivitch, o famigerado Ivan o Terrível, toda a Sibéria que havia finalmente conquistado e submetido por seu esforço e mérito, a alguns dos seus mais diretos colaboradores foram concedidas mercês e regalias como prova de agradecimento do primeiro governante russo que se intitulou o Grande Tsar das Rússias.
Entre essas mercês estava o direito ao uso, para si e seus descendentes, do patronal vitch, que significa filho de. Assim foram nobilitados alguns homens que ajudaram a engrandecer a Rússia, e seus filhos passaram a poder acrescentar ao seu nome próprio o nome de seu pai. Não eram mais simples comerciantes ou guerreiros, mas membros da nobreza.
Nos primórdios da nação portuguesa as gentes dividiam-se por bem definidas camadas sociais, tendo no topo os ricos homens, os grandes senhores de terras, de castelos e de gente, que ocupavam os principais cargos públicos, e assim detinham o poder e a autoridade, e a seguir os infanções, os nascidos e criados entre os mais poderosos senhores. Só estes pertenciam à nobreza, classe fechada, quando não endogâmica, que mais tarde começou a ser representada por outros membros, a que talvez se pudesse chamar nobreza de 2ª, como os cavaleiros.
Talvez com o receio de permitir que um qualquer penetrasse nesse meio de nobres, estes juntaram à sua classe mais uma designação: filhos de algo. A nobreza mais antiga, que vinha de pais para filhos, tinha que se distinguir dos que entravam nessa classe pela porta do serviço. Por muito que se tivessem destacado e merecessem o reconhecimento real, não tinham ancestrais, pais ou avoengos nobilitados que lhes permitissem ser filhos de algo, de alguém.
A esses um dia os reis tiveram que se agarrar para conter a força imensa dos grandes senhores, que com seu poderio económico, estratégico e até de gente que podiam recrutar para batalhas, desafiavam e ameaçavam o poder central.
No entanto os filhos de algo, os fidalgos, meta que todos almejavam atingir, de modo mais submisso ou arrogante, sempre dominaram as cortes.
Na verdade nobreza é algo que não está no sangue, nos livros de linhagens, nos brasões, nem nos avós, mas no comportamento e sentimentos. Onde está a nobreza de alguns membros da família real inglesa que só dá escândalos sujos? E das meninas de Mônaco? Que respeito merecem?
Nobreza está no caráter. De muita gente simples se ouve dizer que tem uma grande nobreza de alma, de caráter. São simples por não terem antepassados importantes, e são grandes porque assim são as almas simples.
Almeida Garrett, em atenção à sua grande obra artística e política foi nobilitado com o título de visconde e Par do Reino. Um dia, em que por doença não pôde comparecer ao Parlamento, foi alvo de uma crítica desagradável feita por um membro da velha fidalguia, que por sarcasmo insinuou a sua recém entrada na nobreza. Na sessão seguinte, Garrett, começou a sua réplica: - A nobreza que em mim começa talvez termine em Vossa Excelência! Eu fui nobilitado por meus serviços ao país, enquanto Vossa Excelência simplesmente nasceu assim.
Esta introdução não pretende ser uma incursão na história, mas uma muito singela homenagem a Alguém, porque parece no fim de tudo isto, o que vale é ser-se alguém. É bem verdade porque o que todos querem é ser alguém na vida.
Neste caso o Alguém, que de acordo com o dicionário significa pessoa de relevo, foi além disto.
Não só pela sua obra artística, de que se evidenciam a pintura, o desenho, a poesia, os profundos conhecimentos etnográficos, os científicos. O maior destaque da sua vida foi a sua personalidade. Foi ele todo.
Alegre, brincalhão, divertido, a sua companhia não dava lugar a tristezas. Ao seu lado tanto se aprendia sobre Angola e seus costumes.
Conhecia-o, bem, de nome, mas pessoalmente só depois de 1962 ou 3. Morávamos na mesma rua.
Angola que foi a maior paixão da sua vida. Percorreu-a de lés a lés, conviveu com suas gentes, e desde menino a sua máquina fotográfica foi o lápis e o papel. Retratava com mais realismo o seu desenho do que qualquer fotografia ótica.
Ele via e fixava os detalhes das gentes, seus requebros, sorrisos e tristezas, sombras e cores, trajes e adornos, suas conversas mudas que se ouvem nas expressões dos rostos, suas danças e costumes, suas vidas.
Os animais e seus habitats, as plantas, a mata, as casas, os céus, o cacimbo das manhãs, a névoa úmida das regiões de café, as nesgas de sol atravessando de mansinho as copas das árvores no Maiombe, nada lhe escapava, nem do traço nem da mente, continuando por muitos anos a reproduzir com fidelidade inigualável a cor de cada céu, de cada região que tão intensamente percorreu e viveu.
Não necessitava cantar em poesia aquilo que os seus pincéis reproduziam, como o Tocador de Quissange, onde a cor, a posição e a expressão do músico parecem por si próprios transmitir a dolência do instrumento. Observado com cuidado pode até escutar-se a sua música.
Dos Quintalões de Benguela que não mostram mais do que um muro, uma porta e uma árvore lá dentro, emana toda a dengosidade daquela cidade mulata, e ao fim de poucos momentos consegue-se até sentir a brisa que sopra, constante, da Praia Morena.
Quem atravessou as plantações de café do Uige, de manhã cedo, toda a área escondida na neblina a manter a umidade necessária para que Angola fosse o terceiro produtor mundial desse frutinho que faz uma bebida deliciosa, e vê uma pintura dessa região, sente os pés a derraparem em cima daqueles caminhos de barro escorregadio. E se o café estiver em flor fica inebriado. Os olhos presos naquele ambiente de sonho, sente nos ossos a umidade, e o cheiro a sair da tela, vivo, profundo, até entontecer.
A seguir um Imbondeiro, triste, grotesco, enorme, sem folhas, seu aspeto mais comum, passando a seu lado uma mulher com uma bilha de água na cabeça. Quem não sente o calor sufocante daquela região? Quem não se extasia perante aquela grandeza pobre, mas altiva, imponente?
Depois o Maiombe. Aqueles verdes!... Da tela sai a pujança do equador que nos faz sentirmo-nos menores do que os pigmeus, que estão por perto. O calor invade-nos, começa-se a suar e a louvar a Deus pela imponência daquelas obras da Criação. As duas, a de Deus e a da tela.
Esfumadas noutra neblina da madrugada, vem-se agora, perto mas ao longe, algumas gazelas esguias, elegantes, descontraídas, a pastarem. É um crime atirar em animais tão bonitos, mas... qual foi o caçador que resistiu?
Num Mercado no Luena qualquer um pode discutir preços e comprar panos, peixe seco, jinguba, sentir vertigens à beira da Fenda da Tunda Vala, encolher-se para atravessar a Floresta nos Dembos, ou refrescar-se debaixo das águas das Quedas do Duque.
Encanta-se com uma doce e altiva Bessangana de Luto, seu coração altera o compasso ao ver uma Moça de Massabi, Cabinda, ou da Gabela, acelera ainda mais a pulsação ao desejar aberta ou intimamente uma das Mulatas de Luanda e a reverenciar-se perante a beleza dum penteado Muíla.
Quem não sacode a anca ao ver a Marrabenta de Moçambique, ou a Rebita de Benguela e não dá uma umbigada com a Massemba de Luanda? Naqueles requebros vêm-se e ouvem-se os ritmos da dança.
Os desenhos, as aquarelas, as telas sucedem-se e de repente entramos pela Bahia do Salvador de Todos os Santos. Mesmo quem nunca foi à Bahia, a um candomblé, e pára em frente duma destas telas, começa a sentir o cheiro do caruru e o sotaque carinhoso e quente dos nossos irmãos do Brasil.
E muito mais do que só isto.
As suas poesias têm que ser lidas. Só lidas. Comentar poesias só por descaramento ou presunção se pode fazer, sobretudo quando elas tocam fundo na alma de quem viveu Angola. E é difícil encontrar quem tenha vivido em Angola, que não tenha vivido Angola.
Ler os seus poemas - Macuta e Meia de Nada - que escreveu pré e pós 1975, data em tivemos todos que sair de Angola, retrata bem o que isto significa. É impossível, ainda hoje, e sempre, ficar insensível a tão triste mágoa.
Este pequeno esboço de Alguém é uma muito simples, talvez até mesmo atrevida, maneira de recordar um Amigo. Um Amigo que teve muitos amigos e em cada um destes um grande admirador.
Se a sua obra foi mais do que suficiente para o distinguir e fazer dele Alguém, a sua personalidade sempre ultrapassou a obra. Sem aquela não teria existido esta!
Brincalhão, alegre, uma das graças que gostava de fazer era desenhar a sua caricatura em pratos ou copos e oferecê-los aos amigos. Mas os pratos e os copos não eram dele! Eram dos bares, dos restaurantes, das boates, que se orgulhavam da sua presença, mesmo conscientes do prejuízo que tal brincadeira lhes acarretava!
Em Luanda no Hotel Universo, do Trigo, um galego forreta, como todos, mas simpático, havia uma boate, que durante muito tempo foi o lugar da capital de Angola mais agradável para se passar parte da noite.
A boate era feia, não tinha decoração, e um dia o Trigo propôs-lhe a medo:
- Se você me fizesse uns painéis para aqui...  Mas custam muito caro, com certeza, e não vou poder pagar muito por isso.
- Eu faço. Não se preocupe. Você vai pagando em bebida, que eu venho aqui beber.
Dito e feito. A boate ficou com uns painéis sensacionais, linda.


Só mais tarde, quando a mulher lhe perguntou porque fez o trabalho de graça é que ele explicou:
- Quando fiz a minha primeira exposição para angariar algum dinheiro, o Trigo comprou-me uma grande quantidade de aquarelas que foi o que me permitiu ir estudar para Portugal. Agora é altura de retribuir.
Trigo nunca soube a razão deste gesto. E lá foi servindo as bebidas que ele, com garbo e sempre bastante sede ia bebendo, não só enquanto foi pintando, como depois nas muitas vezes que ali ia.
Um dia descobriu que lá num canto da boate havia um pequeno móvel onde os criados guardavam os pratos. Foi ao lado desse móvel que escolheu a sua mesa habitual: tinha sempre à mão quantidade suficiente de pratos para ir desenhando a sua caricatura e oferecer aos amigos!
O senhor Oppenheimer, senhor porque arquimilionário, dono de algumas das mais importantes minas de diamantes na África do Sul, e de um dos maiores comércios de pedras preciosas em todo o mundo, foi um dia a Angola, e lá tomou conhecimento do grande mestre pintor.
Foi a sua casa, montado em cima dos milhões que todo o mundo reverenciava. Todo o mundo não!
Depois de ver dois ou três quadros, o último dos quais o busto espetacular duma mulata, fez um comentário racista, apartheidiano sobre o fato do pintor se dedicar sobretudo aos africanos.
Este senta-se, tranquilo, acende o seu cachimbo, e fica sorrindo para sua excelência.
- Então, não tem mais quadros?
- Não. Só os que lhe mostrei, e estes mesmo estão já vendidos.
- Mas o senhor tem uma grande quantidade deles ali atrás.
- Tenho, mas uns não estão terminados e os outros foram encomendados. Não são meus.
Continuava sentado impávido, perna traçada, sorrindo e puxando fumaça do cachimbo.
- Mas como é possível? Tantos quadros aqui e o senhor diz que não nem um para vender?
- É isso.
O milionário saiu porta fora puto da vida. Foi-se queixar ao Governo Geral. Daqui lhe telefonam como que a pedir explicações para o caso!
- De quem são os quadros? Quem os pintou? Quem pagou as telas e as tintas? Quem me deu algum subsídio para pintar? São todos meus, e eu faço o que bem me apetece com eles.
Fim de papo.
Passado algum tempo expôs em Windhoek, capital do Sudoeste Africano, hoje Namíbia. A exposição foi mais um sucesso. Um ou dois meses mais tarde outro sul africano se apresenta em sua casa.
Tinha sabido da exposição em Windhoek, que infelizmente não tinha podido ver e pedia-lhe muito que lhe mostrasse algumas obras.
Viu, muitas, e comprou uma meia dúzia de quadros, que levou com ele.
Mais algum tempo depois veio a saber-se que fora a tal excelência quem mandara um emissário comprar os quadros, mas proibido de mencionar onde quer que estivesse o nome Oppenheimer!
O nosso artista ficou furioso, mas...
Já exilado em Salvador, na Bahia, onde viveu os primeiros tempos muito entristecido com a desgraça das terras que tanto amou e com a ingratidão dos seus governantes.
Ainda passei por sua casa, talvez em 1980, quando fui a Maceió. Fiquei lá dois dias, com a simpatia da Luiza e a maestria e simpatia do Mestre, muito amigo, desde os tempos em que, em Luanda eu ia visitá-lo em casa, para gozar uma excelente companhia, o ver trabalhar, ouvir uma boa música clássica e beber um copo com ele.
Quando regressei a casa escrevi-lhe uma carta a agradecer a hospitalidade.
A resposta que me mandou é uma delícia:

Um dia disse à mulher:
- Estou com falta de verde.
- Compra.
- O verdadeiro.
Foi para a Amazônia. Talvez uns quinze dias.
Três semanas depois a mulher telefona para o hotel onde supunha poder encontrá-lo, e nada! Pôs em campo a telefonista das informações de Manaus, que à boa e tradicional moda brasileira se prontificou em pesquisar por sua conta em todos os hotéis da cidade.
Uma hora depois liga de volta e diz que a última notícia dele é que tinha estado no hotel X.
A mulher liga para lá e informam-na:
- Esteve aqui sim, mas saiu há uns oito dias. Deixou a mala com a roupa, que pegaria quando regressasse.
- Para onde ele foi?
- Foi com uma turma que ia cortar madeira lá para o interior, para uns igarapés.
Estava localizado, mas só de lá voltou, com a graça de Deus e muito verde, quase um mês depois!
Este ALGUÉM chamou-se Albano Neves e Sousa, e a melhor maneira de fechar este pequeno abraço de muita saudade é com um traço dele mesmo, que me deu no Estoril quando da sua exposição no Casino em 1994. Já tinha sido operado ao coração, como tão bem retrata o coração todo amarrado e o cachimbo com uma cruz a riscá-lo!


12 fev. 19